Quase lá: Não era amor, era cilada em forma de trabalho

O cuidado com o outro é tratado como algo subalterno, sem valor. Apesar de o mundo não funcionar sem esse tipo de trabalho. Em muitos casos, o labor das mulheres não passa de servidão seja na intimidade de suas famílias ou junto das famílias dos empregadores

 
 

Como diria a companheira Silvia Federici, o que classificam como amor, na realidade, é trabalho não remunerado. O tema da redação do Enem — “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil” — foi oportuno ao trazer luz para um debate que deve ser realizado também fora do ambiente escolar e de indicadores socioeconômicos.  

Particularmente, tive um gatilho quando uma de minhas filhas foi fazer a prova e compartilhou comigo os seus argumentos. À medida em que ela falava, fui relembrando de minha época de doméstica, que durou cerca de 20 anos. Nesse meio tempo, construí minha família em São Paulo — meus familiares, incluindo meus pais, permaneceram em Floresta, no interior de Pernambuco, onde nasci. Durante todo esse período tive de me revezar para cuidar dos meus 4 filhos e das casas onde trabalhei.  

Por um tempo considerável, nem direito ao descanso devido eu tinha, pois ficava, contra a minha vontade, instalada na casa dos patrões por semanas, às vezes tendo possibilidade de ver minha prole a cada 15 dias. Certa vez, para retornar à minha casa, tive de chamar o Corpo de Bombeiros, pois meus patrões da época simplesmente foram viajar e me deixaram trancada no local. Mas sobre esse assunto, deixo para uma outra ocasião. 

LEIA TAMBÉM

‘Você poderia ter me pedido’ – o trabalho invisível das mulheres 

A distopia do cuidado no Brasil opera no corpo das mulheres negras 

Um levantamento feito pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) aponta que, diariamente, em todo o globo, mais de 16 bilhões de horas são dedicadas ao trabalho cuja remuneração é inexistente e a obrigatoriedade vem pela via do afeto, na maioria das vezes imputado a mulheres, sobretudo as que estão na base da pirâmide social — ou seja, negras e pobres. No Brasil, essas mulheres, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua 2022, gastam pelo menos 17h por semana nos afazeres domésticos e no cuidado com filhos, pais, netos, tios e sogros, por exemplo.

Foto: Cottonbro Studio/Pexels
Foto: Cottonbro Studio/Pexels

A força de trabalho doméstica exercida por mulheres, que pode ser remunerada ou não, abrangia, no final de 2022, 91,4% da mão de obra no setor, segundo levantamento do Dieese sobre os 10 anos da lei da PEC das Domésticas. O cuidado com o outro, que é algo tão louvável, é confundido — e tratado — como algo subalterno, sem valor. Tanto é que seja na intimidade das famílias dessas mulheres ou no seio da família dos empregadores, o labor das mulheres não passa de servidão. 

Essa labuta sem salário é resquício de uma escravidão negra no país que, mesmo após 135 anos de sua abolição, está impregnada em nossa sociedade. Prova disso são mulheres como Yolanda Ferreira e Madalena Gordiano – ambas negras, por coincidência ou não – que foram encontradas em situações análogas à escravidão enquanto “trabalhavam” sem salário como domésticas para uma gente que as consideravam quase da família. Esse tipo de afeto nós sabemos bem qual é o nome. 

Ouça a entrevista com Helena Hirata sobre política do cuidado e gênero 

Não se vive bem sem uma organização doméstica funcional, com uma casa asseada, roupa limpa. O sistema em que vivemos hoje só gira quando um contingente de pessoas está disponível para facilitar a vida de quem está no mercado de trabalho, distribuindo sua força vital entre as horas e transporte público e no serviço propriamente dito. Mas quando essa facilitação é promovida por quem também está na luta pela sobrevivência, trabalhando dia e noite? Ou por quem oferece, ao longo da vida, sua força de trabalho sem receber nada?

Recentemente, foram apresentados dados do Instituto Datafolha dizendo que 38% das 2.534 mulheres entrevistadas entre julho e agosto deste ano se sentiam ansiosas, deprimidas (13%) e fracassadas (12%). A quem serve esse mundo multitarefas, que só presta para adoecer as mulheres?

Que todas, todos e todes passemos a pensar, enquanto sociedade, em uma forma mais igualitária sobre o cuidado. Há um provérbio africano que diz ser preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. Que nós possamos aprender com esse ensinamento a cuidar não só das crianças, mas de todos os membros de nossa família nuclear ou estendida de forma mais igualitária.

 

Ediane Maria é deputada estadual (PSOL-SP). Primeira trabalhadora doméstica a ocupar a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Coordenadora do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) e do Movimento Raiz da Liberdade. 

fonte: https://diplomatique.org.br/trabalho-cuidado-feminismo-direitos-mulheres/


Matérias Publicadas por Data

Artigos do CFEMEA

Coloque seu email em nossa lista

lia zanotta4
CLIQUE E LEIA:

Lia Zanotta

A maternidade desejada é a única possibilidade de aquietar corações e mentes. A maternidade desejada depende de circunstâncias e momentos e se dá entre possibilidades e impossibilidades. Como num mundo onde se afirmam a igualdade de direitos de gênero e raça quer-se impor a maternidade obrigatória às mulheres?

ivone gebara religiosas pelos direitos

Nesses tempos de mares conturbados não há calmaria, não há possibilidade de se esconder dos conflitos, de não cair nos abismos das acusações e divisões sobretudo frente a certos problemas que a vida insiste em nos apresentar. O diálogo, a compreensão mútua, a solidariedade real, o amor ao próximo correm o risco de se tornarem palavras vazias sobretudo na boca dos que se julgam seus representantes.

Violência contra as mulheres em dados

Cfemea Perfil Parlamentar

Direitos Sexuais e Reprodutivos

logo ulf4

Logomarca NPNM

Cfemea Perfil Parlamentar

Informe sobre o monitoramento do Congresso Nacional maio-junho 2023

legalizar aborto

...