Simone Deos, uma das criadoras do Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento - IFFD, explica o papel do instituto e sustenta: é possível afastar os mitos que fazem da Economia um saber hermético e manipulado – e as sociedades podem recuperar controle sobre a moeda e o sistema financeiro
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Simone Deos em entrevista a Gabriel Brito, no Correio da Cidadania
Repleto de demandas reprimidas, o governo Lula inicia sob fortes pressões sociais em favor da retomada de um modelo econômico que reduza a precarização da vida. No entanto, é cercado por pressões do grande capital, em especial o financeiro, que se agarram a dogmas recém-aplicados à agenda política e econômica, alguns deles sem parâmetro internacional algum, a exemplo do teto de gastos, autonomia do Banco Central e taxa de juros. É sobre esse grande foco de disputa pelo Estado que o Correio da Cidadania entrevista a economista Simone Deos, do Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD).
“Os modelos macroeconômicos trabalhados na academia têm uma certa sofisticação matemática para lhes conferir status de ciência, de algo inacessível, a não ser para alguns poucos muito treinados. Mas as ideias que são difundidas aos quatro ventos são rasas e profundamente equivocadas. Não se baseiam no funcionamento real da economia. Não levam em conta o papel central do Estado, as funções efetivamente desempenhadas pelo Tesouro Nacional, pelo Banco Central. Negam o poder que o Estado de fato tem”, explicou.
Na visão do IFFD, grupo constituído por pesquisadores e economistas de diversas universidades, o atual modelo macroeconômico representa uma visão ideológica que nega o papel do Estado, mas na verdade o coloca apenas a serviço de interesses particulares, pouco conectados ao funcionamento real da economia. Mudar essa visão é, na visão de Simone Deos, professora associada da do Instituto de Economia da Unicamp com pesquisa em teoria monetária, será fundamental para que o governo Lula consiga reorganizar um país cuja classe trabalhadora se vê cada vez mais excluída e precarizada.
“O teto de gastos precisa acabar como instrumento legal e de barganha política. E como referência para pensarmos o país. É um equívoco de A a Z pensar que o objetivo de um país é ter um ‘desempenho fiscal sustentável’. Em primeiro lugar porque 99% (para ser comedida) das pessoas que repetem isso não têm a menor ideia do que quer dizer. E depois porque o objetivo do país é o desenvolvimento social. O resto são meios. Políticas para atingir esse fim”, afirmou.
A entrevista completa com Simone Deos pode ser lida a seguir.
Em que consiste o trabalho do IFFD e como resume suas propostas, enviadas ao presidente Lula?
O IFFD trabalha para aprofundar e difundir o conhecimento de uma macroeconomia que, além de ser teórica e empiricamente embasada, é funcional ao país, à grande maioria da sociedade brasileira. Entendemos que é crucial ampliar o acesso a esse conhecimento, para além das fronteiras acadêmicas – onde ele é hoje ainda, infelizmente, também restrito. Também procuramos contribuir para formular políticas públicas – e políticas macroeconômicas são políticas públicas – que tenham por base os fundamentos corretos.
Por isso propusemos, na carta aberta ao presidente Lula, a adoção de uma política macroeconômica de garantia de emprego, que atende exatamente a uma angústia manifestada por ele durante a campanha. O capitalismo vai evoluindo, se desenrolando no tempo histórico e, se por um lado se mostra inovador, por outro mostra-se concentrador de renda e incapaz de incluir plenamente a população no mundo do trabalho. Isso gera problemas sociais graves, de várias ordens.
Uma política de garantia de emprego, derivada de uma visão funcional da macroeconomia e, especificamente, das finanças públicas, tem esse objetivo: garantir uma vaga de emprego para todos e todas que procurem emprego, independentemente de sua qualificação, experiência prévia etc.
Elas se contrapõem à macroeconomia vigente em que medida?
Nossa visão sobre um tema central do debate macroeconômico, que é o tema fiscal, é diametralmente oposta à visão dominante. Na visão dominante, parte-se do principio de que o governo é um “peso” para a economia e a sociedade, uma “máquina de aspirar” o dinheiro produzido pelo setor privado. Que “aspira” muito dinheiro, que é mal gasto. Vende-se uma visão falaciosa de que o dinheiro foi inventado pelo mercado e que o Estado veio depois na “história”. A partir daí está montado um cenário.
Os modelos macroeconômicos trabalhados na academia têm uma certa sofisticação matemática para lhes conferir status de ciência, de algo inacessível, a não ser para alguns poucos muito treinados. Mas as ideias que são difundidas aos quatro ventos são rasas e profundamente equivocadas. Não se baseiam no funcionamento real da economia. Não levam em conta o papel central do Estado, as funções efetivamente desempenhadas pelo Tesouro Nacional, pelo Banco Central. Negam o poder que o Estado de fato tem. Com isso, todas as suas políticas constituem variações sobre uma mesma ideia: a de que o Estado deve encolher.
Nossa abordagem é de que o Estado é o ponto de partida da análise macro. E que o ponto de chegada, o objetivo final, é a formulação de políticas econômicas que de fato contribuam para o projeto de desenvolvimento que se desenhou.
De acordo com o plano desenvolvido pelo IFFD, o Estado deveria tratar de desenvolver atividades e empregos que o mercado não promove ou não considera lucrativas. Como e quão decisivo seria isso no sentido de se construir uma economia e uma sociedade sustentáveis?
Isso é decisivo. O Estado tem que organizar o futuro da sociedade. Esse é o seu papel. Planejar e organizar a melhor forma de execução daquilo que será necessário para que a sociedade tenha um modo de vida sustentável e inclusivo. Não quer dizer que apenas recursos públicos serão usados. Mas certamente eles serão decisivos. Muitos gastos econômicos “não lucrativos” precisarão ser feitos – o que é sempre verdadeiro, mas se intensifica em certos momentos – para deslanchar esse movimento. O setor privado vem depois, quando a travessia inicial, mais arriscada, já foi feita.
Estamos diante de uma hegemonia de ideias econômicas que prescindiria das taxas de emprego – e consequentemente de consumidores -, historicamente verificadas em outros momentos de estabilidade do capitalismo? Enfim, um capitalismo cada vez mais distanciado da produção real?
As ideias econômicas dominantes consideram que o mercado de trabalho se ajustará a tudo. Se isso significa milhões de pessoas desocupadas, ou subocupadas, precarizadas, tudo bem. Elas devem ser atendidas por políticas sociais focalizadas, que garantam um mínimo de sobrevivência. E com isso se “resolve”. Mas de fato esse modelo, que busca o Estado mínimo e deixa parcela enorme da população à margem, gera várias crises. E apenas nessa hora, dizem os economistas “dominantes”, o governo pode gastar. Para salvar os ricos. Contudo, sabemos que isso vai gerando muitas tensões na sociedade, tensões políticas. Os resultados são muito visíveis. O tecido social se dilacera, rasga-se.
Como enxerga os discursos do chamado mercado, sempre muito amplificados pela mídia empresarial, neste momento de transição de governo?
Focados no seu próprio interesse. Única e exclusivamente. O que me chama mais a atenção é que a imprensa compra esse discurso de uma forma acrítica e o difunde para uma população que será basicamente prejudicada caso seja seguida a receita do mercado.
Como analisa a condução econômica do governo Bolsonaro à luz da cartilha propagandeada por Paulo Guedes e seus apoiadores durante estes quatro anos?
Um governo de destruição. Qual o legado positivo do governo Bolsonaro? Nenhum. Em todas as áreas, se olharmos os dados, analisarmos as séries históricas, fizermos comparações internacionais, o desempenho do Brasil sob o governo Bolsonaro é uma tragédia.
Paulo Guedes prometeu privatizações, e de fato entregou algumas. O mercado queria mais, mas já gostou do que veio – lucrou. E quanto ao país? Sua população?
O teto de gastos precisa acabar? Ele não foi uma mera abstração que mais serviu como uma ferramenta política a serviço de determinados grupos?
EO teto de gastos precisa acabar como instrumento legal e de barganha política. E como referência para pensarmos o país. É um equívoco de A a Z pensar que o objetivo de um país é ter um “fiscal sustentável”. Em primeiro lugar porque 99% (para ser comedida) das pessoas que repetem isso não têm a menor ideia do que quer dizer. E depois porque o objetivo do país é o desenvolvimento social. O resto são meios. Políticas para atingir esse fim. Ao invés de olhar resultados fiscais incessantemente, os “analistas de economia” e aqueles em geral preocupados com o país devem se preocupar com a nossa evolução, ou não, em indicadores relevantes de desenvolvimento: saúde, educação, ciência e tecnologia, cultura etc. O resto são tecnicalidades.
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