Estudo feito na USP analisa objetos domésticos utilizados pelas mulheres como ferramentas de resistência cotidiana
Jornal da USP - Publicado: 03/06/2025 às 17:01
Texto: José Adryan Galindo*
Arte: Daniela Gonçalves**
Diretoria do Instituto Profissional Feminino de São Paulo em 1911. A escola oferecia cursos como aprendizagem geral de costura, Educação Doméstica e Dietética da Dona de Casa para mulheres da classe trabalhadora. Foto: Anuário do Ensino do Estado de S. Paulo/Acervo Centro de Memória da Etec Carlos de Campos, São Paulo/SP
Nos séculos 19 e 20, a maioria das mulheres do Brasil tinha como função social o cuidado doméstico e familiar. Apesar disso, elas também usavam o espaço doméstico como forma de resistência. Uma pesquisa realizada por Viviane Aguiar, doutora em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, revelou que, entre 1870 e 1930, mulheres da classe média brasileira adquiriram autonomia por meio dos serviços de cuidado. O estudo se concentrou na análise de objetos usados pelas mulheres da época e sua importância para suas reivindicações.
Nos espaços reduzidos das cozinhas domésticas, objetos do cotidiano ganharam novos sentidos e se tornaram instrumentos de resistência. As chaves da despensa, por exemplo, deixavam de ser meros artefatos de controle para se transformarem em “cetros da rainha do lar”, conferindo às mulheres poder de organização da economia doméstica.
Os cadernos de receitas, por sua vez, registravam não apenas ingredientes e modos de preparo, mas também memórias e saberes femininos. E as chatelaines penduradas à cintura como joias utilitárias revelavam o prestígio social de quem as portava. “As chateleines eram objetos superinteressantes, joias que as mulheres usavam na cintura no fim do século 19”, conta Viviane, autora da tese.
Viviane Aguiar participou de projeto de pesquisa sobre objetos de cozinha - Foto: Arquivo pessoal
A pesquisa está ligada ao projeto Processamento de Alimentos no Espaço Doméstico, São Paulo, 1860-1960, sediado no Museu do Ipiranga. Os pesquisadores do projeto analisaram durante seis anos objetos de cozinha que fazem parte do acervo do museu e ainda não tinham sido estudados. A coordenadora dessa análise foi a professora Vânia Carneiro de Carvalho, que também foi orientadora da tese de doutorado de Viviane Aguiar. Ela entrou no projeto em 2018 e foi a participação nele que a motivou a fazer sua tese sobre o tema.
O estudo do Museu do Ipiranga rendeu inclusive a produção de um livro, ainda em fase de preparação. Intitulado Objetos de cozinha e biografias, nele os pesquisadores fazem a biografia social de 151 objetos de cozinha. A expectativa é que o livro seja publicado ainda neste ano.
Cadernos, chaves e chatelaines
A chatelaine era presa à roupa na cintura e servia para carregar chaves, tesouras e outros objetos domésticos - Foto: Acervo Museu Paulista/USP
Dentre os objetos que simbolizaram essa apropriação, as chatelaines mereceram capítulo à parte. Fabricadas em metal, prata ou ouro e adornadas com berloques, serviam simultaneamente como estojo de costura, porta-chaves e porta-retratos compactos. Na cintura das donas de casa de classe média, tornaram-se emblemas de um “feminismo doméstico” que valorizava o saber prático. “O que me surpreendeu foi perceber que, ao contrário do que se supunha, as mulheres usavam esses acessórios para visibilizar sua expertise na administração do lar”, comenta Viviane.
Além das chatelaines, outros objetos também foram apropriados pelas mulheres como ferramentas de organização e controle no ambiente doméstico. As chaves da despensa, por exemplo, simbolizavam autoridade e responsabilidade sobre a administração da casa. “A mulher que tinha a chave da despensa tinha um poder real sobre o abastecimento e a economia doméstica”, afirma a pesquisadora.
Esse controle era valorizado inclusive em anúncios publicitários e manuais de economia doméstica da época, que retratavam a dona de casa como gestora do lar. As chaves não eram apenas instrumentos de trancar armários, mas de controlar o que entrava e saía das cozinhas, servindo como dispositivos de poder cotidiano.
Outro objeto fundamental para essa agência feminina eram os cadernos de receitas. Mais do que registros culinários, esses cadernos funcionavam como arquivos de saberes familiares e espaços de afirmação individual. “Mesmo que a escrita fosse precária, muitas mulheres mantinham seus cadernos como forma de registrar conhecimentos e afirmar sua identidade”, conta a pesquisadora. O estudo analisou dezenas desses cadernos, que mesclavam receitas com anotações pessoais, treinos de caligrafia e comentários sobre o dia a dia. Para Viviane, eles configuravam uma espécie de “caderno de si”, em que as mulheres documentavam suas experiências, reafirmando sua presença no mundo mesmo em contextos de subordinação.
No percurso da tese, Viviane também investigou as interseções entre essa forma de resistência material e as correntes iniciais do movimento feminista brasileiro. Se, em meados do século 20, algumas vertentes defendiam a negação total da domesticidade, “vamos queimar os sutiãs e vamos acabar com os cadernos de receita”, outras percebiam na cozinha um terreno estratégico para reivindicações de direitos. “Elas se apropriavam daquilo que foi imposto para elas como forma de reivindicarem mais direitos”, afirma a pesquisadora, explicando como certas líderes feministas mantinham cadernos de receitas como prova da relevância social de seu trabalho.
Caderno de receitas de Anna Francisca de Almeida Leite Moraes, c. 1900 - Foto: Acervo particular
Caderno de receitas de Lola Vollet Shimada, c. 1930/1940 - Foto: Acervo particular
Divisão racial do trabalho
A pesquisa também destacou como as relações raciais atravessavam o cotidiano das cozinhas, marcando diferenças de poder entre as mulheres. A presença de empregadas domésticas negras, muitas vezes naturalizada nas casas da classe média paulistana, revela a permanência de uma lógica escravocrata. “Por muito tempo, até casas modestas tinham uma empregada doméstica, porque existia uma naturalização da necessidade de alguém para fazer os serviços mais pesados da casa”, explica Viviane.
Essa divisão racial do trabalho aparecia, inclusive, nos objetos usados pelas mulheres. As pencas de balangandãs, conjuntos de pingentes metálicos usados por mulheres negras, especialmente na Bahia, são analisadas como contraponto às chatelaines. Embora semelhantes na forma e função, os balangandãs carregavam outros significados, ligados à ancestralidade africana e à resistência cultural. A presença desses adornos, em fotografias e registros do período, evidencia outra dimensão de poder feminino, marcada por símbolos próprios e por práticas herdadas da diáspora africana.
A escultora brasileira Nicolina Vaz também usava chatelaine - Foto: Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro
Ao longo de cinco décadas, de 1870 a 1930, a análise de Viviane mostra que a resistência das mulheres estava enraizada na materialidade dos objetos que manejavam diariamente. De acordo com a estudiosa, por meio de chaves, cadernos e chatelaines, elas criaram esferas de autonomia e reconhecimento social, mesmo dentro de um sistema que as confinava ao espaço doméstico. Essa história revela não apenas a opressão sofrida, mas também a inventividade silenciosa.
A tese de Viviane Aguiar, intitulada As chaves, os cadernos e as mulheres: poderes e produção de si nas cozinhas domésticas (São Paulo, 1870-1960), foi defendida na FFLCH em fevereiro de 2025.
*Estagiário sob supervisão de Silvana Salles