Exigir direitos sexuais e reprodutivos é reivindicar políticas públicas que atendam as realidades das mulheres, meninas e pessoas que gestam
Mulheres têm protestado contra as frequentes tentativas, por parte de políticos conservadores, de retrocessos no direito ao aborto legal - Marcelo Camargo/Agência Brasil
Por Maria Fernanda Marcelino, Renata Reis e Sonia Coelho*
O histórico de luta no dia 28 de maio
No início da década de 1980, o movimento feminista e pela saúde das mulheres ganhou mais força no processo de articulação em termos internacionais. Nesse contexto, a Campanha Internacional por Contraceptivos, Aborto e Esterilização (Icasc) realizou o 4º Encontro Internacional Mulher e Saúde (IWHM) em 1984, com o tema “Não ao Controle Populacional… As Mulheres Decidem!”. A perspectiva da autodeterminação das mulheres sobre seus corpos, sexualidades e desejos era central. Nessa conferência de 1984 foi apontada a necessidade de respostas comuns e estratégias globais frente às violências patriarcais sobre a sexualidade, reconhecendo as particularidades e diferenças entre os grupos de mulheres ao redor do mundo.
O 28 de maio foi instituído como Dia Internacional de Luta pela Saúde da Mulher durante o 5º Encontro Internacional Mulher e Saúde, realizado em 1987 na Costa Rica, por iniciativa de organizações feministas como a Rede Mundial de Mulheres pelos Direitos Reprodutivos e Rede de Saúde das Mulheres Latino-Americanas e do Caribe (RSMLAC), com o objetivo de denunciar as desigualdades no acesso à saúde reprodutiva, combater a violência obstétrica e promover direitos como o aborto seguro e o parto humanizado.
No Brasil, a data do 28 de maio também marca o Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna, um grave problema de saúde pública: o país registrou 1.963 óbitos maternos em 2022. As principais causas continuam sendo hemorragias (25%), hipertensão (20%) e infecções pós-parto (15%), agravadas pela falta de pré-natal adequado e de acesso a serviços de emergência obstétrica, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, onde alguns estados atingem taxas de até 120 mortes por 100 mil nascidos vivos, segundo o Observatório Obstétrico Brasileiro, em relatório de 2023.
Essas desigualdades são profundamente marcadas pelo entrelaçamento da condição das mulheres, negras e pobres: mulheres negras representam 65% dos óbitos maternos e têm risco 2,5 vezes maior de morrer no parto comparado às brancas, enquanto mulheres pobres enfrentam três vezes mais dificuldades para acessar serviços especializados, segundo informes de 2023 da Fiocruz e OOB. A data, portanto, relembra lutas históricas pelos direitos das mulheres e evidencia a urgência de políticas públicas intersetoriais que enfrentem o racismo e a pobreza na saúde integral das mulheres.
A garantia do direito ao aborto é um processo de luta
Exigir direitos sexuais e reprodutivos é reivindicar o fortalecimento e aprimoramento de políticas públicas que atendam as realidades das mulheres, meninas e pessoas que gestam. A luta feminista pela descriminalização das mulheres e legalização do aborto faz parte dessa mesma forma de lutar por saúde pública de forma integral. E faz parte da luta histórica das mulheres para decidirem sobre suas próprias vidas, livres das opressões patriarcais, racistas e coloniais.
Temos como inspiração a luta das companheiras argentinas fundadoras da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito. Nossas companheiras argentinas garantem por experiência própria que o aborto legal, seguro e gratuito é uma reivindicação que aprofunda a democracia e só se concretiza quando está ancorada no debate, na luta e na pressão feminista ampla e popular.
A aprovação da legalização do aborto na Argentina em dezembro de 2020 foi resultado de um amplo e intenso processo de mobilização nacional e territorial, que animou e inspirou mulheres militantes feministas das Américas e do mundo todo. Mas a luta não se encerrou ali, pelo contrário: quando um direito é conquistado, nossa atenção e mobilização devem se manter firmes, atentas e vigilantes. Isso porque a reação conservadora e neoliberal sempre surge com alguma ofensiva, utilizando nossos direitos e vidas como ajustes para a crise capitalista, patriarcal e racista. As argentinas sabiam que apenas a legalização do aborto não bastaria, visto que, ainda assim, as mulheres e pessoas que abortam continuam sendo estigmatizadas, perseguidas e criminalizadas pela sociedade patriarcal conservadora.
No cenário do atual governo de extrema direita de Milei, a atenção e as tensões se amplificam. As mulheres seguem travando batalhas frente às ameaças de anulação da lei no poder legislativo, além das tentativas de sabotagem e o desmonte da política, com problemas de reposição de estoque de medicamentos e insumos necessários para garantir o acesso ao aborto a quem precisa.
Nós, aqui no Brasil, sabemos o que é isso. Por vezes, quando enfrentamos tentativas de retirada dos direitos das mulheres, esses ataques são taxados como “cortina de fumaça” para esconder processos políticos dados como “mais importantes”. No entanto, entendemos esses ataques como parte da política econômica de aumentar o controle sobre nossas vidas e corpos.
Ano passado, estivemos nas ruas contra o Projeto de Lei nº 1904 e as manobras criminosas de Arthur Lira para mudar a legislação brasileira vigente. O projeto afeta principalmente meninas menores de 14 anos (61,4% das vítimas de estupro no Brasil, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2023), muitas vezes violentadas dentro de casa (68,3%), obrigando-as à gestação forçada e à revitimização – em 2023, 17 mil meninas de 8 a 14 anos tiveram negado o direito ao aborto legal. Além de criminalizar vítimas e profissionais de saúde, o PL desmonta políticas públicas já frágeis, ignorando a questão como saúde pública e justiça reprodutiva, e aprofunda desigualdades raciais, uma vez que 56,8% das vítimas são negras.
A Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e Pela Legalização do Aborto denunciou de forma ativa a ação de grupos conservadores no Congresso, que atacam direitos conquistados e ampliam a violência institucional. Essas mobilizações, que ficaram conhecidas pela palavra de ordem “criança não é mãe”, foram exemplares para demonstrar a capacidade de das mulheres de enfrentar a extrema direita.
Os ataques aos direitos das mulheres acontecem em diferentes âmbitos da legislação. Atualmente enfrentamos uma estratégia de aprovar leis por vezes inconstitucionais, que têm por objetivo dificultar o acesso ao aborto já previsto em lei. Essa é uma maneira de amedrontar e criminalizar as mulheres, meninas e pessoas que precisam recorrer a esse direito. O medo e o constrangimento são utilizados por grupos de extrema direita para coibir quem deseja acessar esse direito, uma forma violenta de pressionar e culpabilizar as mulheres.
Em São Paulo, também enfrentamos isso ao nível estadual. Recentemente foi apresentando na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo o Projeto de Lei nº 444/2025, de autoria de Fabiana Bolsonaro (PL), que quer instituir uma campanha estadual de conscientização sobre os efeitos emocionais e físicos do aborto. Sob uma falsa abordagem de “proteção à vida das mulheres” e combate a violência obstétrica, se revela a armadilha conservadora: sob o discurso de humanização do parto, promove valores religiosos que criminalizam mulheres, especialmente as que buscam aborto legal.
Esse discurso alinhado a grupos antiaborto transforma uma política pública de saúde em instrumento de controle sobre os corpos, priorizando dogmas morais em vez de autonomia e saúde integral das mulheres. O PL abre brechas para que profissionais de saúde neguem o procedimento com base em “objeção de consciência”, aprofundando a violência institucional. Ou seja, usam a pauta da violência obstétrica para avançar uma agenda conservadora, disfarçada de proteção.
Mulheres conectam ações para avançar na luta feminista
Entre 8 de março e 17 de outubro de 2025, a Marcha Mundial das Mulheres (MMM) realiza ações no Brasil como parte da 6 ª Ação Internacional, com o lema “Marchamos contra as guerras e o capitalismo, por soberania dos povos e pelo bem viver”. No estado de São Paulo, o tema das atividades tem como eixo o fim da violência contra as mulheres e a autonomia sobre os corpos e sexualidades.
A MMM compreende que o debate da violência não esta isolado, mas faz parte de transformações sistêmicas de um contexto em que casos de violência, feminicídios e tantas outras formas de violências são resultados do sistema capitalista patriarcal e racista. Neste 28 de maio, militantes do movimento do estado de São Paulo realizaram ações que reivindicaram a legalização do aborto e reabertura dos serviços de aborto legal que seguem em ameça no estado. Participaram dessas ações mulheres dos municípios de São Paulo e região metropolitana, Campinas e Osasco.
Na capital, houve uma ação na frente da prefeitura para reivindicar a reabertura dos serviços de aborto legal realizado no Hospital Cachoeirinha, denunciando seus fechamentos e processo de sucateamento e perseguição. A luta por autonomia das mulheres conecta o debate da liberdade das pessoas, vinculando a luta pela legalização do aborto à superação da violência e à construção de políticas públicas de saúde para todas as mulheres.
*Maria Fernanda Marcelino, Renata Reis e Sonia Coelho integram a equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista e são militantes da Marcha Mundial das Mulheres.