Cinco mulheres trans e travestis entre 24 e 60 anos reinventam o turismo na capital do país em iniciativa inédita que transforma vivência e resistência em inclusão e reexistência. Uma parceria entre Casa Rosa, a ONG internacional Sama Sama e a Conscious Travel Foundation

No coração de Brasília, onde o concreto desenhado por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa ainda ecoa promessas de modernidade, nasce uma nova forma de caminhar pela cidade. É com salto firme — ainda que em meio a trajetórias marcadas por exclusão — que cinco mulheres trans e travestis entre 24 e 60 anos passam a ser facilitadoras de turistas e moradores em roteiros urbanos que mesclam a história da capital com suas próprias vivências. O projeto Trans Histórias Brasília transforma cada passo em reivindicação e cada parada em memória viva.
Realizada por três frentes — a Casa Rosa, a ONG internacional Sama Sama e a Conscious Travel Foundation —, a iniciativa prepara essas mulheres LGBTQIAPN+ para conduzirem passeios culturais por pontos emblemáticos da cidade, como o Palácio do Itamaraty e a Feira da Torre de TV, passando por espaços como Praça Zumbi dos Palmares, Galeria dos Estados, Museu Vivo da Memória Candanga e Praça dos Orixás. Não se trata apenas de ensinar a arquitetura, os presidentes ou os estilos artísticos, mas de ocupar espaços simbólicos — historicamente negados a elas — com presença, voz e narrativa.
Amanda Costa (24), Bebel Mendonça (60), Layla Rosas (43), Lorraine Macedo (56) e Nathália Vasconcelos (34) foram as escolhidas para iniciarem a capacitação. "Mesmo tendo nascido em Brasília, eu não tinha tanto conhecimento sobre determinados lugares. Foi só ao iniciar esse projeto que percebi o quanto também me era negado o direito à cidade. O turismo sempre foi um universo distante. Agora, é uma ferramenta de transformação pessoal e coletiva", conta Bebel, com o olhar de quem aprendeu, pela resistência, a reconhecer sua potência.
O projeto, que oferece capacitação com oficinas práticas e teóricas na Sociedade Pestalozzi de Brasília, prevê ainda uma bolsa de incentivo de R$ 4.950 para garantir a permanência das alunas. As formações ocorrem aos fins de semana, com encontros na Casa de Ismael e apoio de parceiros como o restaurante Faz Bem — Comida Vegana e o grupo Ernesto, que fornecem refeições e insumos alimentícios. A estreia oficial dos roteiros acontece em julho.
Mais do que guias turísticas, essas mulheres se tornam mediadoras de uma cidade que também precisa ser reeducada para vê-las. "Durante muito tempo, travestis foram vistas como símbolos de marginalidade. Eu mesma comandei a noite gay de Brasília em uma época em que isso era quase um ato de guerra. Estar nesse projeto é viver um novo tempo. E é uma alegria imensa fazer parte disso. A gente está aqui, buscando fazer o melhor, com dignidade, com força", explica Lorraine Macedo, que também integra o coletivo Força Trans, ao lado de mais de 80 mulheres.
Referência internacional
A referência do projeto vem de longe: iniciativas como a Unseen Tours, em Londres, onde pessoas em situação de rua conduzem roteiros alternativos pela cidade. A Sama Sama trouxe o conceito ao Brasil pelas mãos de Jayni Gudka, que acompanha de perto o desenvolvimento do programa em Brasília. Aqui, a proposta ganha uma dimensão mais profunda: além de combater o preconceito, insere as guias em um novo campo de atuação profissional — algo ainda raro para pessoas trans fora dos setores historicamente associados à beleza ou à culinária.
Para Nathália Vasconcelos, também participante da formação das contadoras de histórias/facilitadoras de passeios a pé, o impacto é inédito. "As áreas de profissionalização que geralmente são ofertadas às pessoas trans são sempre as mesmas. Turismo é algo raro, e isso muda tudo. Estou aprendendo algo novo, que pode me dar retorno e abrir caminhos que nunca imaginei. É uma nova visão de futuro", comemora, confiante no impacto, a partir do exemplo de outros lugares que esse mesmo curso foi ofertado a pessoas em situação de rua, imigrantes e vítimas de violência.
"É um respiro. Uma chance real. Há décadas que não víamos algo assim sendo oferecido para a nossa comunidade, principalmente para pessoas adultas trans. É um projeto que dignifica, abre portas, amplia horizontes. É sobre história, mas é também sobre futuro", pontua Pedro Matias, coordenador da Casa Rosa, espaço de acolhimento LGBTQIAPN+ que há anos atua em Sobradinho com iniciativas de formação, acolhimento, saúde e empregabilidade. Ao lado de Flávio Fleury, ele também atua como voluntário, realizando a tradução e viabilizando o diálogo entre Jayni Gudka e as mulheres selecionadas.
Ao longo do mês de julho, além dos roteiros turísticos, o projeto realizará painéis abertos ao público com representantes da Embratur, do Ministério do Turismo e lideranças LGBTQIAPN , discutindo formas de tornar o turismo brasileiro mais inclusivo e sustentável. Uma iniciativa que, ao mesmo tempo em que propõe novos modelos econômicos, ressignifica a forma como vemos — e vivemos — as cidades.
Nas palavras de Bebel, há um chamado que atravessa décadas de silenciamento e pulsa agora com brilho nos olhos. "Durante muito tempo fomos tratadas como se não tivéssemos caráter, como se não fossemos merecedoras de dignidade. Agora, estamos mudando isso. Cada rua que a gente pisa é uma afirmação de que pertencemos. Estamos conquistando, uma a uma, as portas que sempre estiveram fechadas pra nós. E não vamos parar por aqui", ela conclui.
Assim, Brasília ganha novas histórias, escritas por mãos que conhecem a dor do apagamento, mas também a beleza da reconstrução.