A vida se vive em coletividades, queiramos ou não, pois sempre dependemos de relações, estruturas e processos econômicos, sociais, políticos e culturais, forjados ao longo da história, que delimitam possibilidades e limites concretos, muito além de vontades individuais.

Cândido Grzybowski - 7/4/2024

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Mesmo não recebendo maior atenção do Governo Lula, os 60 anos do Golpe Militar e a implantação da ditadura foram priorizadas por intelectuais e ativistas de esquerda, com muito boas análises sobre aquele momento histórico, inclusive com reavaliações de análises passadas e levantando novas questões. Tive acesso a algumas de tais análises, especialmente aquelas que foram publicadas nos meios digitais alternativas, voltados às temáticas mais democráticas e de esquerda.[i] Mas meu foco é a atualidade e o como a ditadura militar nos afetou profundamente como sociedade, somando-se à muitas mazelas que vem desde a conquista e colonização.

É possível acreditar em dias melhores no amanhã, tanto para si e o núcleo familiar como para o conjunto da sociedade e até todos os povos do planeta Terra. Esperançar faz parte do ir levando a vida. Claro, sempre podemos optar por um caminho individual, de agir e vencer a qualquer custo, em busca do próprio interesse. Mas fazer isto é mergulhar na lógica de um sistema que aposta no interesse individual como regra dominante de viver, onde vencerão os mais competitivos, mesmo explorando e dominando todos os demais. Esta é a regra imposta pelo próprio do capitalismo eurocêntrico, com suas variantes específicas em função da história de cada um dos povos dominados e a seu serviço e sua centralidade de tipo imperial.

Na verdade, a vida se vive em coletividades, queiramos ou não, pois sempre dependemos de relações, estruturas e processos econômicos, sociais, políticos e culturais, forjados ao longo da história, que delimitam possibilidades e limites concretos, muito além de vontades individuais. Para mudar e sonhar com outro mundo, bom e saboroso para se viver, onde todas e todos caibam, precisamos mudar a lógica de exploração, dominação, assim como o processo de destruição sistemática da própria natureza, praticadas pelo capitalismo globalizado pelas grandes corporações econômicas e financeiras, dos 1% super ricos. A tarefa prioritária é plantar raízes democráticas transformadores a partir dos territórios em que vivemos. Isto não podemos esperar de outros povos ou transferir responsabilidades que são nossas em primeiro lugar. Claro, dinâmicas e processos mundiais mais favoráveis sempre são importantes, mas não suficientes. Temos que fazer a nossa parte, lá onde levamos a vida, com suas especificidades. No entanto, nunca podemos esquecer que estamos diante de uma trama histórica coletiva, com raízes profundas e suas heranças. Para mudar sempre é e será indispensável saber o que fazer, onde e como incidir.

Lembro isto tudo para situar o indispensável que é, para nós como povo ou a maioria dele, entender e nunca esquecer as malditas heranças, em particular as mais recentes, deixadas pela ditadura militar de 1964 a 1985. Elas interferem no nosso cotidiano e são parte de nosso modo de viver atual, mais até do que comumente admitimos. Tal herança reforçou e aprofundou relações violentas de exclusão social, uma chaga que nunca foi enfrentada como prioridade política absoluta. A democracia que conquistamos com a Constituição de 1988 é uma proposta política institucional importante, mas o fazer a democracia vai além, pois se trata de disputar no dia-a-dia, até hoje, em muitas frentes, tendo a ditadura e todo o passado como ameaça concreta, tanto para as conquistas de direitos de cidadania iguais na diversidade, como para as políticas públicas que deem conta de atendê-los. Basta lembrar aqui o que nos foi imposto recentemente, em contexto democrático, pelo golpe de 2016 e depois pela vitória do governo de extrema direita, que admitiu publicamente a sua inspiração na ditadura, com propostas e políticas ecossociais mais excludentes e destrutivas ainda mais fortes. Aliás, o militar capetão, que nos governou recentemente, foi ativo nos anos 1980, quando se deu o vigoroso processo de mobilização cidadã pela volta da democracia. Mas, de toda forma, a ditadura deixou malditas heranças vivas, além de reativar velhas como o racismo, o patriarcalismo e o colonialismo, com muita violência e assassinatos, como política vinda de dentro do regime.

Neste ano de 2024, sessenta após o golpe militar, somos muitos mais numerosos que naquela época. Aliás, a grande maioria do que é a população brasileira atual não viveu aqueles 21 anos de ditadura. Éramos um pouco mais de 82 milhões de habitantes do Brasil em 1964 e 145 milhões no ano em que foi aprovada a nova Constituição, em 1988, e chegamos a 176 milhões em 2015. Pelos dados mais recentes, de 2023, éramos um pouco mais de 215 milhões. A própria definição de cidadania política mudou, pois desde 1945 até 1988 o direito de votar continuou limitado aos alfabetizados e com 18 ou mais anos. Só a Constituição de 1988 ampliou tal direito de votar a todas e todos a partir dos 16 anos, sem limites.

Então, por que lembrar e discutir a mais recente ditadura se a maioria de hoje não viveu aquele período autoritário? Simplesmente, porque convivemos com mazelas de todo tipo desde a conquista e colonização, mas a elas se somaram algumas novas formas de barbárie e as velhas foram radicalizadas no período da ditadura militar. A maioria de hoje não merece continuar convivendo com elas. Não as extirpamos ainda, pois não fizemos um virtuoso processo democrático de diagnóstico e reparação, com pesquisa profunda de memória e verdade, condenando os responsáveis pela repressão, tortura e morte. Nem avaliamos plenamente a destruição ecossocial promovida, tanto em termos de geração da fome, miséria e pobreza, como de conquista, colonização e destruição da integridade do grande patrimônio comum natural para a nossa vida. Tudo isto continua mais ou menos sendo o nosso cotidiano nos dias de hoje: um modo de vida e produção sociamente excludente e destrutivo, aperfeiçoado pela ditadura militar. O tal “milagre econômico” da época, especialmente primeiros 10 anos, gestou uma “casta” de super-ricos, vivendo na abundância, com enormes periferias urbanas e rurais, composta por população pobre e excluída, submetida ao controle do crime organizado de traficantes e milícias. E depois, desde meados dos 1970 com as mudanças nas condições econômicas globais, mergulhou o país numa galopante inflação e uma impagável dívida externa, enfrentadas prioritariamente pela democratização nos anos 1990.

Mas a questão que considero fundamental é a disputa de narrativas hoje. Não temos como avançar politicamente e construir hegemonia de democracia ecossocial transformadora, para cuidar de gente e da natureza, sem focar o projeto que a ditadura priorizou: alavancar o capitalismo dependente, assentado no extrativismo e no agronegócio, voltado à produção de commodities para exportação, de costas para o Brasil, lógicas dominantes e determinantes até hoje. A “recolonização” da Amazônia e do Cerrado brasileiros, que continua, contra Povos Indígenas e Tradicionais - uma das piores heranças de ordem ecossocial –, foi empoderada pela estratégia militar do “Brasil Grande”. A concentração da terra se ampliou escandalosamente, produzindo muitos sem terra e expulsão do campo. A isto podemos somar o modelo de geração de energia elétrica com as grandes barragens hidrelétricas, expulsando populações ribeirinhas inteiras, deixadas à própria sorte, como estamos vendo com Belo Monte em contexto democrático. Claro, o regime militar avançou na industrialização mas com dependência de capitais multinacionais e empresas estatais a seu serviço, valendo-se da mão de obra barata propiciada pela migração interna de zonas rurais, em grande escala e a empurrando para as periferias das grandes metrópoles. Basta lembrar que o salário mínimo – referência ainda hoje para uma maioria de assalariados – foi submetido a uma política de arrocho salarial. No final da ditadura era algo como um terço do que havia sido uns 40 anos antes.

Não podemos esquecer de jeito nenhum que tudo foi implantado com o uso e abuso da mais pura repressão violenta sobre opositores, trabalhadores e populações periféricas que ousavam protestar. Também foi a ditadura que criou o tipo de Polícias Militares que temos, como forças auxiliares das Forças Armadas e com ação prioritária contra negros e pobres, com assassinatos, nunca para garantir o direito de segurança pública. Até hoje pouco avançamos sobre estas questões, pois parece que ficamos satisfeitos com uma democracia de baixa intensidade. É fundamental mapear e enfrentar democraticamente tais questões estruturais vigentes, espécie de modo de viver para as gerações atuais, lógica aprofundado pela ditadura.

Ou seja, ficando no que venho insistindo de diferentes ângulos – a disputa de hegemonia de um modo de pensar, agir e viver democrático intenso, com base ecossocial – a ditadura militar continua sendo uma erva daninha no chão da sociedade, na cultura, nas vivências cotidianas, no caos social, nas milícias, na repressão policial, nos privilégios e corrupção, nos desmandos de poderosos e, ainda, nas ameaças autoritárias como a que abertamente foram praticadas pelo inominável do governo passado. Aliás, as forças políticas que apoiam uma direita autoritária e excludente estão tendo maior iniciativa em termos de narrativas do que fazer do que as cidadanias ativas do campo democrático. E o fazem “sem medo nem pejo”, até com orgulho e ações abertas, à plena luz do dia. A ameaça é real, porque o mal herdado da ditadura só não vê quem não quer. Ou pior, prefere dar as costas e deixa rolar. Até quando?

 

[i] Desculpo-me por não trazer a relação aqui, pois creio que existem muito mais autores e análises, a que não tive acesso e que merecem ser lidas e debatidas. Apesar dos limites e dificuldades que enfrentam os meios digitais alternativos ao nosso alcance, em geral sem apoio de fundos públicos, é neles que podemos encontrar o melhor do campo crítico e compromissado com a radicalização da democracia brasileira.

 

fonte: https://sentidoserumos.blogspot.com/

 


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