Quase lá: Como foi viver uma Campanha Eleitoral

ataques internet ilustracao stephanie polloNessa fase de campanha eleitoral, vale a pena ler de novo o artigo que Iáris Cortês escreveu uns anos atrás sobre nossa participação em um processo eleitoral

Iáris Ramalho Cortês *

Quando a redação do Fêmea me pediu para contar como foi minha campanha eleitoral para a Câmara Legislativa do Distrito Federal eu vacilei porque senti que seria difícil falar de uma campanha onde não houve a vitória esperada, ou seja, a eleição. Refletindo sobre o assunto, concluí que tenho o dever de falar sobre esses três meses em que passei fazendo a política elaborada pelos homens e praticada quase que exclusivamente por eles e por mulheres, na sua maioria, com práticas masculinas.

Minha candidatura se deu no embalo da Lei das Cotas. De tanto falarmos na necessidade de priorizarmos a luta para o acesso das mulheres ao espaço político, considerei que devíamos passar da teoria à prática e, aceitando o desafio de minhas companheiras do Núcleo Feminista do PPS, lancei-me nesta aventura.

Agora, tudo passado, furtar-me a falar sobre a experiência que vivenciei seria tirar a oportunidade de centenas de mulheres saberem como ocorre a campanha de uma mulher, inserida no movimento feminista e com uma bagagem legislativa, de nove anos acompanhando os trabalhos no Congresso Nacional. Daí minha saída da ressaca pós eleições e forçar minha memória, meus nervos e sentimento e procurar ser o mais imparcial possível, sem, entretanto, desprezar as emoções que porventura surjam no decorrer desta narrativa.

O Núcleo que me incentivou a participar das eleições é pequeno o mesmo ocorrendo com o partido que, durante o processo eleitoral, esteve em um contexto político local difícil.

Os amigos e familiares que se ofereceram para colaborar na empreitada, além de poucos, não tinham experiência nesse tipo de luta. As dificuldades começaram logo no início e principalmente por falta de dinheiro. Marketing, nem pensar, não dava para pagar. Os colaboradores alugaram uma sala e pagaram logo os três meses de aluguei. O material de propaganda foi feito com dinheiro arrecadado de festinhas, rifas e doações. Tudo muito improvisado e feito de forma amadorística. O PPS, apesar de receptivo e bem intencionado, não possuía recursos financeiros suficientes para fornecer o material necessário para uma campanha tão rica como a do Distrito Federal.

O partido pregava a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, porém não tinha condições de "controlar" os homens que, em maior número, com suas estruturas corporais mais volumosas, sempre ficavam à frente das mulheres nas manifestações públicas. Tínhamos que, literalmente, usar nossa "força tisica" para ultrapassar a barreira masculina, mais forte e de fala grossa e alta, do contrário, nós mulheres, não aparecíamos. Era uma verdadeira luta corporal. Geralmente quando conseguíamos romper a barreira de homens, a manifestação já estava no final ou já ia se deslocando para outro lugar.

Tentei participar de comícios, porém logo me afastei deles. Além do empurra-empurra, era tanto discurso difamatório que me fazia mal. Resolvi partir para o contato direto com os eleitores, através de reuniões articuladas ou no corpo à corpo em locais de maior fluxo de gente.

No início, escutei dezenas de promessas de apoio, planos de reuniões, debates, encontros que ao longo dos 90 dias de campanha, foram reduzindo e quase só se realizaram aqueles programados por mim mesma ou pelo grupo mais chegado.

Há pouco menos de um mês das eleições, pressenti que não alcançaria os votos necessários. Pensei em desistir, largar tudo e ir para a beira da praia, mas senti que seria covardia para com as pessoas que acreditavam em meu trabalho e procuravam meu comitê de forma espontânea dizendo que votariam em mim, apesar da minha candidatura não pertencer a coligação que se considerava de esquerda e, portanto, a perfeita.

A minha candidatura não partiu de uma deliberação discutida dentro do movimento feminista de Brasília, como um todo. Talvez por isso, não tenha encontrado o apoio necessário para que a mesma pudesse ser considerada uma candidatura representativa desse movimento.

Ficou claro para mim nestas eleições, que, na hora de cada uma escolher seu representante, é muito complexo compor um ideário político mais amplo, com o ideário feminista.

Mesmo assim, encontrei solidariedade de companheiras que conseguiram romper o preconceito estagnante das oligarquias partidárias e apoiaram a minha plataforma política.

Escutei muito que campanha política é briga de foice, é cobra engolindo cobra. Não existe respeito, não existe ética. Eu me recuso a ver e fazer política desta forma.

Para mim, a política é uma arte e através dela é que se consegue influenciar para que todos, sem discriminação de qualquer natureza, sejam sujeitos e capazes de renovar o mundo de forma democrática. Sei que podemos mudar e foi isto que tentei fazer. Jurei a mim mesma que não atacaria ninguém, falaria apenas do que pretendia fazer como deputada distrital e isto, dentro da competência de uma Assembléia Legislativa. Assim, levando o conhecimento da Lei Orgânica do Distrito Federal, pedia o voto para pôr em prática o que ela estipulava.

A população ainda vê o político como uma tábua de salvação para suas necessidades imediatas. Recebi pedidos de tijolos, telhas, óculos, consultas e exames médicos, orientação jurídica sem limites, inclusive com pedidos de agenciamento para soltura de familiares presos. A falta de calçamento em um grande número de ruas também era assunto para se exigir promessa em troca de voto, bem como a eliminação de uma taxa de esgoto, reclamação esta feita de norte à sul do DF. Além desses e outros pedidos, ainda escutei pedido direto de dinheiro e trabalho em meu possível futuro gabinete.

Aliás, pedido de emprego não vinha apenas da classe menos favorecida. Pessoas de nível universitário, profissionais já estabelecidos me procuraram em busca de um emprego seguro e com vantagens, por quatro anos. Isto demonstra o quanto o povo vive longe de uma qualidade razoável de vida e da assistência obrigatória que o Estado tem o dever de dar e, também, longe de uma prática política sem favoritismos. A todos os pedidos apontava minha impossibilidade de atender, inclusive explicando sobre competências do legislativo, executivo e judiciário.

Tenho que reconhecer que houve um saldo positivo. Ninguém sai imune de uma campanha política. É uma experiência impar e valeu a pena vivê-la. Foi uma oportunidade para melhor conhecer minha cidade, seus habitantes, seus problemas e refletir sobre como modificar a situação que fica longe da tão decantada cidade da promissão. Foi, ainda, uma oportunidade para conhecer as pessoas e através deste conhecimento, valorizar algumas amizades. Na onda da política se descobre verdadeiramente quem é quem. Mudam valores, mudam ideais, ao tempo em que surgem novos valores e novas ideias sobre a vida e sua finalidade.

Conheci também muitos lugares antes nunca imaginados. Frequentei ambientes gays e com isto, aumentou minha admiração por esse segmento da sociedade, tão discriminado e desprezado. Nesses ambientes aconteceram coisas incríveis. As mulheres, de um modo geral, queriam saber se eu era "entendida". A esta pergunta, que foi feita várias vezes e sempre por mulheres, eu respondia: sou entendida em direitos humanos, em combate à discriminação, em igualdade de todos perante a lei.

Houve uma vez em que procurei chegar perto de um casal de homens várias vezes e sempre me intimidava com o enlevo com que se olhavam. Lá para as tantas, resolvi abordá-los e dar o meu recado: "desculpe atrapalhar este namoro, mas eu quero pedir o voto de vocês para mim. Sou ... (e desfilava meu currículo e programa) ... e finalmente queria que vocês pensassem no que eu lhes disse com o mesmo carinho com que estavam se olhando". Eles, a princípio ficaram calados e depois que saí de perto, vi que trocaram algumas palavras e um deles veio à mim e disse que, pelo que eu tinha dito no final do meu discurso, resolveram votar em mim. Nunca tinham se deparado com este tipo de comportamento de uma pessoa não "entendida".

Eu tinha tratado o namoro deles como normal e isto significava que os respeitava. Se fosse eleita, com certeza iria defende-los na Câmara Distrital.

Outros "causos", entre os muitos, vale à pena contar: Uma mulher grávida perguntando se podia colocar meu nome em sua filha, mas, só se eu ganhasse. Outra que queria um emprego, mas não trabalho e, se eu assinasse um papel prometendo isto, ela me arranjaria mais de 5.000 votos. Outro se prontificou a me ajudar sem nada em troca e, no dia seguinte apareceu com um carro velho dizendo que havia comprado para fazer minha campanha e pediu 1.500 reais para pagá-lo. É claro que não foi atendido e desapareceu do comitê e da minha vida.

Um homem, fanático do Pró-vida, avançou em uma de minhas irmãs, marinheira de primeira viagem na distribuição de panfletos, e rasgou meu folder me chamando de aborteira e apoiadeira de casamento de ''veados". A reação dela foi de pânico e indignação. Quando tudo se acalmou, uma moça que estava olhando a cena veio a mim e pediu o meu folheto dizendo ter sido vítima de aborteiro clandestino e que era a favor do aborto legal. Se eu defendia isto, o seu voto era meu.

Enfim, foram três meses de intenso trabalho, poucas horas de sono, alguns dissabores e grandes descobertas de lugares, de pessoas, de objetivos. Olhando para trás, posso afirmar não ter do que me arrepender. Gastei todo meu cheque especial, estou ainda com algumas dívidas (que pagarei no mesmo espaço de tempo) mas, valeu a pena pois o mundo da política é fascinante e só através dela é que conseguiremos alcançar a justiça social e a real democracia. Ao analisar os votos dos meus mais de seiscentos concorrentes, chego à conclusão de que, sem infra-estrutura, sem dinheiro, sem o aparelhamento do governo nem de qualquer outra entidade e em tempo reduzido, não fiz má figura.

Será que apenas o "ser eleita" é que seria vitória? Ou será que, também não é vitória esse aprendizado que não foi só meu, mas também, daqueles que estiveram durante esses meses vivendo a mesma experiência? De minha parte, se eu não tivesse enfrentado o desafio, se não tivesse desarrumado (literalmente) minha vidinha de aposentada e integrante do CFEMEA, não teria esta história para contar. Saber que 622 pessoas no Distrito Federal acreditaram que eu poderia ser/fazer uma política diferente como era o meu lema, e que comigo, poderia ser um começo de alguma mudança para mulheres e homens excluídos social e politicamente é, certamente, uma vitória. Lembrando tudo que passei e passaram minhas amigas e amigos, concluo que valeu a pena.

Como diz o poeta, "tudo vale a pena quando a alma não é pequena." Valeu.

 

Iáris Ramalho Cortês é Advogada e fundadora e membra do Conselho Deliberativo do CFEMEA

Ilustração de Stephanie Pollo

Fonte: Jornal Fêmea N. 70, p. 6 e 7 - novembro/98


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