Um estudo sobre gênero, arranjos familiares e trabalho doméstico mostra: o machismo estorva o carnaval. Mulheres relatam a falta de rede de apoio para curtir a folia e “julgamentos”. Ainda assim, muitas articulam-se, lideram blocos e criam estruturas inclusivas

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Publicado 08/02/2024 - OutrasPalavras

Por Schirlei Alves, no Gênero e Número

 

As memórias das festas de carnaval antes dos filhos remetem à liberdade: diversão sem hora para voltar, muita purpurina e pouca preocupação com o julgamento alheio. Após a maternidade, a folia de fevereiro deixa de ser uma opção para quem não tem rede de apoio.

Já mostramos que as tarefas do cuidado, seja dos filhos, de idosos ou pessoas enfermas na família, sobrecarrega as mulheres. O trabalho reprodutivo não remunerado interrompe trajetórias profissionais, dificulta os estudos e afasta a possibilidade de uma aposentadoria digna na velhice.

Além de impactar na vida profissional, a maternidade solo e a responsabilidade unilateral do cuidado também interferem na qualidade de vida. A diversão é adiada e deixa de ser uma opção quando não se tem com quem contar.

Uma pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e publicada no ano passado, com dados da Pnad Contínua, mostrou que o número de domicílios chefiados por mães solo cresceu 17,8% na última década, passando de 9,6 milhões para 11,3 milhões. O incremento foi de quase dois milhões de mães solo em dez anos.

A pesquisadora responsável pelo estudo da FGV, Janaina Feijó, explica que o termo “mãe solo” não se refere apenas à ausência do companheiro, mas à solitude no sentido de arcar com todas as responsabilidades familiares. Não quer dizer, segundo Feijó, que a criança é um peso para a mãe, mas a falta de equilíbrio que a maternidade solo gera na vida das mulheres, sim.

“Para conseguir uma vida em plenitude você tem que procurar esse equilíbrio em todos os eixos da sua vida e um deles é pensar em si, pensar que ainda é uma mulher com gostos, preferências, que também precisa se divertir, encontrar com as amigas, isso afeta a saúde mental”, avalia Feijó.

Com a proximidade do carnaval, perguntamos a mães solo trabalhadoras e foliãs como elas equilibram todos os pratinhos para colocar seus blocos na rua. Os depoimentos foram colhidos pelo grupo de pesquisadoras do projeto de extensão Teias do Cuidado, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), do qual a Gênero e Número faz parte. O material é parte de uma análise mais ampla do projeto, que leva em conta o contexto pós-pandemia, papéis de gênero, arranjos familiares, trabalho doméstico e do cuidado e inserção no mercado de trabalho.

As entrevistas foram coletadas por Marcely Azevedo da Costa, Paula Monteiro de Albuquerque e Mariana Nogueira Rodrigues, extensionistas do grupo Gênero, Trabalho e Cuidado, da UFRJ.

“Nunca teve um homem cuidando dessas relações”

Kiev Medeiros tem 50 anos, é professora de história da rede pública e organizadora do bloco Prata Preta. Moradora do Morro da Conceição, no Rio de Janeiro, é mãe solo de um menino, hoje com 20 anos. Na família dela, o papel do cuidado sempre foi absorvido pelas mulheres.

 

“O trabalho de cuidadora não é um trabalho, segundo a sociedade. Mas esse trabalho que é tão pesado e invisível sempre foi das mulheres da minha família. Nunca teve um homem cuidando dessas relações”.

Kiev Medeiros
50 anos, professora de história da rede pública e organizadora do bloco Prata Preta

Como organizadora do bloco, ela identifica que poucas mulheres conseguem conciliar as demandas. As reuniões da organização são compostas majoritariamente por homens. Entre os colegas, percebe a falta de empatia deles com suas companheiras e ex-companheiras no momento de compartilhar o cuidado.

A desigualdade de gênero, na avaliação de Kiev, não desaparece durante o carnaval. Muito pelo contrário, fica evidente na rua e nos bastidores.

“É impressionante que os companheiros e ex-companheiros se organizam para ir ao carnaval, eles estão sozinhos [sem os filhos]. E a mulher, quando tem criança, ou ela leva com ela ou tem que ter uma rede de apoio, que não é o pai da criança”.

Foi o que ocorreu com Kiev. Quando o filho era pequeno ele a acompanhava nas festas de carnaval. Quando o menino entrou na adolescência e deixou de gostar da festa, passou a ficar aos cuidados da avó.

“Minha maternidade foi vivenciada na base do medo”

Renata de Carvalho Rodrigues, 47 anos, é jornalista, criadora e diretora executiva do bloco feminista Mulheres Rodadas e moradora do bairro Flamengo. É mãe solo de uma menina, hoje com 22 anos, e um menino, atualmente com 17 anos.

Embora os recursos sejam curtos, a organização do bloco se preocupa em oferecer o mínimo de estrutura para receber as crianças. As reuniões são agendadas com antecedência para que as mães possam se programar e os ensaios ocorrem em lugares que oferecem banheiros.

Renata já enfrentou uma batalha judicial com o pai pela guarda da filha, o que a fez viver na base do medo. Quando saiu com os seios à mostra, em um dos carnavais, viu sua foto na capa de um jornal e virou alvo de muitos julgamentos pelo fato de fazer topless sendo mãe.

“Durante muito tempo, a minha maternidade foi vivenciada na base do medo, porque tudo o que eu fazia era motivo de escrutínio do Judiciário. Se o pai do meu filho não estava satisfeito, ele entrava com uma ação na justiça, para falar qualquer coisa. E essa coisa do carnaval, eu morria de medo que fosse usado contra mim”.

Renata de Carvalho Rodrigues
47 anos, jornalista, criadora e diretora executiva do bloco feminista Mulheres Rodadas

Houve um carnaval em que Renata saiu mascarada, pois não queria ser julgada pelo fato de estar curtindo o carnaval.

“Não queria nem que as pessoas vissem o meu rosto. Eu me sentia apedrejada, cuspida, maltratada, o tempo inteiro tendo que medir tudo o que eu fazia.”

“Os pais só passeiam com os filhos, não criam”

Isis Perdigão, 39 anos, é coordenadora de pós-graduação EAD, mora no Rio Comprido (RJ), é mãe solo e tem dois filhos: uma menina de 4 anos e um menino de 9 anos. Ela atua como pernalta em cinco blocos de carnaval no Rio de Janeiro, mas precisa de muito malabarismo para conseguir marcar presença nos ensaios que ocorrem no pré-carnaval.

“Não tenho familiares, mãe, tia, primo, sobrinho, não tenho nada disso. Sou eu, esses pais que só passeiam com as crianças, não criam, e a pessoa que toma conta dos meus filhos [durante o expediente]”.

Isis Perdigão
39 anos, é coordenadora de Polo EaD e pernalta em cinco blocos de carnaval no Rio de Janeiro

Quando os ensaios ocorrem em espaços abertos, Isis leva os filhos. Já nos dias de folia, ela prefere preservá-los.

“Eu estou há dois meses sem ir aos ensaios, só vou falando pelo Whatsapp, porque, assim, existem os ensaios regulares, vamos supor: o “Cordão da Tia Juca” é toda segunda, o “Me Enterra na Quarta” é toda quinta, o “Não Monogamia” é toda quarta. Então, se eu for olhar, quase todos os dias da semana eu teria coisa para fazer, e eu não posso. Para alguns eu consigo levar os meus filhos, ao “Cordão da Tia Juca” eu posso levar porque é na Praça Varnhagen, aí eles ficam lá brincando, bateu uma hora eu venho embora, então eu marco uma presença para não ser desligada”.

Os pais ficam com as crianças em fins de semana alternados, ou seja, dois fins de semana por mês. Nos outros dias, as crianças são responsabilidade da mãe. Faz dois anos que  conseguiu negociar com os pais para que eles fiquem com os filhos durante os seus 10 dias de férias e na semana de carnaval. Desta forma, ela tem conseguido cumprir com a sua participação enquanto pernalta nos blocos de rua.

Por algum tempo, Isis também contou com o apoio de uma pessoa que dormia com os seus filhos às quintas-feiras, o que dava um respiro para ela. Porém, a cuidadora foi embora para outra cidade e ela ficou sem este suporte extra.

Assim como as outras entrevistadas, Isis afirma que os blocos de rua não têm estrutura para receber as crianças ou atender as mães. Os debates até ocorrem, mas não se concretizam por falta de estrutura e investimento.


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