Apesar de documentos orientadores incluírem possibilidades de discussão sobre gênero, defasagem na qualificação profissional afeta diretamente a abordagem das educadoras em sala de aula
Jornal da USP
Texto: Maria Trombini*
Arte: Diego Facundini**
Uma menina e um menino pequenos brincam na areia com baldes e pás. Foto: Arek Socha/Pixabay
Apesar de serem sujeitos fundamentais no processo de formação das crianças, muitas educadoras não recebem instrução adequada para trabalhar diferentes recortes sociais em sala de aula. Segundo a pesquisadora Camila Lisboa, boa parte das professoras enfrenta sozinha os desafios de desconstruir estereótipos de gênero dentro da educação infantil.
Camila é formada em Pedagogia pela Faculdade de Educação (FE) da USP. Sob orientação da professora Marília de Carvalho, ela desenvolveu a dissertação de mestrado intitulada Olhares cruzados para as políticas públicas sobre gênero na educação infantil municipal: os documentos para as infâncias produzidos pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo sob a ótica das professoras. A dissertação foi apresentada ao Programa de Pós-Graduação da FE, na linha de pesquisa Educação e Ciências Sociais: desigualdades e diferenças, em 2024.
Os documentos analisados na pesquisa referem-se às políticas públicas curriculares, que norteiam o fazer pedagógico dos professores nas escolas. No ensino fundamental e no médio, os documentos abordam principalmente questões da estrutura curricular, como metodologias e conteúdos a serem abordados. Já na educação infantil, eles exploram os entendimentos sobre espaços de convivência, infância e os objetivos da educação nos primeiros anos de vida.
Camila explica que discutir gênero com as crianças não se refere a abordar tópicos específicos que poderiam, por exemplo, resultar em uma sexualização precoce. Na infância, os papéis de gênero aparecem através do simbolismo binário de coisas atreladas unicamente ao masculino ou ao feminino, como cores, roupas, brinquedos, atividades e comportamentos.
Como o foco da pesquisa era investigar o entendimento das professoras da rede pública sobre os materiais norteadores, a pesquisadora entrevistou oito educadoras, de diferentes unidades escolares espalhadas por São Paulo. Nas respostas, ela encontrou uma grande contradição: as professoras têm o desejo de desconstruir os estereótipos, mas se sentem pouco capacitadas para explorar a temática. Entretanto, já existem documentos norteadores que mencionam algumas maneiras de abordar papéis de gênero com as crianças.
Camila Lisboa tem longos cabelos encaracolados, repartidos de lado, e usa uma blusa preta. Camila Lisboa - Foto: Arquivo pesoal
“É preciso entender que as políticas públicas são insuficientes quando não estão atreladas a outras ações. Dentro da rede municipal de São Paulo, há um espaço formativo remunerado para as professoras, que é um grande diferencial. Esses espaços têm que ser fortalecidos e essas discussões têm que aparecer, para que os educadores não só conheçam os documentos, mas possam também trazer provocações e avançar o debate”, argumenta Camila.
O que dizem os documentos norteadores?
A pesquisadora destaca dois documentos de maior relevância durante os trabalhos: os Indicadores de Qualidade da Educação Infantil Paulistana e o Currículo da Cidade.
Indicadores de Qualidade da Educação Infantil é um documento que foi desenvolvido no nível federal e, posteriormente, adaptado às realidades dos estados e municípios. Ele é um instrumento de autoavaliação participativa, ou seja, os integrantes da comunidade escolar (crianças e seus responsáveis, docentes, gestores e a própria Secretaria Municipal de Educação) se reúnem para discutir os tópicos abordados no material. Um dos pontos apresentados discute raça e gênero. Segundo a pesquisadora, há uma abordagem mais incisiva no debate sobre racialidade, enquanto as questões de gênero aparecem de forma mais sutil.
O Currículo da Cidade apresenta cenas do cotidiano escolar, o que dialoga com os elementos do dia a dia dos professores, a fim de facilitar a compreensão e a implementação das abordagens. O documento possui uma passagem específica para tratar das questões de gênero. “Ele traz diversas provocações: como são organizados os espaços e materiais para as crianças? De que forma são apresentados? Há distinção entre brinquedos para meninos e para meninas?”, explica Camila.
A pesquisadora argumenta que a educação infantil é um espaço oportuno para superar barreiras não só de gênero, mas também de raça e/ou classe. “Estão entrelaçados gênero, raça, questões sociais e de inclusão, eles dialogam um com o outro. E a escola é o lugar da convivência e da socialização entre as crianças. A rede dialoga com a pedagogia e a sociologia para tentar superar esses padrões de gênero, não mais dividindo entre meninos e meninas. Todas elas têm acesso às mesmas experiências”, orienta.
Desafios compartilhados
Camila afirma ter encontrado vários pontos convergentes ao analisar os relatos das educadoras. Para melhor explorá-los, ela os organizou em quatro eixos temáticos principais.
O primeiro apontava para o entendimento das professoras sobre os materiais. A maioria das entrevistadas respondeu que desconhecia discussões de gênero nos documentos. Entretanto, elas souberam mencionar ocasiões em que observaram estereótipos sendo reforçados nas interações entre as crianças. “Por exemplo, elas ouviam comentários como ‘Você é menina e está brincando com isso? Você é menininha, não pode!’, e intervinham nessas situações”, conta a pesquisadora.
O segundo ponto explorado revela que as professoras viam o ambiente escolar como um espaço privilegiado para ultrapassar barreiras de gênero e queriam abordar esse tema com as crianças, mas não se sentem preparadas para essas atividades. Por isso, grande parte das intervenções partem da iniciativa própria de cada professora, ao pesquisar abordagens, buscar cursos ou dialogar com colegas de profissão.
A terceira discussão deriva do desamparo sentido pelas professoras, pois coloca em evidência a qualidade das condições de trabalho. “Elas mencionavam o tempo todo que gostariam de ter mais cursos de capacitação e materiais para trabalhar as temáticas, como livros e brinquedos. Também apontaram que, pelo número de crianças em sala, muitas vezes elas não conseguiam ter um olhar mais atento para as dinâmicas”, cita a pesquisadora.
O último tópico aborda o tabu social em relação a identidades de gênero na infância. Segundo Camila, muitas famílias têm dificuldade de perceber as discussões como algo pertinente à educação das crianças, o que acaba refletindo nas escolhas feitas pelas professoras. Ela relembra um episódio em que o pai de um dos alunos questionou a participação dos meninos em uma brincadeira com bonecas: “Havia uma votação para escolher as brincadeiras e, um dia, as crianças escolheram a caixa de bonecas. O pai de um dos meninos não gostou e criou-se todo um debate na escola”.
A pesquisadora avalia que há uma forte movimentação de um “ativismo antigênero”, em que desinformações são disseminadas a fim de causar uma espécie de pânico moral. “Nas eleições de 2018, ressurgiu a história do chamado ‘Kit Gay’, por exemplo. O movimento Escola Sem Partido promoveu uma caçada aos educadores, falando para vigiar e gravar as aulas. Quando isso chega para os professores, que já não sentem que têm propriedade sobre o assunto, eles não vão se sentir à vontade para tentar aprofundar as discussões”, afirma.
Mesmo que digam não conhecer os materiais em profundidade, as ações em sala de aula mostram que as professoras da educação infantil tentam superar as barreiras de gênero. “Num mundo ideal, as políticas em nível macro deveriam fortalecer orientações estaduais e municipais, enquanto as políticas em nível micro dialogam com os professores para elaborar e executar as intervenções. Para não só ‘ir levando’, mas de fato construir um espaço formativo de qualidade”, defende Camila.
*Estagiária sob supervisão de Silvana Salles
**Estagiário sob supervisão de Simone Gomes