Grande parte da previdência privada aberta é gerida por instituições de agiotagem (agiota é o qualificativo que melhor descreve quem paga geralmente menos de 12% ao ano pelo dinheiro aplicado e cobra em redor de 400% ao ano pelo emprestado), mas existem instituições de previdência privada fechada, popularmente conhecidas como fundos de pensão, que podem parecer uma opção melhor.

 

Por Tibor Rabóczkay, professor aposentado do Instituto de Química da USP

Para os aposentados, Auschwitz? Este era o título do artigo que publiquei em nosso Jornal da USP em fevereiro de 2003. Considerações suscitadas por uma publicação do Financial Times, cujo autor pondera que, com 90% dos custos de saúde para o indivíduo médio nos países industrializados se dando nos últimos seis meses de vida, o debate sobre a eutanásia adquire uma dimensão econômica crescente e terrível.

Na nossa sociedade, afirma ele, o suicídio poderá parecer um caminho lógico para as pessoas protegerem seus dependentes (não gastando suas economias). Corro o risco de ser repetitivo, pois os ataques à aposentadoria continuam – e continuam com as mesmas alegações no decorrer de décadas. Recentemente, em diário de grande circulação, dois empresários de “sucesso” expressaram seus receios de um aumento real no salário mínimo com consequente aumento das aposentadorias e pensões. Outra autoridade de brilhante passado em governo liberal lançou ideia de, simplesmente, congelar as aposentadorias por alguns anos. O afligimento dos economistas liberais com a Previdência oficial, com propostas que beiram a insanidade, vem ecoado diariamente na imprensa também liberal de forma direta ou embutido em temor em face da “alarmante escalada do déficit da Previdência”.

Entre as soluções generosamente propostas:

“1) uma nova reforma da Previdência, para aumentar a idade de aposentadoria, eliminar a diferença de idade entre mulheres e homens e entre os regimes rural e urbano; 2) desvincular o salário mínimo do cálculo de benefícios previdenciários e assistenciais; […]” (“O Brasil está preparado para a crise que vem aí”, de Maílson da Nóbrega e João Pedro Leme, em “O Estado de S. Paulo”, 13/05/2025).

Economistas que concluam ou opinem do contrário perderam espaço na mídia liberal, cuja “liberdade de expressão” é severamente limitada pelos interesses dos anunciantes e de seus donos.

Há uma verdadeira prestidigitação contábil para tirar da cartola as provas do déficit da Previdência com seus malefícios para a economia. Paralelamente, se promove a tal da “previdência” complementar (também denominada privada), aberta, mediante a “capitalização”, um programa de contribuições acumuladas individualmente em contas pessoais, investidas para gerar rendimentos.

A “capitalização” possibilitaria “ao trabalhador acumular recursos financeiros para receber uma renda extra na aposentadoria”. Essa renda, porém, não é uma aposentadoria, como querem fazer parecer aos incautos, mas um misto de poupança e aplicações, e envolve risco. Risco de aplicações que dão prejuízo, risco de fraude, risco de falência da instituição e o risco inerente às incertezas do “longo prazo”. “Planejamentos a longo prazo” – adverte-nos Max Gunther em seu livro Os axiomas de Zurique – “geram a perigosa crença de que o futuro está sob controle”, mas “[…] É importante jamais levar muito a sério os planos a longo prazo, nem os de quem quer que seja”.

Apenas o Estado pode-nos oferecer garantia. Além disso, enquanto a aposentadoria oficial vai até a fim da vida, a “renda extra” da previdência privada é limitada pela contribuição-poupança feita pelo trabalhador, que limita seu consumo e bem-estar, para poder contribuir à “previdência” privada.

Grande parte da previdência privada aberta é gerida por instituições de agiotagem (agiota é o qualificativo que melhor descreve quem paga geralmente menos de 12% ao ano pelo dinheiro aplicado e cobra em redor de 400% ao ano pelo emprestado), mas existem instituições de previdência privada fechada, popularmente conhecidas como fundos de pensão, que podem parecer uma opção melhor.

Esses fundos são entidades sem fins lucrativos e se organizam sob a forma de fundação ou sociedade civil constituídas exclusivamente para empregados de uma empresa ou grupo de empresas, ou aos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, e para associados ou membros de pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial.

Contudo, servem de alerta os eventos envolvendo duas organizações poderosas desse tipo, o fundo de pensão Postalis, dos funcionários dos Correios, e o Petros, dos funcionários da Petrobras. Má gestão, eventuais interferências do governo, possivelmente fraudes, causaram-lhes bilhões de prejuízos. Prejuízos que oneram os segurados com o aumento da contribuição mensal ou diminuição do benefício planejado.

Os dois fundos não são os únicos a apresentar problemas. Exame do Tribunal de Contas da União (TCU), envolvendo 31 entidades fechadas de previdência complementar, revelou que metade delas apresenta extremos riscos de integridade decorrente da “baixa maturidade” dessas instituições no que diz respeito aos mecanismos de controle. A eventual materialização desses riscos pode resultar em “grande impacto e repercussões negativas em todo o sistema de previdência complementar”. Trata-se de ameaça inaceitável para o aposentado. É fácil concluir, portanto, que a Previdência, a aposentadoria, são assuntos importantes demais para serem deixados a cargo da cobiça privada ou governamental, devendo se manter sob a responsabilidade do Estado.

A “preocupação” dos que se batem por mais uma etapa no aniquilamento da Previdência Social é a “sustentabilidade financeira”. Como a Previdência oficial brasileira funciona no sistema de repartição, isto é, quem está trabalhando paga a aposentadoria de quem é aposentado, com o envelhecimento da população surge um déficit, pois aumenta o número de aposentados enquanto diminui o número de contribuintes. Esse déficit tem que ser coberto pelo governo, consequentemente sobraria menos verba para outras áreas como a infraestrutura, o que contribui para a aflição do “mercado”. Entenda-se, não para o mercado real de oferta e demanda de produtos e de serviços, mas para o “mercado” financeiro, nome de salão do frenético cassino financeiro, que busca ganhos a curto prazo se não instantâneos.

Evidentemente, a argumentação é elaborada para disfarçar que nos interesses desse “mercado” a “mão invisível que harmoniza tudo” cede lugar ao nervoso tamborilar num teclado e o ”investidor” pode mudar de posição em questão de pouquíssimo tempo. O adepto do capitalismo, liberalismo ou neoliberalismo – seja lá a designação que preferirem –, odiador de intervenções do Estado, de repente se lembra de que o dinheiro do Estado é útil para a construção da infraestrutura do País (para posterior privatização, obviamente), para socorrer as instituições do tipo “too big to fail”, para subvencionar áreas privilegiadas. E o “déficit” da Previdência oficial atrapalha tudo isso.

Desde a Constituição de 1988, a Previdência Social brasileira sofreu sete reformas. Reformas que propõem, de um lado, a limitação dos benefícios e, de outro, uma idade cada vez maior para o trabalhador poder usufruir da aposentadoria.

As propostas simplistas que se concentram no “crescimento” – não do País, como seus autores afirmam, mas dos lucros do capitalista – omitem-se em questões sociais importantes que ameaçam não só a classe assalariada ativa ou aposentada, mas o próprio capitalista ou liberal.

De um lado, devemos considerar a dificuldade de um trabalhador conseguir um emprego a partir dos seus, aproximadamente, cinquenta anos. Como estender a idade mínima para a aposentadoria sem garantir o emprego até tal idade? Uma exigência que não depende do segurado. Se, porém, o “idoso” conseguir emprego, um jovem terá oportunidade a menos. Consequentemente, ao ver seu pai recebendo uma aposentadoria miserável – nesta época de descrédito das ideologias, em que o crime organizado adquire cada vez maior participação na política e alguns grupos políticos vão cada vez mais se assemelhando a organizações criminosas –, o jovem sucumbe mais facilmente ao crime, que lhe promete inseri-lo na sociedade de consumo em questão de meses ou mesmo semanas.

Por outro lado, não é preciso ser especialista ou ter pós-graduação em universidade americana para entender que, perante suas perspectivas limitadas no tempo, o aposentado tende a reciclar seus ganhos em consumo e em lazer, alimentando a indústria de bens de consumo e o turismo. O aposentado contribui para a geração de lucro, empregos e impostos. Se o número de beneficiários aumenta, aumenta também a importância deles para a economia. Não pode ser diferente numa sociedade de consumo, e economia em que se produz para o consumo. Dito de outra maneira, a expressão “gastos previdenciários” – de presença tão insistente na mídia que nos evoca Goebbels – pode ser substituída por “investimentos previdenciários”, visto que o dinheiro do aposentado circula de imediato gerando empregos, impostos e lucros.

Um sistema econômico que substitui a análise crítica, as considerações morais e a responsabilidade social pelo desejo de acumular lucros a qualquer custo e cuja sobrevivência necessite o suicídio de aposentados, a exclusão de idosos, é um sistema fracassado, insustentável, imoral.

Reflitamos sobre tudo isso, pois só não se aposenta quem não envelhece, e só não envelhece quem morre jovem.

 

fonte: https://jornal.usp.br/artigos/um-sistema-economico-que-necessita-da-exclusao-dos-idoso-para-sobreviver-e-fracassado-e-imoral/


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