Ao pensar “corpo” em novo livro, filósofa polemiza com Judith Butler e afirma que a categoria “mulher” ainda é necessária à luta, pois é ela que mostra as condições materiais a serem transformadas. Nesta entrevista, exalta os feminismos latino-americanos

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Publicado 19/12/2023 às 14:20 


Foto de Ana Rüsche, obtida em sua página Anacronista .

Por Gabriela Moncau e Pedro Stropasolas para o Brasil de Fato

Em São Paulo para lançar seu novo livro, Além da pele (Editora Elefante), a filósofa italiana Silvia Federici, uma das mais influentes pensadoras e ativistas do feminismo anticapitalista, considera que os movimentos contra a desigualdade de gênero “mais poderosos do mundo” estão, atualmente, na América Latina.  

Citando lutas de camponesas e indígenas por território, o movimento Ni una menos na Argentina e interpretações feministas sobre o endividamento como uma das formas contemporâneas do capitalismo confiscar o tempo futuro, Federici ressalta que o principal desafio das lutas atuais é que estejam conectadas com as mudanças materiais das condições de vida.  

De tradição marxista autônoma, a italiana de 81 anos é autora de O ponto zero da revolução, Reencantando o mundo e Calibã e a bruxa, sua obra mais conhecida. Nela, Federici examina como a transição para o capitalismo mecanizou as vidas para o trabalho e, por meio de formas diferentes de coerção, impôs especificamente às mulheres a transformação de seus corpos em objetos sexuais e máquinas reprodutoras.     

Em Além da Pele, Silvia centra sua análise no corpo, que defende ser “a esfinge a ser interrogada e sobre a qual há de se atuar no caminho da mudança social e individual”. No livro, Federici se contrapõe à filósofa Judith Butler, que entende o gênero como performance, e propõe que “mulher” segue sendo uma categoria necessária para a política feminista.

“É claro que sempre temos uma escolha em tudo o que fazemos. Mas a forma como o conceito de performance é usado dá a ideia de que a decisão de performar o gênero é algo voluntário. Isso não reflete que o gênero define formas muito específicas de expectativas que restringem totalmente a vida e as escolhas das mulheres”, afirmou ao Brasil de Fato

“Se queremos mudar a condição das mulheres de forma significativa, temos que mudar a condição material de nossas vidas. Então, não precisamos apenas fazer escolhas diferentes. Temos de criar um mundo diferente”, resume. 

Nascida em Parma (Itália), Silvia Federici foi para os Estados Unidos no fim dos anos 1960 e lá foi cofundadora do coletivo Wages for housework [Salários para o trabalho doméstico]. Ali constituiu as bases da sua visão crítica das tarefas reprodutivas como um trabalho que produz trabalhadores. “O que vocês chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago”, diz um famoso slogan do coletivo.  

Viveu na África nos anos 1980, onde se envolveu na organização Women in Nigeria (Mulheres na Nigéria) e nas lutas contra as políticas de austeridade impostas ao país pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Atualmente, Silvia é professora emérita da Universidade de Hofstra, em Nova York, e também lança no Brasil o livro Quem deve a quem? (Editora Elefante), que organiza junto com as argentinas Verónica Gago e Luci Cavallero.   

Em conversa com o Brasil de Fato no hotel onde se hospedou na capital paulista, Federici levantou os motivos pelos quais considera que o movimento feminista deu protagonismo ao corpo. “Talvez porque as mulheres perceberam como seus corpos foram apropriados, expropriados pelo Estado, de formas mais invisíveis e profundas do que os corpos dos homens”, expôs. “A maneira como vivenciamos isso é totalmente organizada, estruturada e introjetada por relações de poder”, descreve Silvia.  

“Acho que o movimento feminista trouxe isso para a luta pela revolução. Por isso, realmente revolucionou o conceito de corpo de uma forma que nenhum outro movimento jamais fez”, salienta.

Confira a entrevista.

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É comum que lutas contra as opressões raciais ou de gênero sejam rotuladas como “identitárias” e vistas por setores da esquerda não apenas como separadas, mas como menos importantes do que a “luta de classes”. Como você vê essa questão da identidade? 

Para mim, a questão da identidade está profundamente enraizada nos processos históricos e na organização social de nossas vidas. Por exemplo, o trabalho é uma identidade. Portanto, a identidade não é algo abstrato. É feita por expectativas sociais, pelo trabalho, pela geografia, por condições que estão realmente enraizadas em toda uma textura política e econômica. É por isso, também, que não podemos mudar nossa identidade sem mudar nossa condição material de vida. 

Por exemplo, o movimento feminista transformou a imagem da mulher como serva do homem, que tem que ser mãe para ser socialmente aceita, que se sacrifica, que tem de colocar suas necessidades em último lugar. 

Essa mudança de identidade veio também da luta contra o confinamento e a desvalorização do trabalho doméstico. Com a ideia de que se trata de uma forma de produção: o trabalho doméstico, na verdade, produz trabalhadores. Portanto, acho que foi assim que a mudança ocorreu.

Nessa discussão sobre o uso da categoria “mulher”, você argumenta que “a negação de uma possibilidade de identificação social ou política é um caminho para a derrota”, certo?  

Sim, veja, a forma como minha mãe pensava sobre as mulheres como uma identidade é muito diferente da forma como eu percebo, por causa da luta que travamos. Mas a luta não é para mudar apenas uma identidade em abstrato, é para mudar a identidade por meio da transformação das nossas condições materiais de vida. 

Sobre isso, você considera que, em parte, o movimento feminista não foi capaz de conectar a luta pela legalização do aborto, por exemplo, com as condições materiais da vida das mulheres, né? 

Sim, em parte. Acho que houve uma tremenda mudança com a possibilidade de ter o direito ao aborto em muitas partes do mundo. É uma grande vitória. Sem o movimento feminista, não teríamos esse direito. Da mesma forma, não houve luta suficiente pelo direito de também sermos mães. 

Já em meados de 1980, vimos nos EUA o movimento social pela justiça produtiva. Em sua maioria, tratava-se de um movimento de mulheres afrodescendentes que historicamente tiveram a maternidade negada. Desde a escravidão e ao longo de séculos. A maternidade foi negada a essas mulheres não só por causa da esterilização, mas também por não terem os recursos para criarem seus filhos. Assim, as mulheres negras desafiaram o movimento feminista e a ideia de que o direito ao aborto é uma escolha. Elas disseram que isso é apenas parte da escolha. Escolha é poder decidir: quero ou não quero ter filhos?  

Aqui no Brasil, a brutalidade policial contra a juventude negra também é uma das formas pelas quais é tirado das mulheres negras o direito de criar seus filhos. 

Exatamente. Porque a juventude negra, evidentemente, é a que questiona mais radicalmente a legitimidade da norma institucional, que ainda é colonial. 

Como você vê o movimento feminista hoje?  

Há movimentos feministas. É muito evidente que os movimentos feministas mais poderosos do mundo atualmente estão na América Latina. São movimentos que entenderam muito bem que não é possível mudar positivamente a condição das mulheres se não mudarmos essa sociedade regida pelo capitalismo, a colonialidade, o racismo.  

Há exemplos na Argentina, no México, no Brasil. Vemos movimentos feministas, por exemplo, conseguindo conectar questões relacionadas à destruição ecológica com movimentos anticoloniais.  

Estão desenvolvendo também uma leitura feminista da política econômica como, por exemplo, do Banco Mundial e do FMI, o uso do endividamento para criar novas formas de escravidão com meios financeiros. É o que as mulheres na Argentina estão fazendo hoje.  

Que outras experiências concretas você pode citar, pensando também nos principais desafios que os movimentos feministas têm hoje? 

Acho que há muitos processos que são novos em comparação com os anos 1970. Atualmente há muitas formas de feminismo popular na África, na América Latina e na Ásia.

Nas últimas duas décadas, vimos o surgimento internacional de um movimento muito poderoso de trabalhadoras domésticas, predominantemente migrantes, que colocou de volta sobre a mesa a questão do trabalho doméstico, o valor desse trabalho, o fato de que ele mantém a sociedade em funcionamento. Há uma organização na Espanha chamada Território Doméstico cujo slogan é: “sin nosotras, nadie se mueve”. Sem nós, ninguém se move.  

Por outro lado, temos, por exemplo, muitas feministas que se dedicam a ser incluídas em áreas dominadas por homens, muitas vezes esquecendo que, a menos que também enfrentemos as questões de reprodução, da criação de filhos e do cuidado dos idosos, não conseguiremos mudar. Porque esses trabalhos ainda são feitos pelas mulheres, e são ainda desvalorizados; e o trabalho ainda molda a vida de nós, mulheres, onde quer que estejamos. 

Agora, articularam esse movimento internacional, com muitas formas de organizações. Tem sido muito poderoso. Também posso destacar o surgimento do movimento de mulheres indígenas, e não apenas na América Latina, mas também nos Estados Unidos.  

Anos atrás, vimos um movimento muito forte de mulheres indígenas impedindo a construção de um oleoduto em Dakota do Sul. Durante meses organizaram um enorme acampamento que parou a obra, a despeito de condições terríveis: clima frio, polícia por toda parte com cachorros, usando hidrantes, etc. O acampamento chegou a 7 mil pessoas.  

Isso se deve realmente ao fato de ter sido um grande movimento de mulheres e de seu nível de conhecimento sobre como reproduzir a vida cotidiana mesmo em condições mais difíceis. É algo que nenhum outro movimento poderia ter alcançado. 

Há também movimentos de camponesas, como as que estão na linha de frente da Via Campesina, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Brasil. Muitas, em princípio, não eram feministas. Elas mesmas me disseram. Tornaram-se feministas porque perceberam que, para poder lutar, precisavam ter autonomia, precisavam não ser consumidas pelos homens de sua comunidade. Não ter sua energia esgotada.  

Em um dos artigos do livro, você menciona que considera um erro estarmos lutando apenas contra as coisas, ao invés de lutar para construir algo. Muitas vezes, no entanto, a impressão é que precisamos responder a ataques constantes. A brutalidade policial de que falamos ou o genocídio em Gaza, por exemplo. Como escapar disso? 

Precisamos fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Há momentos de sair às ruas, protestar, mobilizar-se e organizar-se contra algo, mas isso não pode ser tudo. Porque – e acho que o movimento feminista é intuitivo e aprendeu isso desde o início – se não mudarmos também a nossa vida cotidiana, não poderemos sustentar a luta.  

A luta não pode se limitar a momentos de potência que estão fadados a se dissipar. Tem que ser também uma luta de construção. Não podemos mudar o que existe a menos que o substituamos por algo diferente.  

Tem um exemplo simples que sempre me impressionou. Toda vez que uma greve de luta trabalhista, por exemplo, ia além dos esquemas sindicais tradicionais e se tornava uma luta de resistência até o fim, nessas grandes greves que os trabalhadores colocavam tudo em jogo, arriscavam tudo… então, imediatamente, a vida cotidiana das pessoas mudava: como elas começam a se reunir, a pôr a vida em comum, a comer juntas, a compartilhar coisas. A própria vida cotidiana é transformada. E é isso que estou dizendo. Isso tem de acontecer em uma base mais ampla e mais consciente. 

Para sustentar uma luta de longo prazo contra esse regime monstruoso que é o capitalismo, também temos de começar a transformar a maneira como organizamos nossa vida cotidiana. Porque a maneira como organizamos nossa vida cotidiana é enfraquecedora, e é assim que o capitalismo se organiza.  

A família nuclear, a propaganda, o individualismo, o pensar só em si mesmo, a privacidade… Tudo isso que nos vendem como uma forma de liberação é, na realidade, uma forma de enfraquecimento. É somente com outras pessoas que podemos expandir nossa imaginação sobre o que é possível.  

O que você defende como “militância alegre”? 

É com as outras pessoas que nos nutrimos de energia, através do amor, da afetividade, das relações, no fazer coisas juntos, de não nos sentirmos sozinhos. Assim nos transformamos e vamos para mais um dia de luta. 

Não significa que você não sofra, porque você paga um preço quando luta contra essa sociedade violenta. Mas a luta também tem de ser alegre. Se a luta é sofrimento, mais dor, mais trabalho, mais fardo, então temos de repensá-la. Não podemos continuar pensando em revolução daqui a 500 anos. Se sua vida está ruim agora, temos de mudar agora. Não podemos continuar adiando as revoluções para um tipo de futuro que nunca sabemos se virá.  

E a vida das pessoas é miserável demais para acrescentar mais trabalho. A luta não pode ser apenas mais trabalho. É preciso que haja também algo que abra uma janela para um novo mundo. Abrir algo que nos dê um gostinho dessa sociedade que queremos construir, de outra sociedade já existente, a partir do presente.  

Edição: Vivian Virissimo

   
 

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