Embora aceitasse os discursos de gênero vigentes, onde apenas os papéis de mãe, esposa e cuidadora da família eram valorizados, a Woman's Bureau lutou pelos direitos da mulher e pela permanência dessa mão de obra na força de trabalho formal nos EUA

 Publicado: 16/01/2024 - JORNAL DA USP

Texto: Ivanir Ferreira

Discursos conciliatórios entre o conservadorismo e as reinvidicações das mulheres marcaram estratégia da Woman's Bureau no período pós-guerra - Arte sobre capas de revistas

A agência trabalhista estadunidense Women’s Bureau (WB) usou estrategicamente discursos ambíguos de gênero e raça para negociar conquistas trabalhistas para as mulheres após a 2ª Guerra Mundial (1944-1953), período de plena expansão econômica do país. A constatação é de uma pesquisa do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Nos boletins da agência, os discursos eram conciliatórios e apaziguadores quando estes se tratavam dos agentes públicos (governo) e privados (empresa) e de conformidade sobre o papel social das mulheres. Mas, na prática, a WB fazia articulações com sindicatos e/ou organizações femininas independentes para realizar negociações e garantir sua própria existência na burocracia estatal.

A Women’s Bureau é uma das agências federais trabalhistas dedicada exclusivamente aos interesses da classe trabalhadora de mulheres mais antigas do mundo ocidental (fundada em 1920) e uma das pioneiras no âmbito estatal a defender a igualdade e equidade de direitos trabalhistas, políticos e civis entre mulheres e homens. Está vinculada ao governo dos Estados Unidos (a diretora é nomeada pelo presidente e confirmada pelo Senado) e, durante o período estudado, tinha relativa autonomia de atuação para criação e modificações de legislações e políticas públicas porque era fortalecida pelos seus vínculos com os movimentos sociais.

A hipótese principal confirmada pela pesquisa foi de que a Women’s Bureau, por estar ligada ao governo e ao mesmo tempo ter estreita alianças com sindicatos e organizações de mulheres, fez uso estratégico de discursos ambíguos em seus boletins para barganhar conquistas trabalhistas para as mulheres. Os textos tinham vieses essencialistas biológicos e conformistas sobre a mulher, porém, sua atuação, na prática, objetivava a obtenção e extensão de direitos trabalhistas, sociais e políticos das mulheres em igualdade e equidade ao dos homens.

Segundo Robert Sean Purdy, orientador da pesquisa e professor da FFLCH, no período abarcado pela pesquisa, entre 1944 e 1953, os Estados Unidos passavam por diversas mudanças e transformações sociais e econômicas, o que os levou a um crescimento da mão de obra feminina na composição da força de trabalho formal do país, sendo essa, inclusive, uma janela de oportunidade para se lutar por direitos trabalhistas, sociais e políticos dessa classe trabalhadora.

Robert Sean Purdy - Foto: Arquivo pessoal

Robert Sean Purdy - Foto: Arquivo pessoal

Purdy explica que, embora os EUA estivessem sendo governados pelo partido democrata, de centro-esquerda, havia no governo muitas pessoas conservadoras, e mesmo tendo posicionamento diferente, a WB entendeu que era necessário “aceitar” estrategicamente a ideologia de gênero vigente (essencialismo biológico), em que a mulher era somente reconhecida em seu papel social como mãe, mulher, esposa e cuidadora da família, para ser atendida em suas reivindicações. Assim, ao mesmo tempo em que exigia adaptações trabalhistas em vista das implicações do papel social da mulher de dupla jornada, por exemplo, a WB defendia a inclusão das mulheres no mercado de trabalho.

A WB se tornou referência de estrutura organizacional para vários países no mundo, como o Japão e o Canadá. “Para nós, conhecer a história e a atuação da agência contribui para compreender algumas dinâmicas da relação entre governo e o movimento feminista e de reivindicação de direitos trabalhistas das mulheres no Brasil”, explica a historiadora e autora da pesquisa, Ana Carolina Sodré Ferreira, que defendeu mestrado na FFLCH em dezembro de 2023.

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Ana Carolina Sodré Ferreira - Foto: Arquivo pessoal

Segundo a autora, o estudo “nos permite explorar novas formas de articulações políticas entre a sociedade civil e governo de forma a estabelecer relações e alianças benéficas para as mulheres, principalmente durante contextos e governos conservadores que reiteram discursos de gênero estereotipados e baseados em essencialismos biológicos”, diz.

Secretário do Trabalho, presidente e diretora do Women’s Bureau (1948). Foto tirada durante a Women’s Bureau Conference: The American Woman – Her Changing Role (Worker, Homemaker, Citizen). Da direta para a esquerda: Frieda Miller, Harry S. Truman e L.B. Schwellenbach

A pesquisa

O recorte que a pesquisadora fez foi o período durante o mandato da segunda diretora da agência, Frieda Miller, que deu continuidade à gestão de Mary Anderson, sindicalista com bastante interação entre os movimentos feministas e sindicais dos EUA. O contexto político/econômico da época era de “Guerra Fria”, “anticomunismo” , “embate dos EUA contra a União das Repúblicas Soviéticas” e “expansão econômica dos Estados Unidos no pós-guerra”.

Ao longo de sua existência, a agência produziu e divulgou em seus boletins centenas de estudos produzidos por ela e dados estatísticos sobre as condições das trabalhadoras no país, além de ter atuado ativamente em ações, discussões e lobbies políticos. Os temas eram variados: levantamentos salariais da categoria; análise das condições de trabalho e empregabilidade das mulheres em diferentes setores; levantamentos legislativos sobre o status político e civil da mulher nos EUA; leis trabalhistas destinadas a mulheres; perspectivas de emprego para mulheres em setores cuja divisão sexual do trabalho não estava consistentemente definida; informações sobre as condições de trabalho e benefícios para trabalhadores de indústrias, entre outros.

Discursos de valorização do papel social da mulher

Uma das abordagens da WB foi a apropriação de discursos patrióticos de cunho econômico e social e de gênero para convencer governo e empregadores da importância e legitimidade da mão de obra feminina no mercado de trabalho nos Estados Unidos, incluindo as que eram casadas.

“Todas as tendências evidentes apontaram para o futuro próximo, para a continuidade de uma larga, e provavelmente em crescimento, força de trabalho de mulheres, incluindo as casadas como, também, as solteiras. Esse fato é indicado em primeiro lugar pela natureza de uma sociedade econômica na qual muitas necessidades familiares devem ser compradas no mercado, e não fornecidas em casa, e nas quais as pressões para aumentar a renda familiar são fortes. Além disso, os objetivos atuais deste país continuam a exigir uma força de trabalho considerável da mulher, uma vez que são direcionados para manter um alto nível de produção paralelo a um programa militar que tende a diminuir o fornecimento de mão de obra masculina para ocupações civis essenciais” (WOMEN’S BUREAU, 1953, n. 246, p. 1).

Em outra edição, o discurso combinava argumentações de transformação econômica no pós-guerra com o aumento da necessidade das mulheres casadas trabalharem:

“A habilidade em um emprego e o estado civil não estão relacionados. Mulheres casadas e mulheres solteiras normalmente trabalham por razões econômicas. Como uma grande proporção de mulheres na população com mais de 25 anos de idade é casada, a exclusão de mulheres casadas tende a aumentar materialmente, resultando em uma alta proporção de mulheres jovens e inexperientes. Privar as mulheres que se casam do direito de continuar em seus empregos é desperdiçar habilidades adquiridas pela experiência, do ponto de vista do trabalhador e da indústria” (WOMEN’S BUREAU, 1946, n. 207, p. 20).

Nos boletins, havia também uma valorização do papel social da mulher como esposa e mãe e cuidadora da família. Porém, baseada em dados estatísticos e fatos vinculados ao bem-estar econômico da nação, a agência lutou ao lado de organizações de mulheres e trabalhistas para desconstruir estereótipos etários e de gênero, defendendo a contratação de mulheres de qualquer faixa etária, como descreve trecho de uma carta da diretora Frieda Miller destinada ao secretário do Trabalho dos EUA, divulgada em um dos boletins:

“Espera -se que este estudo exploratório sugira aos empregadores, escolas e outras agências comunitárias que as mulheres maduras possam se tornar trabalhadoras competentes se tiverem oportunidades para treinamento e emprego” (WOMEN’S BUREAU, 1953, n. 248, p. V ).

Segregação racial

Segundo a historiadora, se por um lado os textos dos boletins omitiram-se de criticar explicitamente a segregação racial da época, por outro, a agência defendeu a equidade de direitos e tratamento entre pessoas negras e brancas, desconstruindo estereótipos e essencialismos biológicos associados à raça. A agência buscou demonstrar que a mão de obra de mulheres negras além de constituir a força de trabalho do país, era essencial para a manutenção desta:

“Por trás do barulho – o martelo, o trovão – o motorista que tipifica a América em guerra é um grupo de mulheres, as mulheres negras, que reuniram suas forças com a de todos os outros americanos em esforço para alcançar um objetivo comum – vitória. Levando sua parte total da carga de guerra do país, elas estão trabalhando em todas as seções do país. Nas fábricas de aço e de fundições, nas plantas de aeronaves e nos estaleiros, as mulheres negras estão ajudando a fazer as armas de guerra. Elas não apenas estão trabalhando em plantas de guerra, mas seus serviços em lavanderias e restaurantes, em ferrovias e fazendas, e em inúmeras outras indústrias civis essenciais ajudaram a possibilitar que a América se tornasse o arsenal das Nações Unidas” ( WOMEN’S BUREAU, 1945, n. 205, p. 1).

A agência também chamou a atenção para o desequilíbrio de gênero na composição da mão de obra das principais profissões do setor de saúde, da indústria e serviços. Já naquela época, a agência denunciava que as mulheres estavam concentradas em profissões de baixa qualificação profissional e, por isso, também tinham baixos salários. Mesmo quando ascendiam a cargos “masculinos”, ainda recebiam salários inferiores se comparados aos dos homens:

As mulheres constituíam mais de 95 % dos trabalhadores privados em serviços domésticos em 1952, 65% dos trabalhadores em escritórios, cerca de 35% a 45% de trabalhadores de, respectivamente, vendas e serviços (outros além dos serviços domésticos) e 30% dos operários. Em outros grupos de ocupação, as mulheres eram proporções menores dos funcionários” (WOMEN’S BUREAU, 1952, n. 242, p. 3-4).

A agência procurou desconstruir, ainda, o discurso discriminatório de gênero e de raça em relação à produtividade da mulher no mercado de trabalho. Em seus boletins, a baixa produtividade era relacionada às más condições de trabalho, aos baixos salários e às cargas excessivas de labor, e não ao fato da operária ser mulher:

A fatiga presente entre as jornadas de trabalho com longas horas foi evidenciada pelo fato de algumas mulheres irem para a cama em uma hora anterior ao trabalhar mais de 8 horas por dia, e muitas admitiram que estavam ausentes porque estavam ‘cansadas’ em vez de doentes […] A proporção com menos de 6 horas de sono aumentou nas jornadas de 9,5 ou 10 horas diárias” (WOMEN’S BUREAU, 1947, n. 208, p. 3 ).

 

Lutas trabalhistas das mulheres no Brasil

Ana Carolina Ferreira diz que, no Brasil, a história dos direitos trabalhistas e políticos das mulheres vem desde o século 19, com relativos avanços em governos democráticos e “amigáveis”, com a concessão de determinados direitos em troca de apoio político, e estagnações e retrocessos em governos não democráticos.

A pesquisadora lembra que, entre as décadas de 1920 e 1930, uma nova geração de feministas ascendeu no País, sob a liderança a deputada Bertha Lutz, que teve influência significativa da Women’s Bureau e de sua primeira diretora, Mary Anderson. A tese da historiadora Cristina Cardian Fraccaro relata que “Lutz chegou a apresentar uma proposta governamental de criação de um Ministério das Mulheres brasileiro, mas esta foi abandonada em vista do golpe de Estado aplicado por Getúlio Vargas em 1937, que implantou o Estado Novo”, lamenta.

No último governo, por exemplo, entre 2016 e 2022, ela diz que “atingimos recordes dos índices de feminicídio, além do recuo no direito ao aborto, com a negação deste, inclusive, em situações previstas por lei. Houve também mais discursos misóginos e estereotipados sobre mulheres, negros, homossexuais e a população pobre; desmonte de políticas públicas e o retorno do Brasil ao mapa da fome, entre tantas outras ações desumanas e antidemocráticas”, relata.

Sobre o governo atual, Ana Carolina Ferreira afirma que a recriação do Ministério das Mulheres em 2023, apesar de ter sido simbólica, não demonstra, por enquanto, uma via estável de luta, uma vez que o ministério é majoritariamente dependente do governo para qualquer ação e carece de alianças com movimentos sociais e políticos da sociedade civil. Um Ministério das Mulheres com potencial de transformar as realidades social, econômica e política das trabalhadoras brasileiras precisa ser mais do que meramente consultivo e emissor de notas solidárias.

Por fim, a historiadora diz que, enquanto as mulheres não ocuparem em pé de igualdade em relação aos homens os cargos políticos, legislativos e jurídicos no País, e as desigualdades e discriminações de gênero e raça regularem as relações trabalhistas, precisaremos de uma instituição dedicada exclusivamente aos interesses e direitos trabalhistas das mulheres como foi a Women’s Bureau da primeira metade do século 20.

 

A dissertação de mestrado Boletins da Women’s Bureau: o discurso de gênero e raça sobre a mão de obra feminina estadunidense no pós-guerra (1944-1953) foi defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Mais informações: e-mail Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo., com a historiadora Ana Carolina Sodré Ferreira; e-mail Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo., com o professor Robert Purdy


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