Luiza Bairros, 57 anos, gaúcha e uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU) assume um novo desafio. Agora, como ministra da Igualdade Racial pretende trazer para o governo toda sua experiência e luta contra o racismo e o sexismo no Brasil. A ministra ressalta a importância da aproximação entre a Secretaria de Promoção para a Igualdade Racial - SEPPIR e os movimentos sociais. “O que somos e fazemos dentro da estrutura do Estado é uma tradução do que os movimentos sociais, os movimentos de mulheres, os movimentos negros, os grupos LGBTT colocam”.

Fêmea - Fale um pouco da sua trajetória até o cargo de ministra?

Luiza Bairros - Fundamentalmente o que me trouxe até aqui foi a minha militância nos movimentos sociais. Ingressei no Movimento Negro Unificado (MNU) em 1979, mesmo ano que me transferi de Porto Alegre para Salvador. Militei no movimento negro até 1994, e nesse meio tempo iniciei a minha participação no movimento de mulheres em um grupo que existia dentro do MNU. Foi um dos primeiros grupos de mulheres negras na Bahia que realizaram um trabalho, na época, muito ligado aos bairros populares e as cidades do interior do estado. Tínhamos também um grupo de teatro que utilizávamos para levantar questões específicas da vivência das mulheres negras. Paralelamente a isso, eu era funcionária pública, sempre trabalhei no estado da Bahia, em um período rico, do ponto de vista do trabalho no governo do estado dentro da secretaria do trabalho, onde aproveitávamos todas as brechas para poder fazer as coisas que considerávamos importantes numa perspectiva mais progressista, e onde comecei a desenvolver meus interesses profissionais. Gerenciando projetos na área de capacitação para o trabalho, na área de microcrédito, organização de trabalhadores autônomos. Posteriormente, passei a trabalhar em um setor de estudos e pesquisas sobre o mercado de trabalho, que foi a área onde realizei a minha tese de mestrado.

Era essa a minha vida, o trabalho para a sobrevivência e a militância no movimento negro até 1994, quando ganhei uma bolsa de estudos e fui para os Estados Unidos, onde passei quatro anos para fazer um doutorado. Foi uma experiência muito importante, pois nos EUA tive contato com tudo que precisava naquele momento - uma literatura completa sobre as questões ligadas ao combate do racismo e enfrentamento das desigualdades. Pude conviver com pessoas negras de vários lugares do mundo, dentro de um programa dedicado a diáspora africana. Essa experiência colaborou muito para o fortalecimento de determinados conceitos, que, até hoje utilizo, e que contribuem para que eu possa ter uma compreensão mínima de como o racismo opera no Brasil.

De volta ao meu país, conduzi a minha carreira para outro sentido. Fiz um concurso público e fui ser professora na Universidade Católica de Salvador. Paralelamente a isso, a partir de uma provocação do movimento negro, comecei a fazer o trabalho de consultoria junto à Organização das Nações Unidas (ONU) - trabalho veiculado à preparação da III Conferência Mundial contra o Racismo, e então me inseri num trabalho como consultora para organizações internacionais.

Em 2008, surgiu outra possibilidade para que eu pudesse cooperar na luta contra o racismo. Fui trabalhar na Secretaria de Promoção da Igualdade (SEPROMI) no estado da Bahia. Foi um trabalho fantástico, do qual ainda não me desliguei. Foi uma experiência definitiva, onde colocamos em prática uma determinada concepção de como trabalhar na estrutura do Estado, em primeiro lugar sabendo que o Estado tem seus limites, e em segundo lugar numa perspectiva de respeito, autonomia dos movimentos sociais.

Fêmea - Quais os principais desafios que você vê para o governo avançar numa política de igualdade racial?

Luiza Bairros - Os desafios são inúmeros, mas colocaria três principais: primeiro admitir que o racismo e o sexismo são estruturantes nas relações raciais no Brasil, no estabelecimento das hierarquias. Se não conseguirmos isso, vamos continuar tendo muita dificuldade de fazer com que as políticas públicas revelem a dimensão que as desigualdades raciais têm no país. Por isso que é tão difícil ainda, apesar da abundância de informações, ver refletido nas políticas públicas toda essa gama de estatísticas sobre as desigualdades raciais. As pessoas podem, aqui ou ali, utilizarem isso nos seus diagnósticos, mas não conseguem refletir na formulação, implementação e monitoramento do processo da política.

O segundo desafio tem haver com a necessidade de separar os efeitos do racismo, com os efeitos da pobreza na vida das pessoas negras - entre os formuladores da política isso é uma dificuldade secular. Existe sempre essa tendência de achar a vida das pessoas negras “mais difícil” devido ao fato da maioria ser pobre, e nunca achar que existe essa variável que opera independentemente da inserção econômica da pessoa negra que é o racismo propriamente. Nesse sentido é muito importante ter esse apoio das estatísticas, das desigualdades, e aprofundar, sofisticar um pouco mais esses estudos, exatamente para estabelecer essa separação entre o que é efeito da inserção econômica e o que seria efeito do racismo, que é algo que atinge qualquer pessoa negra de qualquer classe social. O terceiro desafio está relacionado com a própria estrutura do Estado, a forma como ele está organizado. Quando se trata de políticas para as mulheres, de igualdade racial, não estamos tratando de uma dimensão da vida das pessoas ou de uma área da qual se vive. Estamos tratando da vida na sua expressão mais ampla. E a estrutura do Estado, seja como está sendo representada no governo federal ou estadual, ela é toda compartimentada. Educação é vista como uma área que não, necessariamente, se comunica com Saúde ou com Segurança. Isso é uma dificuldade muito grande. Hoje eu percebo isso com menos dificuldade, mas vejo como uma expressão da sofisticação de nossa proposta. De como ela checa os dados do ponto de vista da superação da sua forma de organização. Isto está completamente superado, não tem nada mais haver com tudo o que se diz hoje. Em matéria sociológica aponta para imbricação de todas as dimensões da nossa vida. No entanto, o Estado ainda é de certa forma, obrigado a se organizar como se as coisas fossem separadas umas das outras. Com o tipo de política pública que se pretende, que se traz para dentro do Estado, passamos o tempo todo questionando esse tipo de separação. E na prática enfrentando todas essas dificuldades que essa separação representa. Como eu vou pensar hoje a saúde da população negra que está, do ponto de vista da sua implementação, muito ligada ao Ministério da Saúde, mas que não pode de maneira nenhuma ser desconsiderada no Ministério da Educação, porque eu tenho que ter esses conteúdos inseridos nas escolas da área de saúde - as que formam os profissionais de saúde. Às vezes é extremamente difícil criar essa cadeia, implementando essa ideia da igualdade racial, fazendo com que isso passe por dentro de todos os setores. E aí se consegue construir efetivamente um resultado que tenha efeito na vida das pessoas negras.

Uma boa parte do nosso esforço, e eu não canso de repetir - o que nós somos e fazemos dentro da estrutura do Estado é uma tradução do que os movimentos sociais, os movimentos de mulheres, os movimentos negros, os grupos LGBTT colocam. E quando se faz a tradução do movimento social para dentro da estrutura do Estado existe um determinado significado destas bandeiras: de quando e como elas foram criadas, que se perdem quando chegam aqui dentro. Pois a tradução tem muito disso. São palavras mudadas, sentidos alterados para que esse texto seja entendido por outro público que não faz parte daquela realidade de onde isso foi criado inicialmente. Então é dentro desse espaço que a gente navega. O nosso papel, então, é buscar, o máximo possível aproximar esses sentidos dessas bandeiras históricas dos movimentos, da forma como elas foram criadas para sentidos possíveis de serem entendidos aqui. O importante é como eu elaboro esse tipo de coisa para entender o meu papel e não me angustiar com ele, e também de ter certa compreensão das críticas que o movimento social faz. Essa permanente insatisfação do movimento social do que o governo faz. Ela tem de ser entendida nesse contexto. É uma insatisfação legítima, no entanto.

Fêmea - Quais são as principais metas da SEPPIR?

Luiza Bairros - Em primeiro lugar é termos um trabalho interno, aqui no Ministério, no sentido de criar formas de comunicação e estabelecer noções de complementaridade entre os trabalhos que são realizados internamente. É um pouco de sinergia, tem que criar não tem jeito. A segunda meta é reelaborar as nossas formas de comunicação com os demais Ministérios - estabelecer determinadas prioridades e reformatar a nossa relação com os Ministérios, buscar reconfigurar o que existir de política, de programa em nosso beneficio, mas também de criarmos e oferecermos propostas para esses parceiros ministeriais. O terceiro aspecto tem haver com a relação da SEPPIR com os movimentos sociais, com os intelectuais negros, que é uma relação que também precisa ser colocada, talvez, em outros termos para que essa distância que os movimentos sociais sentem em relação à SEPPIR possa ser diminuída.

Fêmea - Que espaços vão ter a participação e o controle social na construção da política de igualdade racial?

Luiza Bairros - O Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR) é o primeiro lócus dessa ideia do que é o controle social das políticas públicas de igualdade. Agora para que o CNPIR passe a exercer esse papel ele vai ter que ser abarcado pela própria SEPPIR. Temos que nos organizar internamente, e nos tornar mais transparentes para que o controle se exerça. A SEPPIR não tem informações que estejam disponíveis para o público. Consequentemente, isso cria uma impossibilidade das pessoas fazerem esse controle e mais particularmente o Conselho. É preciso o assenhoreamento de um comitê de acompanhamento e monitoramento do Plano de Promoção da Igualdade Racial para saber como esse comitê esta efetivamente caminhando. Estou tentando tornar disponível e acessível aqui para dentro um sistema de acompanhamento do Programa Brasil Quilombola que também é uma informação que nunca veio à público, e ela tem que ser disponibilizada. Então para que o controle social ocorra não depende unicamente da sociedade civil, mas depende dos instrumentos criados na SEPPIR, para tornar a informação acessível, transparente. Acredito que precisamos de uns seis meses completos de um trabalho voltado para o interno para modificar a relação com a sociedade.


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