A ministra presidenta do Superior Tribunal Federal marcou o início do julgamento da ação que pede a descriminalização do aborto para o dia 22/9/23 na modalidade virtual, sem debates

 

A ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Constitucional) 442 foi protocolada pelo Psol e pede a anulação de 2 artigos do Código Penal que determinam a prisão de quem faz o procedimento até o 3º mês de gestação.

Conforme a lei brasileira, desde a década de 1940, o aborto só é permitido em 3 casos: gravidez decorrente de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia do feto (condição esta incluída na legislação pelo STF em 2012). A ação que tramita na Corte questiona os artigos 124 e 126 do Código Penal. Os dispositivos determinam pena de 1 a 4 anos de prisão para médicos que realizem o procedimento e de 1 a 3 anos para a mulher que fez o aborto ilegal.

A menos que algum ministro peça vista (mais tempo para análise) ou destaque, o que levará o caso ao plenário físico, o julgamento ocorrerá até 29 de setembro, última semana de Rosa Weber na Corte. A expectativa é que o julgamento não seja finalizado neste período. No entanto, a ministra optou por pautar a ação para depositar seu voto antes de se aposentar, o que deve ocorrer até 2 de outubro.

Saiba mais sobre a ADPF 442 AQUI

 

 

ADPF 442: 76% DOS GRUPOS QUE ENVIARAM POSIÇÃO AO STF SÃO FAVORÁVEIS À DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO

Organizações defensoras dos direitos humanos pressionam o Estado brasileiro a acolher quem aborta – sobretudo mulheres negras

Por Jess Carvalho

 

Desde 2017, quando a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 começou a tramitar, o Supremo Tribunal Federal (STF) recebeu 83 solicitações de organizações da sociedade civil, partidos políticos e outros interessados em ingressar na ação como amicus curiae (amigos da Corte, em tradução livre). De acordo com levantamento do Catarinas, 63 dos peticionários são favoráveis à descriminalização do aborto até a 12ª semana, como a matéria propõe – número que representa 76% do total.

Amicus curiae é uma modalidade que permite que terceiros colaborem com o processo, apresentando informações que contribuam para o debate da matéria constitucional a ser apreciada pelos ministros. Cabe à relatoria admitir, por meio de despacho irrecorrível, a manifestação de setores representativos da sociedade. 

“Sabemos que a perspectiva dos direitos humanos e especialmente dos direitos de mulheres e pessoas que gestam está cada vez mais ausente no parlamento devido ao avanço de posições ultraconservadoras”, fala Amanda Nunes, coordenadora do projeto Cravinas – Clínica de Direitos Sexuais e Reprodutivos da Universidade de Brasília (UnB), destacando a importância de a discussão ser acolhida pelo judiciário.

Segundo ela, as petições constituem um importante “banco de consultas” para os ministros, pois as peças apresentadas por setores silenciados nas casas legislativas trazem argumentos variados e cientificamente embasados. A advogada entende que o Supremo está diante da possibilidade de “democratizar o debate constitucional” a partir de pontos de vistas interseccionais sobre aborto.

Em 15 de setembro, 36 peticionários foram admitidos pela relatora da ADPF 442, a ministra Rosa Weber, sendo que 11 deles são contrários à descriminalização, enquanto 25 são favoráveis.

Melina Fachin, pós-doutora em democracia e direitos humanos e professora da Universidade Federal do Paraná, explica que não é possível precisar quanto tempo o julgamento pode levar, por uma série de variáveis. “Cada um dos ministros pode fazer o seu pedido de vista – há agora uma alteração regimental importante, que limita em 90 dias o pedido de vista –, mas esses prazos, em relação a julgadores, tendem a ser entendidos também como prazos impróprios”, comenta. Em outras palavras, os ministros não sofrem sanções quando descumprem esse prazo.

Histórico

petição inicial foi protocolada em março de 2017 pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), representado pelas advogadas Luciana Boiteux e Luciana Genro, em aliança com o Anis – Instituto de Bioética, representado por Gabriela Rondon e Sinara Gumieri.

Em 2018, às vésperas da eleição de Bolsonaro, o STF abriu as portas para uma audiência pública, onde ouviu 54 representantes de diversos setores da sociedade a respeito do tema, sendo 17 contrários e 37 favoráveis à legalização – relembre a cobertura do Portal Catarinas, que esteve em Brasília na ocasião.

Desde então, a expectativa do movimento feminista para que a ADPF seja pautada é grande, e Rosa Weber decidiu fazê-lo no simbólico mês de setembro – 28 é o Dia Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe. Em 12 de setembro, a matéria foi liberada para julgamento pela relatora. Agora só falta marcar a data, e as fontes ouvidas pelo Catarinas esperam que seja ainda em setembro, antes da aposentadoria de Weber, que deve acontecer até o dia 2 de outubro.

O ministro Luís Roberto Barroso será empossado presidente da Casa justamente no 28.

“Geralmente, quando um ministro se aposenta ou deixa a relatoria de um caso, outro ministro é designado para ocupar essa posição e assume por sucessão a relatoria, mas a presidência do STF, por suas prerrogativas regimentais, pode influenciar na marcação da pauta e mesmo na escolha do novo relator, ainda que não seja comum”, explica Melina Fachin.

Conforme noticiado pelo Catarinas, movimentos sociais vêm pressionando o presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT) a nomear uma ministra negra como sucessora de Weber, já que o cargo nunca foi ocupado por uma mulher negra antes. Três juristas são indicadas pela campanha Ministra Negra Já!, lançada pelo movimento Mulheres Negras Decidem (MND): a juíza carioca Adriana Cruz, a promotora baiana Lívia Sant’Anna Vaz e a advogada gaúcha Soraia Mendes.

Cenário 

“A gente enfrenta os fundamentalistas e tem sempre muita luta pra fazer, mas já termos saído do governo Bolsonaro nos sinaliza que é um momento de avanço”, diz Boiteux. As expectativas da advogada da ADPF, que também é vereadora do Rio de Janeiro pelo Partido Socialismo e Liberdade, são de que Weber deixe “um voto muito favorável” antes de se aposentar e, em seguida, outro ministro peça vista, suspendendo o julgamento por até 90 dias.

“Rosa Weber é uma das poucas mulheres, hoje, no Supremo – acho que ela tem uma dívida histórica com as mulheres brasileiras”, argumenta Boiteux.

Rosa Weber. Foto: Carlos Moura/SCO/STF

Para a vereadora, é simbólico que o julgamento encerre a carreira da presidenta no STF. Ela também espera que os votos de Cármen Lúcia, Roberto Barroso, Gilmar Mendes e, quem sabe, Dias Toffoli, sejam favoráveis à descriminalização do aborto. “Penso que temos que disputar os demais votos, acho que está tudo em aberto ainda.”

Em 2016, Rosa Weber votou a favor da tese de que aborto até o terceiro mês de gravidez não é crime. “O STF, na temática do aborto e em questões relacionadas, como a pesquisa com células-tronco embrionárias, até então proferiu decisões consistentes com a ciência e com os direitos fundamentais de mulheres e pessoas gestantes”, resgata a advogada Amanda Nunes.

A professora Melina Fachin acrescenta que um dos papéis do STF é justamente renovar sua jurisprudência ao longo dos anos, refletindo as mudanças da sociedade na interpretação do direito. “É fundamental levarmos adiante esse debate com perspectiva de gênero e pensando em quais são as mulheres – geralmente as mais vulneráveis – que sofrem as consequências da criminalização.”

Independentemente da decisão do STF, Fachin pontua que ela não é definitiva. “Outros poderes, como o Congresso Nacional, podem reagir à decisão de diversas maneiras, incluindo a elaboração de novas leis ou emendas à Constituição para regular a questão do aborto”, explica. “O debate sobre questões éticas e morais, como a descriminalização do aborto, tende a ser contínuo na sociedade e nos diferentes poderes do Estado, refletindo as visões e valores da população e dos legisladores.”

Aborto como questão de saúde

As 58 petições favoráveis à descriminalização foram majoritariamente protocoladas por grupos ligados ao direito, à saúde e à produção científica. 

De modo geral, as peças argumentam que o aborto deve ser tratado como uma questão de saúde pública, pois é um evento comum na vida reprodutiva de meninas, mulheres e outras pessoas que gestam. Dados da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) divulgada em 2021 apontam que uma a cada sete mulheres brasileiras com mais de 40 anos já realizou ao menos um aborto ao longo de sua vida.

“A criminalização, portanto, faz com que as pessoas busquem por procedimentos inseguros, que colocam em risco sua saúde e sua vida”, fala Letícia Ueda Vella, advogada que assina a petição do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. 

Ainda de acordo com a PNA, são as mulheres negras as principais vítimas da negligência do Estado, correspondendo a 47,9% das internações e 45,2% dos óbitos por aborto, contra 24% e 17% das mulheres brancas, respectivamente. 

Em sua petição de amicus curiae, a Anis apresenta os resultados de uma pesquisa inédita realizada a partir da análise dos dados das PNAs de 2016, 2019 e 2021, combinada aos achados da pesquisa “Aborto e Raça no Brasil”, e mostra que, no país, a probabilidade de uma mulher negra fazer aborto é 46% maior que de uma mulher branca. “A probabilidade é que, aos 40 anos, 1 em cada 5 mulheres negras e 1 em cada 7 mulheres brancas terá feito um aborto”, estima o Instituto de Bioética.

Segundo Amanda Nunes, do Cravinas, isso ocorre porque, diferente das mulheres ricas ou de classe média que acessam o aborto em condições de menor insegurança, indo a países onde o procedimento é legalizado, por exemplo, as mulheres pobres e negras são relegadas aos procedimentos mais inseguros.

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Festival Pela Vida das Mulheres, 2018, Brasília (DF). Foto: Mídia Ninja

Mariane Marçal, assistente de coordenação da Criola, acrescenta que, por conta disso, as mulheres negras também são as mais criminalizadas por aborto. “Em pesquisa realizada sobre o perfil das mulheres denunciadas, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro mostra que 60% são negras, 65% têm filhos e nenhuma apresenta antecedentes criminais.”

“Está nas mãos da Corte decidir se essas mulheres merecem ser maltratadas, torturadas, presas ou mortas ao buscarem um aborto. O aborto pode continuar sendo regulado, mas isso deve ser feito no campo da saúde pública, e nunca do direito penal, sob pena de violação de direitos fundamentais”, avalia Nunes.

Violação de direitos 

As organizações feministas peticionárias entendem que o STF, no exercício de seu papel contramajoritário, deve atuar para “proteger os direitos fundamentais à saúde, à vida, intimidade, à autonomia e à informação de todas as mulheres, meninas e pessoas que gestam”, conforme destaca Letícia Ueda Vella.

Em sua petição, o Cravinas dá ênfase à jurisprudência latino-americana, citando os casos da Colômbia e do México, que entre 2022 e 2023 descriminalizaram a interrupção da gestação até a 24ª e 12ª semanas, respectivamente, por reconhecerem que o direito penal é inadequado para tratar a questão do aborto, pois a criminalização viola direitos fundamentais de mulheres e outras pessoas que gestam.

Amanda Nunes também argumenta que a criminalização constitui discriminação de gênero, porque “torna a capacidade reprodutiva de mulheres e pessoas que gestam um fator de discriminação, ao privá-las do direito mais básico que é decidir sobre o seu próprio corpo e não ser forçada a levar adiante uma gestação indesejada.”

A socióloga Denise Mascarenha, coordenadora do movimento Católicas Pelo Direito de Decidir, chama a atenção para a pressão internacional, lembrando que, este ano, a Organização das Nações Unidas (ONU) recomendou que o Brasil reforme sua legislação pra garantir acesso seguro, legal e efetivo ao aborto. Hoje, a Organização Mundial da Saúde (OMS) também recomenda a descriminalização total do aborto.

Não à toa, entre as peticionárias interessadas em ingressar na ADPF 442 como amicus curiae estão pelo menos 17 representações internacionais, de países como Estados Unidos, França, Argentina, Colômbia, Irlanda, Canadá, Hungria e África do Sul – 16 delas defendem os direitos humanos e a descriminalização do aborto.

Três organizações jornalísticas também constam entre as peticionárias. Azmina e Gênero e Número destacam que os governos federal, estaduais e locais têm falhado em fornecer informações úteis, atualizadas e confiáveis sobre o aborto, violando o direito fundamental à informação garantido pela Constituição brasileira. 

Portal Catarinas também é peticionário, e chama a atenção da Corte para outro efeito da criminalização: a perseguição a jornalistas que reportam sobre aborto. A tentativa de criminalizar o trabalho do Catarinas se manifestou, no último ano, em diversas ocasiões, sobretudo com a abertura de uma CPI do Aborto, na Assembleia Legislativa de Catarina (Alesc), para investigar as jornalistas que tornaram pública a violação de direitos de uma menina de 11 anos, em Santa Catarina, que foi obrigada por uma juíza a levar adiante uma gravidez resultante de estupro de vulnerável. 

Estado laico

Organizações ligadas a grupos religiosos constituem maioria entre os peticionários contrários à ADPF: são 10, representando 50% do total de 20. Também há 6 atores políticos: a Frente Parlamentar Mista Contra o Aborto e em Defesa da Vida, da Câmara dos Deputados; o Diretório Nacional do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB); o Podemos (PODE); o Partido Social Cristão (PSC); o Estado de Sergipe; e a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Família e Apoio à Vida, do Senado.

Apenas o Sindicato dos Médicos do Paraná (Simepar) está ligado à medicina, e sua peça não apresenta argumentos. O Instituto Liberal do Nordeste (ILIN) e o Instituto Latino-americano de Estudos em Bioética e Desenvolvimento Social (ILAES) são os que dizem “estudar” o aborto. O primeiro faz coro com os demais peticionários ao destacar que “a vida deve ser protegida desde a concepção”. O segundo argumenta que a Suprema Corte estaria violando a separação de poderes ao julgar a matéria. 

Outros argumentos comuns entre as peças são a opinião pública, que de acordo com parte dos peticionários seria “desfavorável” à realização do aborto; os “riscos de morte às mulheres que abortam”; além da culpabilização de quem aborta, alimentada pela ideia de que, ao não usar contracepção, a pessoa gestante seria “irresponsável” e estaria cometendo “assassinato” ao interromper a gravidez.

Em sua peça, que se inicia com um texto bíblico, a Frente da Família, representada pelo deputado federal Paulo Fernando Melo da Costa (Republicanos) e pelo advogado bolsonarista Walter de Panula Silva, sustenta que a Suprema Corte “deve satisfação à Constituição Federal, à consciência, aos cidadãos e mesma a Deus”. 

Já nas peças favoráveis à descriminalização, as peticionárias que se autodeclaram religiosas são duas e defendem a laicidade do Estado. “O Estado deve garantir que cada um e cada uma professe sua fé com liberdade, mas sem se submeter a nenhuma delas”, afirma Denise Mascarenha, das Católicas.

“Vimos nos últimos anos a priorização de uma agenda antigênero protagonizada pelos mesmos representantes que tentaram fragilizar a democracia brasileira, então não temos dúvidas de que garantir os direitos humanos das mulheres é uma forma de fortalecer o Estado Democrático de Direito”, assegura Mascarenha, referindo-se ao atentado à democracia protagonizado por grupos bolsonaristas em 8 de janeiro.

O grupo liderado por Mascarenha garante que “as mulheres católicas abortam”, defendendo que “o Estado não pode ser mais um a apontar o dedo e virar as costas para essas mulheres, como fazem os conservadores religiosos”.

Da mesma forma, Mônica de Castro, da Frente Evangélica pela Legalização do Aborto (Flepa), entende que as igrejas evangélicas são um importante setor da sociedade, que vem sendo instrumentalizado no centro da disputa política em relação à descriminalização, mas tem condições de comportar a diversidade. 

“Nós existimos para defender a laicidade do Estado e as vidas das meninas, mulheres e pessoas que gestam ressaltando que nenhuma interpretação religiosa deve orientar a justiça do país”, destaca a liderança da Frente Evangélica.

“O nosso dever é estar ao lado da criação e fortalecimento de políticas públicas que cuidem, em especial, das pessoas mais vulnerabilizadas, como as mulheres negras, que são as que mais sofrem com o aborto inseguro, o que culmina, muitas vezes, em sua morte.”

Confira a lista de amicus curiae deferidos

  1. INSTITUTO DE DEFESA DA VIDA E DA FAMÍLIA – IDVF;
  2. UNIÃO DOS JURISTAS CATÓLICOS DE SÃO PAULO – UJUCASP;
  3. Frente Parlamentar Mista contra o Aborto e em Defesa da Vida;
  4. PARTIDO SOCIAL CRISTÃO – PSC;
  5. Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE);
  6. Frente Parlamentar Mista em Defesa da Família e Apoio à Vida;
  7. Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB);
  8. Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo – NUDEM – (em parceria com a Clínica de Litigância Estratégica em Direitos Humanos na FGV Direito SP);
  9. Associação Nacional da Cidadania pela Vida (ADIRA);
  10. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM);
  11. Católicas pelo Direito de Decidir;
  12. Centro Acadêmico XI de Agosto; Departamento Jurídico XI de Agosto; Coletivo Feminista Dandara; Escritório USP Mulheres; e Núcleo de Prática Jurídica em Direitos Humanos (NPJ-DH);
  13. Associação Brasileira de Genética Médica;
  14. Conectas Direitos Humanos;
  15. Associação Brasileira de Antropologia (ABA);
  16. Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde;
  17. Conselho Federal de Psicologia;
  18. CRIOLA (Representação pelo Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – NPJur/UNIRIO);
  19. Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO);
  20. Defensoria Pública do Estado do Pará – Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos e Ações Estratégicas – NDDH (em parceria Clínica de Atenção à Violência – CAV da Universidade Federal do Pará);
  21. Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos – Rede Feminista de Saúde;
  22. Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro;
  23. Grupo Curumim Gestação e Parto (Grupo Curumim);
  24. Centro Acadêmico Afonso Pena (CAAP – UFMG); Divisão de Assistência Judiciária da UFMG (DAJ – UFMG); e Clínica de Direitos Humanos da UFMG (CdH – UFMG);
  25. Conselho Federal de Serviço Social (CFESS);
  26. Associação Nacional dos Prefeitos e Vice-Prefeitos da República Federativa do Brasil – ANPV;
  27. Defensoria Pública da União (DPU);
  28. Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família (PROVIDAFAMILIA);
  29. Clínica de Direitos Humanos da UFPR (em parceria com o Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos – NESIDH/UFPR e Clinique du Droit de l’Université Paris Nanterre – EUCLID);
  30. Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR);
  31. Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ – Clínica UERJ Direitos;
  32. Sociedade Brasileira de Bioética (SBB); Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO); Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES); Associação da Rede Unida; Associação Brasileira de Enfermagem; e Associação Brasileira de Economia da Saúde, conjuntamente;
  33. Clínica de Direitos Humanos do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP);
  34. Defensoria Pública do Estado do Paraná;
  35. Clínica Jurídica de Direitos Humanos e Direitos Sexuais e Reprodutivos da Universidade de Brasília (UnB) – CRAVINAS;
  36. Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).

Jess Carvalho é jornalista, escritora e pesquisadora das representações midiáticas da bissexualidade. Atua como editora e estrategista digital no Portal Catarinas, onde também mantém uma coluna sobre seu tema de pesquisa acadêmica: a bissexualidade. É conselheira Ad Hoc da UnescoSost Transcriativa e recentemente investigou quem são 2,3 mil escritoras brasileiras a partir de fotos históricas, pesquisa que consta no livro Um Grande Dia para as Escritoras: Autoras do Brasil mostram a cara, publicado pela Bazar do Tempo em 2023.

 

As mulheres devem ser livres? Igualmente livres? — STF e o julgamento da ADPF 442

10 de setembro de 2022, 8h00

Por Estefânia Maria de Queiroz Barboza

 

Una mañana , usted se despierta y se encuentra en el lecho, espalda contra espalda, con un violinista inconsciente, un famoso violinista en estado de coma. Se le ha encontrado una enfermedad renal fatal, y la Asociación de Amigos de la Música, habiendo examinado todos los registros médicos disponibles, ha averiguado que sólo usted tiene el grupo sanguíneo apropiado para ayudarle. En consecuencia, le han secuestrado y, la noche anterior, han acoplado el sistema circulatorio del violinista al suyo, de manera que los riñones de usted puedan utilizarse simultáneamente para extraer las toxinas de la sangre del violinista y de la suya. El director del hospital le dice entonces:

- Mire usted, lamentamos que la Asociación de Amigos de la Música le haya hecho esto. De haberlo sabido, no lo habríamos permitido; sin embargo, lo ha hecho, y el violinista está ahora acoplado a usted. Para librarse de él, tendría que matarlo pero no se preocupe, es sólo cuestión de nueve meses. Para entonces, se habrá restablecido de su enfermedad y podrá, sin riesgo, ser separado de usted 
[1].

 

O trecho acima demonstra uma situação hipotética que pode parecer absurda e que nos faz questionar se o corpo do homem pode ser instrumental para a vida de outro ou se deve ser um fim em si mesmo. Certamente, não aceitaríamos tal solução de termos nosso corpo como instrumento à vida de outro. Entretanto, quando tratamos do tema do aborto, a discussão não se coloca com a mesma racionalidade. Argumentos religiosos e morais prevalecem e defendem que o corpo da mulher deve ser instrumental à vida de outro ser humano, que seu corpo e sua vida não são um fim em si mesmo.

Argumentos religiosos ainda trazem uma ideia de que o sofrimento é algo divino e que, portanto, sofrer pode dar a mulheres espaço no paraíso. Mulheres devem ser instrumentais para formação da família e para o objetivo da procriação e maternidade. Tais argumentos ainda parecem mais presentes num momento em que o neoconservadorismo aparece com toda força no Brasil, buscando a dominação masculina no casamento e num movimento antifeminista, já que para este grupo, o feminismo "teria colocado as mulheres contra a reprodução, seu dever e chamado natural" [2].

Esta é a arena política neoconservadora no Brasil, não há espaço para direitos de igualdade e liberdade das mulheres, que dirá direitos sexuais e reprodutivos. Mulheres representam apenas 15% das cadeiras no Congresso Nacional e temos ainda uma Bancada Evangélica e uma Frente Parlamentar Evangélica, que se articulam contra temas de igualdade de gênero, aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo e outros.

Neste contexto, o Judiciário e as Supremas Cortes e Tribunais Constitucionais ao redor do mundo, têm funcionado como um locus democrático de afirmação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, como decorrência da proteção de seus direitos à igualdade e à liberdade.

É importante ressaltar que o Supremo Tribunal Federal, para além de julgar a não recepção do artigo do Código Penal que criminaliza o aborto, também deve ter responsabilidade para fixar parâmetros abstratos que sirvam de precedentes para os casos subsequentes que envolvam questões relacionadas à desigualdade de gênero. Embora não veja a possibilidade de ser inserido em pauta de julgamento neste cenário em que a corte está sob ataque de neoconservadores que se aliam a um movimento autoritário anti Instituições.

De qualquer modo, propõe-se uma interpretação do caso a partir do constitucionalismo feminista, que chama a atenção para a desigualdade de gênero existente no direito constitucional, sempre estudado e aplicado como supostamente neutro.

O direito constitucional é fundacional e fundamental para a maior parte dos sistemas legais do mundo contemporâneo, o que, por sua vez, implica que é pelas constituições que se desenham compromissos fundamentais que dizem respeito à cidadania, direitos e deveres. Nesta literatura sobre os problemas e as justificativas de uma revisão judicial vinculativa em uma democracia, pode-se esperar que o problema relativamente óbvio e único das mulheres desempenhe pelo menos um papel significativo.

As mulheres foram excluídas do judiciário durante a maior parte da nossa história e o judiciário opera dentro de um sistema de precedentes. É necessário mudar o filtro da interpretação para que novos precedentes com maior proteção e promoção da igualdade das mulheres sirvam também de transformação de sua proteção. A mobilização legal dos movimentos de mulheres inclui as ações no âmbito da Suprema Corte e judicialização e o enquadramento de suas demandas através de marcos discursivos que incorporam e interpretam conceitos legais [3] e a jurisprudência das cortes constitucionais tem um papel fundamental na interpretação de direitos com a finalidade de garantir a igualdade de gênero material.

Assim, pretende-se apresentar o método interpretativo proposto pela professora Katharine Bartlett [4], "the woman question", para verificar e expor o impacto das normas jurídicas sobre as mulheres, que busca identificar as implicações de gênero nas normas e práticas jurídicas que podem parecer neutras ou objetivas. E pode ser utilizado no caso do aborto. Para ela, esta possibilidade pode trazer alternativas interpretativas que promovem uma alocação mais justa e equânime dos resultados sociais.

"The woman question” busca verificar os impactos das normas sobre as mulheres apresentando as seguintes questões: “Have women been left out of consideration? If so, in what way, how might that omission be corrected? What difference would it make to do so?" [5].

O método busca de alguma maneira explorar se há proporcionalidade e, portanto, igualdade no tratamento e na elaboração de uma lei e seus impactos na vida da mulher. Se a lei só tem impactos de restrição sobre a vida, a liberdade e o corpo da mulher, não é possível pensar em neutralidade ou imparcialidade.

No âmbito do Supremo Tribunal Federal, perguntar "the woman question" é perguntar e examinar como a criminalização do aborto traz standards normativos em desvantagem para mulheres. A pergunta assume que as leis, especialmente aquelas elaboradas no início e meados do século passado não só podem não ser neutras, mas também impactar de forma desvantajosa para as mulheres e serem "machistas" num sentido específico. A proposta da pergunta "the woman question", quando dos julgamentos, pode ajudar a expor esta disparidade e desproporcionalidade no impacto da norma punitiva sobre a vida e sobre o corpo das mulheres, sugerindo a correção do direito pela declaração de inconstitucionalidade pela Suprema Corte.

É preciso enfrentar se o tema afeta só mulheres, se afeta apenas mulheres grávidas, se este impacto prejudica as mulheres. Se há impacto maior sobre mulheres pobres e sobre mulheres negras. Para além disso, é necessário perguntar se o Estado atua de forma proporcional para evitar a interrupção da gravidez com incentivos econômicos e sociais para as mulheres.

O Estado mantém políticas de assistência social específica para mães de baixa renda? O Estado mantém políticas de estabilidade no emprego para mulheres gestantes? E para mulheres gestantes que vivem em subempregos no mercado informal de trabalho, de que modo o Estado protege? Às mulheres executivas é garantido promoções na carreira? Há uma preocupação de gênero em promover mulheres mães nas corporações? Optar pela continuidade da gestação e maternidade impacta no desenvolvimento das mulheres? Impacta negativamente em seu desenvolvimento profissional? Mulheres pesquisadoras têm incentivos e equiparação justa para equiparar a maternidade? Quais as políticas de inclusão e equiparação são feitas pelos governos? Homens que optam por não levar a gravidez adiante tem algum tipo de punição? São estas as questões que devemos por para devidamente enfrentar o tema do aborto.

Do mesmo modo, Reva Siegel [6], ao estudar as políticas restritivas em relação ao aborto dos estados americanos, propões expandir o quadro e analisar as restrições de aborto num contexto político mais amplo para saber se há integridade e proporcionalidades nas políticas de criminalização ou restrição do aborto e se de fato o Estado tem preocupação em ajudar as mulheres para evitar gravidez indesejada e se dão apoio a mulheres grávidas que querem criar seus bebês.

Outras perguntas que poderiam ser feitos de acordo com Siegel [7], quando estuda a diferença de políticas pro vida nos estados americanos: "O interesse do Estado em proteger a nova vida é consistente em todos os contextos ou seletivo? Os estados-membros protegem a vida de forma a aumentar ou restringir a autonomia das mulheres? Os estados que restringem o aborto também apoiam novas mães e uma nova vida? As escolas ensinam educação sexual? Os estados que restringem o aborto ajudam as mulheres que querem ser mães a manter a gravidez?".

Para a autora, 49 % (quarenta e nove por cento) das mulheres ou mais citam razões financeiras para interromper a gravidez, porque 49% estão abaixo do nível da pobreza e 75% são pobres ou de baixa renda. Não se pode debater as políticas de restrições do aborto se não há políticas para prover recursos, atendimento à saúde ou proteção de emprego para mulheres [8]

Fazer a pergunta "the woman question" pode ser um método inicial para os debates sobre interpretação constitucional a respeito do aborto e nos resultados desproporcionais que sua criminalização causa às mulheres. As perguntas acima podem demonstrar com maior transparência se há de fato uma preocupação na proteção da vida do feto para o momento posterior ao seu nascimento e se há políticas para acolhimento das mulheres que desejam levar sua gravidez adiante. Se a lei impacta apenas sobre as mulheres e é a única política desproporcional existente para restringir suas liberdades e tratá-la de maneira desproporcional, então deve a Corte apontar a sua inconstitucionalidade porque não atende parâmetros de igualdade material preconizados na Constituição Federal.

 

[1] Thomson, James. Defensa del aborto. In: DWORKIN, Ronald. La Filosofía del Derecho. México: FCE, 2014, p.245-246.

[2] Lacerda, Marina Basso. O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro. Porto Alegre: Zouk, 2019, p. 40.

[3] FREIRE, A. Interpretação constitucional comparativa: aproximação crítica e arcabouço metodológico. Revista Publicum, Rio de Janeiro, n. 2, 2016, p. 45-73.

[4] BARTLETT, Katherine. Feminist Legal Methods. Harvard Law Review, vol. 103, 1990, n.4, p. 837.

[5] Ibidem.

[6] Siegel, Reva B., ProChoiceLife: Asking Who Protects Life and How—And Why It Matters in Law and Politics (September 10, 2017). Indiana Law Journal, Forthcoming; Yale Law School, Public Law Research Paper No. 613. Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=3035017, p. 5

[7] Ibid, ibidem.

[8] Ibid, p. 12.

 

Estefânia Maria de Queiroz Barboza é professora de Direito Constitucional e Teoria do Estado dos programas de graduação e pós-graduação stricto sensu da UFPR (Universidade Federal do Paraná) e do mestrado em Direito do Centro Universitário Internacional (Uninter Curitiba), codiretora do Icon-S Brasil e vice-presidente da Aibdac (Associação Ítalo-Brasileira de Professores de Direito Administrativo e Constitucional).

Revista Consultor Jurídico, 10 de setembro de 2022

fonte:  https://www.conjur.com.br/2022-set-10/observatorio-constitucional-mulheres-livres-stf-julgamento-adpf-4422

Pesquisa Nacional de Aborto de 2016 (PNA 2016), conduzida pela antropóloga Débora Diniz e o sociólogo e economista Marcelo Madeiro, “o aborto é um fenômeno frequente e persistente entre as mulheres de todas as classes sociais, grupos raciais, níveis educacionais e religiões: em 2016, quase 1 em cada 5 mulheres, aos 40 anos, já realizou, pelo menos, um aborto. Em 2015, foram aproximadamente 416 mil mulheres. Há, no entanto, heterogeneidade dentro dos grupos sociais, com maior frequência do aborto entre mulheres de menor escolaridade, pretas, pardas e indígenas, vivendo nas regiões norte, nordeste e centro-oeste. Como já mostrado pela PNA 2010, metade das mulheres utilizou medicamentos para abortar, e quase a metade das mulheres precisou ficar internada para finalizar o aborto.” (Amanda Stabile, Nós, Mulheres da Periferia, 12/8/22)

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