"O Brasil tem uma das legislações mais restritivas com relação aos permissivos legais para a interrupção voluntária da gravidez"


No Brasil, a interrupção da gravidez é permitida em três situações

 

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Correio Braziliense
postado em 26/09/2023 06:00
 

JACQUELINE PINTAGUY, socióloga, coordenadora executiva da Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (Cepia), membro do Conselho Editorial da revista Health and Human Rights da Escola de Saúde Pública de Harvard e Integra o Comité de Mortalidade Materna do Município do Rio de Janeiro

 

Enquanto a América Latina avança na descriminalização do abortamento, previsto na Argentina, Colômbia, Cuba, México, Uruguai e, no contexto internacional, este direito é reconhecido pela maioria absoluta dos países, o Brasil se destaca por ter uma das legislações mais restritivas com relação aos permissivos legais para a interrupção voluntária da gravidez, só permitida em função de gravidez por estupro, feto anencefálico ou risco de vida da gestante e, mesmo nestes casos, a gestante enfrenta inúmeros obstáculos para o seu atendimento pelo sistema de saúde. Consequência direta dessa restrição, o aborto inseguro é a quarta causa da mortalidade materna, que alcança níveis inaceitáveis em nosso país e afeta principalmente as mulheres negras e pobres. Se não vão a óbito ocupam porcentagem significativa dos leitos ginecológicos dos hospitais.

Cerca de dois milhões de mulheres foram internadas em consequência de abortos inseguros segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, de 2021. É evidente que esta situação é um problema de saúde publica e acarreta significativos custos sociais e econômicos para o país. Quantas mães vítimas do abortamento clandestino perdem suas vidas deixando filhos pequenos desamparados? Quantas meninas não chegam a vida adulta? E quantas sofrem consequências emocionais e severos agravos a saúde?

O aborto não deve ser visto como como se fosse um ponto fora do ciclo reprodutivo. Esta mesma pesquisa indica que uma em cada sete mulheres brasileiras até 40 anos afirmou já ter feito um aborto, sendo que 81% delas disse ter uma religião. De fato, a possibilidade de engravidar acompanha as meninas e as mulheres desde sua primeira menstruação.

A vida sexual e reprodutiva requer o acesso à informação e a métodos modernos de contracepção, bem como a atenção à gestação, ao parto e puerpério, a infertilidade, às infecções sexualmente transmissíveis, à menopausa e ao direito a interromper a gestação de forma segura, como recomenda a Organização Mundial da Saúde. Estas são demandas históricas inscritas já em 1986, na Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes.

É fundamental que as mulheres brasileiras sejam atendidas pelo sistema de saúde publica, para o qual contribuem, como cidadãs plenas de direito e não relegadas ao espaço sombrio e perigoso do mundo do crime, da clandestinidade do aborto inseguro, desprovidas de sua dignidade humana, vitimas de julgamento moral, violadas em seu direito constitucional a saúde e a integridade física e esmagadas pelo silencio cumplice de parcela significativa da sociedade, que prefere não se manifestar mesmo se, intimamente, apoia o direito de interromper a gestação em determinadas circunstancias.

Decidir livre de coerção se, quando e quantos filhos ter é um direito inalienável reconhecido pela Constituição Federal do Estado Brasileiro, e afirmado em compromissos internacionais, e que deve ser garantido através de leis e políticas públicas. Entretanto o exercício deste direito enfrenta obstáculos poderosos em uma disputa cruel na qual mulheres e meninas tem sido perdedoras. Os princípios de autonomia e justiça reprodutiva, tem sido escamoteados em nome de argumentos morais que não admitem o pluralismo democrático.

A ministra Rosa Weber em seu recente voto histórico a favor da descriminalização do aborto até as 12 primeiras semanas conclama a que, frente a um quadro patriarcal e discriminatório com as mulheres, que perdura mais de oito décadas , “impõe-se a colocação desse quadro discriminatório na arena democrática para uma deliberação entre iguais, com consideração e respeito. Agora a mulher como sujeito e titular de direito”.

Entretanto, o debate nacional sobre esta realidade crucial da vida reprodutiva das mulheres, meninas e pessoas com capacidade de gestar ignora a dimensão de saúde publica e de opção reprodutiva. E além de ignorar esta realidade e este direito, está contaminado por um viés autoritário e patriarcal, apoiado em valores morais e religiosos que pretendem excluir o direito a saúde, garantido na Constituição e tutelar as mulheres como se não fossem cidadãs plenamente capacitadas a tomar decisões responsáveis sobre suas vidas reprodutivas.

Neste debate, a dimensão do respeito a dogmas e religiões está contemplado pois, é importante lembrar que nenhuma mulher pode ser obrigada a fazer um aborto. Portanto todas as pessoas que se opõem a interrupção da gestação por motivos religiosos, por costumes ou quaisquer outra razão tem sua opção respeitada. Mas e o restante da população que considera que, em determinada circunstância, interromper uma gestação é a única possibilidade frente a enorme responsabilidade da maternidade?

Ao analisar a ADPF442 o STF estará ,de fato, reconhecendo ou negando o caráter laico ,plural e democrático do Estado brasileiro posto que, sendo inegável a dimensão de saúde publica do abortamento inseguro, resta discutir se, em nome de determinadas crenças religiosas, cabe a este Estado laico que rege uma sociedade plural e democrática, negar o direito de opção e violar o direito a saúde, a vida e a cidadania plena de todas as mulheres.

fonte: https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2023/09/5128395-artigo-aborto-uma-questao-de-direitos-cidadania-e-saude.html

 

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