Quase lá: México: a esquerda pode chegar ao poder

Governadora por 6 anos da capital, Claudia Sheinbaum lidera a disputa pela presidência. Forjou-se nas revoltas estudantis. Propõe ampliar a opção pelas maiorias excluídas. Apoiada por López Obrador, está desafiada a ir muito além…

 

OutrasPalavras

Publicado 27/03/2024 às 19:17 - Atualizado 27/03/2024 às 19:26

Foto publicado no site Mujer Mexicana

 

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1º de outubro de 1991. O Stanford Daily noticia em sua primeira página um protesto de estudantes contra Carlos Salinas de Gortari, o presidente do México que discursou naquela universidade estadunidense para promover o neoliberalismo, do qual era um de seus principais e mais aplaudidos expoentes latino-americanos. O artigo é acompanhado por uma fotografia em preto e branco dos manifestantes. No centro está uma jovem mexicana de rosto altivo, cabelos presos atrás por uma faixa e camisa de manga curta que, com os braços enérgicos erguidos, exibe uma faixa em que lê: Fair Trade and Democracy Now! (Comércio Justo e Democracia Agora!). Ao lado, outro cartaz sugere fraude ao perguntar quantas pessoas mortas votaram nas eleições presidenciais mexicanas de 1988; em outro diz: “México, a ditadura perfeita”, frase que se tornou lugar-comum e que resume a vida política de um país em que o mesmo partido venceu durante décadas.

O nome da jovem é Claudia Sheinbaum Pardo. Ela é uma física de 29 anos que se formou na Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) e faz estágio acadêmico em Stanford. Na bagagem transfronteiriça carrega um intenso ativismo político que combina o seu recente protagonismo numa histórica greve universitária e o ativismo em favor dos direitos humanos e da democratização do país.

Três décadas depois, a cientista publica em suas redes sociais a capa amarelada do Stanford Daily para lembrar que durante toda a sua vida lutou contra o neoliberalismo. Que ela sempre foi uma liderança de esquerda. Essa congruência é um dos seus valores políticos.

 

“Preservo o mesmo sentimento e desejo de justiça social, para que haja pátria para o pobre e pátria para o oprimido”, escreve ela nos albores de lançamento de uma longa campanha que, no próximo dia 2 de junho, pode convertê-la na primeira presidenta da história do México. E na guardiã do legado de Andrés Manuel López Obrador.

Herdeira

“Sou filha de 68”, costuma dizer Sheinbaum. No México não é necessário explicar muito para compreender as implicações políticas desta definição. O ano de 1968 refere-se imediatamente à primeira grande greve universitária que culminou no massacre de Tlatelolco e nas centenas de estudantes indefesos, feridos, detidos e executados naquele 2 de outubro. É o momento em que o poder do PRI, o oximoro do Partido Revolucionário Institucional, começou a se mostrar.

A dolorosa repressão, que marcou para sempre a memória social mexicana, foi o germe de uma nova classe política que liderou um longo e trabalhoso processo de democratização. Vinte anos depois, a ala esquerda de um partido que poderia abrigar ideologias diferentes rebelou-se e abandonou o PRI. Cuauhtémoc Cárdenas fundou o Partido da Revolução Democrática (PRD) e liderou os dissidentes, entre os quais estava o ainda jovem Andrés Manuel López Obrador.

Em 1988, a candidatura presidencial de Cárdenas colocou pela primeira vez em xeque o poder do PRI. Embora Salinas de Gortari tenha sido finalmente declarada vencedor, as eleições se arrastaram à sombra eterna da fraude e o sistema de partido único ruiu. Depois viria a esperada e tardia alternância do ano 2000 pelas mãos do direitista Partido da Ação Nacional (PAN), representado por Vicente Fox e seu sucessor, Felipe Calderón. Entretanto, o governo da Cidade do México também passava por mudanças, passando a ser liderado primeiro por Cárdenas (1997-1999) e, depois, por López Obrador (2000-2005). Finalmente, haveria o regresso do PRI ao governo nacional pelas mãos de Enrique Peña Nieto e as três campanhas presidenciais de López Obrador, um político que parecia nunca perder a paciência.

Agora é a vez de Sheinbaum, que o acompanha fielmente há 24 anos.

A candidata que lidera as pesquisas é filha do químico Carlos Sheinbaum Yoselevitz (descendente de família judia lituana que migrou para o México no início do século passado) e da bióloga Annie Pardo. Ambos são graduados pela Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) e foram ativistas da resistência estudantil de 1968, legado que ela tanto reivindica hoje.

A ciência e o compromisso político de esquerda esteve no berço de Sheinbaum. Por isso não foi surpreendente que a mulher nascida em 1962 tenha decidido estudar Física, nem que desde muito jovem tenha apoiado Rosario Ibarra de Piedra, a mãe de um jovem desaparecido durante a guerra suja no México nos anos 70 que tornou-se uma lendária liderança dos direitos humanos e, em 1982, a primeira mulher candidata à presidência.

 

Menos surpreendente ainda é que, em meados da década de 1980, a jovem Sheinbaum fez parte do Conselho Estudantil Universitário (CEU) que liderou a segunda greve mais importante ocorrida na UNAM desde 1968. A defesa da autonomia e da gratuidade universitárias era um princípio familiar. Os estudantes venceram. E o nome de Claudia Sheinbaum apareceu pela primeira vez na mídia.

O movimento estudantil representou o início de sua carreira política, enquanto os membros do Conselho Estudantil Universitário (CEU) se tornaram o setor juvenil do Partido da Revolução Democrática (PRD) fundado por Cárdenas e outros líderes lendários e que, desde 1989, aglutinou a esquerda mexicana.

Lealdade

No início dos anos 2000, parecia que o destino de Sheinbaum seria a academia. Durante anos ela alternou o trabalho como pesquisadora da UNAM com a vida familiar com o marido Carlos Ímaz (outro dos líderes estudantis da greve de 1986 e também fundador do PRD) e seus dois filhos.

Mas naquele ano López Obrador conquistou o governo da Cidade do México e a convidou para assumir o cargo de Secretária do Meio Ambiente. Embora tenha sido vista apenas em algumas reuniões políticas, Sheinbaum aceitou o desafio. A primeira posição pública da cientista envolveu o início de uma relação marcada pela sua lealdade a López Obrador e pela total confiança deste em Sheinbaum. Desde então, eles nunca mais se separaram.

A relação política entre os dois foi fortalecida em 2006, durante a primeira campanha presidencial de López Obrador, na qual Sheinbaum atuou como porta-voz. Tal como as eleições de 1988, as de 2006 também foram marcadas por denúncias de fraude. López Obrador desafiou e resistiu à vitória do conservador Felipe Calderón, organizou um protesto que durou meses na Cidade do México e montou um gabinete paralelo no qual Sheinbaum foi empossada secretária de Defesa do Patrimônio Nacional. Mas não adiantou.

Com a derrota a reboque e já fora da prefeitura da capital, López Obrador consolidou-se como o principal líder da oposição no México. Sempre com Sheinbaum ao seu lado. Em 2012, o político protagonizou sua segunda campanha presidencial e a apresentou como sua futura secretária do Meio Ambiente. Foi mais uma aventura interrompida.

Enquanto o PRI voltava ao poder com Enrique Peña Nieto, López Obrador rompeu com o PRD, atolado em escândalos de corrupção e enfraquecido por disputas internas, e envolveu-se na consolidação do Movimento de Regeneração Nacional (Morena), que apresentaria como o novo e único partido da esquerda mexicana. Seu partido. Mais uma vez, Sheinbaum serviu como aliada fiel, como fundadora e operadora política.

A figura pública da ex-funcionária tornou-se cada vez mais relevante. Em 2015, ela concorreu pela primeira vez a um cargo eletivo. Abrigada no Morena, que estreava nas urnas eleitorais, conquistou a prefeitura de Tlalpan, na Cidade do México. Alguns anos depois, ela anunciou que concorreria ao governo da capital. É claro que teve o apoio absoluto de López Obrador, que ao mesmo tempo liderou a sua terceira e, finalmente, bem sucedida campanha presidencial.

Em 1º de dezembro de 2018, numa cerimônia que coroou décadas de lutas da esquerda mexicana, López Obrador tomou posse como presidente. Cinco dias depois, Sheinbaum o fez como governadora. O Morena passou a governar o país e a capital. Tornou-se o partido mais poderoso do México. Os históricos PRI, PAN e PRD foram destroçados e, mesmo aliando-se, não conseguiram recompor-se.

No momento em que Sheinbum assumiu seu novo cargo, ela se tornou automaticamente candidata presidencial em 2024. E, desde o primeiro dia, ela trabalhou para atingir esse objetivo.

Dependência

Em 3 de maio de 2021, 27 pessoas morreram quando o viaduto de uma estação de metrô da capital, uma das maiores do mundo, desabou. A tragédia desencadeou a pior crise que Sheinbaum enfrentou à frente da capital mexicana. A sua força política foi questionada mas, contra todas as probabilidades, ela saiu vitoriosa.

Apesar das denúncias de corrupção na construção da Linha 12, dos depoimentos de usuários que enumeraram as deficiências diárias na operação do metrô e da intensa campanha midiática contra ela, Sheinbaum não perdeu apoio de forma significativa.

Parecia que nada faria diferença. Nem o seu confronto contraditório com o movimento de mulheres ao qual ela, a primeira governadora eleita na Cidade do México, uma das políticas que quebrou inúmeros “tetos de vidro”, não aderiu. A repressão policial aos protestos de rua das mulheres na era Sheinbaum permanece na história do feminismo mexicano. Até hoje não há reconciliação possível com grande parte dos coletivos. Sheinbaum não é sua aliada. A relação com os grupos de familiares dos desaparecidos também foi marcada por tensão, desconfiança e, em alguns casos, decepção com uma governadora que não abraçava a busca pelas vítimas.

A atual candidata presidencial também enfrentou sinais de alarme nas eleições de meio de mandato de 2021. A hegemonia que a esquerda ostentava na capital desde 1997 – quando a cidade mudou o seu estatuto político e passou a ter um chefe de governo, um poder legislativo próprio e chefes de delegação que mais tarde se transformaram em prefeitos – se quebrou. Embora não tenha perdido em todas as prefeituras, o fracasso eleitoral reduziu o poder do Morena em um dos distritos eleitorais mais estratégicos do país, território obradorista por excelência.

A responsabilidade política pela derrota recaiu sobre a governadora – e a viabilidade da sua candidatura presidencial foi posta em xeque. Mas López Obrador a protegeu.

“É Claudia”

“Claudia é uma mulher excepcional. Claudia é muito trabalhadora. Cláudia é honesta. Claudia é uma líder muito boa. Claudia é muito inteligente. Claudia está muito preparada. Claudia é consistente. Claudia ama as pessoas. Claudia é uma grande mulher. Claudia é de primeira classe.” O presidente lisonjeia constantemente Sheinbaum, mesmo à custa de repetidas sanções do Instituto Nacional Eleitoral (INE), que lhe lembra de vez em quando que não pode intervir na campanha a favor ou contra qualquer candidatura. López Obrador, simplesmente, desobedece.

Ele faz isso a partir do púlpito político em que soube transformar as suas cotidianas e extensas coletivas de imprensa. Nas “mañaneras”, López Obrador prometeu neutralidade na luta do Morena pela candidatura presidencial, mas nunca deixou de mostrar seu favoritismo com a governadora.

O papel do presidente, que garantiu que não iria intervir nas disputas internas do Morena, foi fundamental para que Sheinbaum derrotasse os cinco adversários que a enfrentava dentro da coalizão Vamos Continuar Fazendo História (composta pelo Morena, Partido do Trabalho e Partido Verde Ecologista do México). Por esta razão, o ex-chanceler Marcelo Ebrard, seu principal antagonista, exigiu repetidas vezes “paridade de condições”. Denunciou as “trapaças” nas pesquisas que deram a vitória a Sheinbaum (a seleção foi baseada em pesquisas), apontou a “falta de equidade”, criticou o uso indevido de recursos públicos para favorecer a candidatura favorita de AMLO, como todos chamam o mandatário mexicano, e destacou os misteriosos e ilegais cartazes pregados em todo o país com o lema “É Claudia”. Ainda hoje não se sabe quem pagou aquela campanha milionária que deu visibilidade nacional a uma candidata praticamente conhecida apenas na capital. De nada adiantaram as acusações. Em setembro, Sheinbaum foi confirmada como a vencedora das eleições internas e López Obrador entregou-lhe um “bastón de mando”, símbolo indígena de poder máximo.

Nessa cerimônia, ele a nomeou sua sucessora e líder do movimento da “Quarta Transformação”, a “4T”, como López Obrador batizou o seu governo para lhe dar uma aura épica porque, segundo ele, esta administração simboliza mudanças tão profundas que é equiparado à Independência de 1810, à Guerra da Reforma do século XIX e à Revolução de 1910.

Sheinbaum aceitou plenamente o desafio, repetiu o slogan obradorista “para o bem de todos, os pobres primeiro” e comprometeu-se a defender e aprofundar a “4T”. É a sua principal promessa de campanha, parte de uma estratégia que procura um efeito de contágio para capitalizar a seu favor a elevada e imutável imagem positiva de López Obrador. É o próprio AMLO quem, de vez em quando, mostra nas suas “mañaneras” os estudos da consultora Morning Consult que afirmam que ele é o segundo chefe de Estado mais popular do mundo, só superado pela primeira-ministra da Índia, Narendra Modi.

O apoio categórico de López Obrador é a principal força de Sheinbaum e o que lhe permitiu liderar a corrida eleitoral. Mas é também o seu calcanhar de Aquiles, pelas dúvidas – impregnadas em muitos casos com certo sexismo – sobre a sua dependência do líder político mais importante que o país teve nas últimas décadas.

Vantagem intransponível

A dois meses das eleições, todas pesquisas apontam que Sheinbaum tem uma vantagem incontornável de 20 a 30 pontos sobre a sua principal concorrente, a conservadora Xóchitl Gálvez, que costuma alertar que está competindo contra Claudia e contra o presidente. O terceiro candidato na disputa, Jorge Álvarez Máynez (Movimento Cidadão), sequer ultrapassa um dígito de intenção de voto.

Os números a favor da candidata do Morena se mantiveram estáveis ao longo da campanha. Tal como aconteceu durante o seu mandato como governadora, nenhuma polêmica abalou a sua imagem. Não foi afetada nem pelo inesperado “fogo amigo” que recebeu em janeiro passado, quando a jornalista Sanjuana Martínez denunciou que a campanha de Sheinbaum foi financiada com subornos. Martínez, uma repórter famosa e beligerante com uma carreira repleta de escândalos, foi nomeada, durante o primeiro período do governo de López Obrador, diretora da Notimex, a agência estatal de notícias, mas sua entrada deu início a um longo conflito sindical que o presidente resolveu no último ano com uma decisão contundente: fechou a mídia estatal e ordenou a demissão do quadro de funcionários.

Segundo a jornalista, vários responsáveis pediram aos trabalhadores da Notimex, e a ela própria, 20% da sua remuneração para financiar de forma ilegal a campanha da candidatura oficialista. Para piorar a situação, Martínez publicou a denúncia no La Jornada, tradicional jornal de esquerda que é aliado incondicional de López Obrador. A oposição ficou salivando.

O presidente havia defendido firmemente Martínez, apesar dos incessantes avisos de que, em algum momento, ela poderia se tornar uma dor de cabeça para o governo. Os antecedentes mostravam isso. Naquele dia, ele finalmente soltou a mão dela e imediatamente defendeu com fervor Sheinbaum, que negou qualquer ato de corrupção.

Com o passar dos dias, a tempestade política diminuiu e Sheinbaum continuou com uma campanha que pode levá-la ao Palácio Nacional e na qual, mais do que o resultado eleitoral, as dúvidas são se López Obrador cumprirá o seu compromisso de se retirar da vida pública uma vez que seu mandato termina, o que gera ceticismo por parte de um líder com cinco décadas de militância e acostumado tanto a fazer política tanto quanto a respirar.

Sheinbaum conseguirá se tornar independente de seu mentor? Ou López Obrador continuará a governar nas sombras? O que Sheinbaum fará com os militares, a quem o presidente, em total contradição com as suas promessas anteriores, concedeu tanto poder durante seu governo? Como ela será recebida por um poder castrense machista por excelência? O que fará com os cartéis, com os narcotraficantes, com a violência sem fim, com a crise humanitária no país de mais de 100 mil desaparecidos? Se as previsões das pesquisas se confirmarem, nos próximos meses teremos as respostas.


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