Dia 28 de setembro é um dia importante na luta por direitos humanos: é o Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto.
Por Heloísa Buarque de Almeida, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP
Dia 28 de setembro é um dia importante na luta por direitos humanos: é o Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto. Por este motivo, a partir das 16h, me juntarei a outros grupos no Masp para um ato sobre essa luta. Temos ainda uma nova oportunidade de abrir o debate e, quem sabe, avançar nessa pauta: antes de se aposentar, a ministra Rosa Weber liberou para votação o julgamento referente a descriminalizar a interrupção de gravidez feita até 12 semanas da gestação – a ministra votou pela descriminalização e, na sequência, a análise do caso foi suspensa por um pedido de destaque do ministro Luís Roberto Barroso. Com isso, a votação segue para o plenário físico do Supremo Tribunal Federal.
A ADPF 442 é uma demanda ao STF para rever uma lei que é considerada produtora de violência e injustiças. Essa ação demanda que não seja criminalizado o aborto quando feito nas primeiras 12 semanas, argumentando que a criminalização viola a dignidade e a cidadania das mulheres e pessoas que podem gestar – com esta expressão, inclui-se pessoas que não se definem como mulheres, mas têm útero e podem engravidar.
A criminalização não impede que os abortos ocorram e calcula-se que sejam cerca de 500 mil por ano no Brasil. A lei que criminaliza ainda produz vários abortos inseguros que geram mortes – uma mulher a cada dois dias morre em decorrência de aborto inseguro – e outros problemas que discuto abaixo. Vou apresentar aqui algumas informações importantes, apoiada nos dados da campanha “Nem presa, nem morta” e pesquisas sobre o tema.
O aborto voluntário só é permitido no Brasil em três situações: gravidez decorrente de estupro, risco de morte da pessoa gestante e, desde 2012, no caso de fetos anencéfalos. Nos outros casos, ele é considerado crime, e há pessoas que são denunciadas e criminalizadas por tentarem alguma forma de interrupção da gravidez, como o caso das 10 mil mulheres em Mato Grosso do Sul (há um podcast da Folha de S. Paulo sobre o caso).
Segundo a pesquisa mais confiável e recente que temos sobre o tema, uma em cada sete mulheres no País fez um aborto até os 40 anos de idade – por isso chegou-se ao cálculo de cerca de 500 mil abortos voluntários por ano. Quem aborta? Na grande maioria, são pessoas que já têm filhos, têm religião e muitas são mulheres casadas ou com companheiro, e de todas as camadas sociais e níveis educacionais. Porque já são mães e cuidam de filhos, sabem que é preciso ter disposição e condições para criar e cuidar de uma criança, e muitas vezes se encontram em situações delicadas – não apenas em termos econômicos e de renda – para lidar com uma nova gestação e mais uma criança na família.
Nas minhas pesquisas, encontrei alguns casos. Lembro aqui de Joana (nome fictício), uma mulher de cerca de 30 anos que tinha muita vergonha de dizer que tinha feito um aborto, mas me contou ter casado grávida aos 15 anos, ter tido dois filhos e num período de intensa violência em seu casamento, engravidou novamente. Escondida do marido, Joana “tomou um remédio para menstruação descer”, um modo indireto de revelar o uso de um remédio abortivo. Joana teve condições de achar um medicamento seguro, mas conta do desespero que viveu até conseguir resolver o problema, inclusive porque tinha que esconder a gravidez do marido violento.
Suzana, aos 19 anos, solteira, sem filhos, de classe média, fez o procedimento com um amigo do namorado, estudante de medicina, e acabou tendo uma grave infecção, que a levou a ser hospitalizada, tendo corrido risco de morte. Resulta da criminalização, além das mortes, uma alta taxa de internações hospitalares – em 2021, 43% das pessoas que fizeram aborto precisaram ser internadas depois do procedimento, sem falar nas mortes. Tal situação gera inclusive um alto custo ao sistema de saúde: pelos cálculos do Ministério da Saúde, o custo de hospitalizações por complicações de aborto foi de R$ 486 milhões entre 2008 e 2017.
Se criminalizar o aborto não impede sua ocorrência, sabemos, por outro lado, que pessoas de camadas altas conseguem acesso ao procedimento de modo seguro através de clínicas e médicos especialistas que fazem o procedimento a um valor alto. Mesmo mulheres de classe média acabam recorrendo a abortos inseguros, como Suzana. A criminalização produz assim mais desigualdade e injustiça social, pois as mulheres e pessoas mais pobres, especialmente negras, periféricas e indígenas, vivem as consequências nefastas da criminalização, entre mortes maternas e adoecimentos posteriores decorrentes do procedimento ter sido feito de modo inseguro.
Outro dado importante é que onde o aborto foi legalizado – Portugal, por exemplo, mas também em países da América Latina como Uruguai – o número de abortos diminuiu após alguns anos, pois junto com a regulamentação deve acontecer mais acesso a informações e métodos contraceptivos mais seguros, evitando o aborto por repetição. Por não ser criminalizado, pode-se falar mais sobre o tema e as mulheres e pessoas que gestam terão mais acesso a procedimentos seguros e sem efeitos posteriores em sua saúde. Abortos feitos de forma segura e legalizada, com medicamentos eficientes e reconhecidos, são procedimentos de saúde muito seguros e raramente geram intercorrências médicas. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas 2% a 5% das pessoas que realizam o aborto com medicamentos confiáveis podem precisar de intervenção médica após o procedimento.
Assim, descriminalizar o aborto é também salvar vidas: vidas das mulheres e das pessoas que podem gestar, e na maioria dos casos já cuidam de outras crianças. Pessoas que abortam, muitas vezes, o fazem por já terem essa responsabilidade com outros filhos, e não devem ser punidas nem criminalizadas por isso. Por isso tudo, dia 28 de setembro é dia de luta. Uma luta por justiça social e pela vida das mulheres.