Com menor acesso à saúde e maior exposição à violência, pessoas negras têm envelhecimento mais difícil do que pessoas brancas, aponta relatório; para pesquisador da USP, é necessário garantir o direito a uma longevidade autônoma e saudável
Jornal da USP
Texto: Danilo Queiroz*
Arte: Carolina Borin**
Racismo deixa marcas, inclusive durante o envelhecimento da população negra brasileira - Fotomontagem: Jornal da USP - Imagens: Freepik
Envelhecer não é fácil para boa parte da população brasileira, ainda mais para quem é negro. O racismo deixa marcas e suas consequências, por vezes, não conseguem ser evitadas ao longo da vida. Ariosvaldo Ribeiro de Sousa sabe muito bem disso. Hoje, com 56 anos, ele entende que mesmo saindo da sua cidade natal, em Vitória da Conquista, no sudoeste da Bahia, o racismo nunca deixou de segui-lo pelos espaços que foi ocupando à medida que foi envelhecendo.
“Eu nunca tive oportunidade de aprender o básico. Não tenho estudo, nasci na periferia. Achei que minha cor nunca ia interferir nas oportunidades que apareceram. Mas sei que hoje minha filha também não vai escapar disso, porque é negra também”, conta ele, orgulhoso por ser pai de Livia Lemos, estudante de Jornalismo na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, e primeira da família a ingressar em uma universidade.
Atualmente Sousa é trabalhador autônomo, mas anos atrás atuou como pintor. “Quando eu trabalhava em casa de pessoas ricas, eu sentia que era maltratado por conta da cor, mas como não tenho estudo, só escutava e ficava quieto”, lembra. Após tantos anos passando por essas situações, ele acredita que o racismo não vai acabar. “A cor parda e a cor preta não vão escapar. Em qualquer lugar vai ter racismo, na faculdade, no shopping, na rua. Mas é que nem eu digo à minha filha: é preciso não desistir!”
O que Sousa e tantos outros sentem na pele foi traduzido em números por uma pesquisa intitulada Envelhecimento e Desigualdades Raciais, realizada pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), em parceria com o Itaú Viver Mais. Os resultados da pesquisa confirmam que a velhice das pessoas negras no Brasil é o somatório das desigualdades impostas pelo racismo ao longo da vida, como a baixa escolaridade, as dificuldades de acesso à saúde e lazer, exposição à violência, entre outros indicadores.
Ariosvaldo Ribeiro de Sousa - Foto: Arquivo Pessoal
Envelhecer como direito
Márcia Lima também coordena o núcleo AFRO-Cebrap - Foto: Arquivo pessoal
Em debate realizado no lançamento da pesquisa, Márcia Lima, professora de sociologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, afirmou que desde a infância já há uma distinta percepção de velhice entre as pessoas brancas e negras. Ela, que também é secretária nacional de Políticas de Ações Afirmativas e Combate e Superação ao Racismo, do Ministério da Igualdade Racial, exemplificou isso citando o famoso seriado infantil Sítio do Picapau Amarelo. “Temos duas velhices: a da Dona Benta, a vovó que acolhe, e a da Tia Anastácia, a que está lá para servir e não tem história, não tem família.”
Assista ao lançamento da pesquisa no vídeo a seguir:
“A nossa população negra começa a ser superior à população branca no início da vida. Mas, a partir dos 40 anos, essa população vai morrendo de maneira mais acentuada, seja pela violência policial ou pelos problemas de saúde”, destaca Huri Paz, um dos autores do estudo e pesquisador do núcleo AFRO/Cebrap. “Alcançar a velhice, sobretudo no caso da população negra, é vencer processos complexos de discriminação. No Brasil, há uma tendência de que pessoas negras morram antes mesmo de envelhecer, porque o racismo não permite a longevidade dessas pessoas”, acrescenta ele, que também é mestrando em sociologia pela FFLCH.
Dados do IBGE indicam que em 2030 o número de idosos superará o número de jovens no País. Garantir um envelhecimento digno está previsto em lei. De acordo com o artigo 9º da Lei 10.741, de 2003, é obrigação do Estado garantir à pessoa idosa a proteção à vida e à saúde, mediante efetivação de políticas sociais públicas que permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade.
A pesquisa apresenta um caráter político, ao mostrar de forma científica argumentos que contestam o senso comum de associar a velhice com inatividade, ou invalidez. “Esse estudo nos ajuda a quebrar esses estereótipos de que quando a gente chega em idade mais avançada, nossas capacidades criativas diminuem”, diz Huri ao Jornal da USP. “Ou que necessariamente precisaremos de apoio financeiro, emocional e físico. Precisamos defender o direito de um envelhecimento autônomo, saudável e igual para todas as pessoas”, reforça e defende a necessidade de políticas públicas que assegurem o direito de crianças negras envelhecerem.
Huri Paz - Foto: Arquivo Pessoal
Para o pesquisador, além de sofrerem diretamente com os impactos do racismo sistemático, negras e negros brasileiros também encaram mais desafios para envelhecer bem. “Existe uma maior incidência de diabete, hipertensão e problemas cardíacos em homens negros, que na maioria das vezes não conseguem o tratamento adequado nos sistemas públicos de saúde por conta da alta demanda”, explica Huri. “Além disso, o homicídio e as violências nas favelas – que atingem especificamente ainda mais homens negros – revelam que a população negra morre antes de conseguir envelhecer”, acrescenta. “Nós temos uma sociedade que não consegue dar as mesmas garantias de direitos para pessoas brancas e pessoas negras”, completa.
Desigualdades em dados
Com faixas etárias divididas em 50-59, 60-69, 70-79 e 80 ou mais, a pesquisa investigou as principais desigualdades no processo de envelhecimento em três capitais com alto índice de longevidade: São Paulo, Salvador e Porto Alegre. As respostas são baseadas em métricas que vão de 0 a 100. Quanto mais próximo de 100, melhor a percepção sobre a velhice daquele grupo. Na maioria das faixas etárias nas três cidades, a situação dos homens tende a ser melhor do que a das mulheres.
Entre pessoas de 50 a 59 anos na cidade de São Paulo, como é o caso de Sousa, o envelhecimento ativo dos homens negros é de 52,8. Já o de mulheres negras é de 52,4. Há outros fatores mais subjetivos que explicam essa diferença, como a autoestima e sensação de bem-estar, que é mais baixa no público feminino.
Nas três cidades, a percepção de idosos negros sobre a velhice é pior quando comparada com idosos brancos – Imagem: Reprodução/ Cebrap
Para determinar as disparidades existentes, o estudo analisou 11 indicadores que compõem o envelhecimento ativo e adequado da população. Cinco deles se mostraram mais evidentes na vida de pessoas brancas: inclusão produtiva, segurança financeira, exposição à violência, saúde e inclusão digital.
Como apresentam os dados, São Paulo é a cidade em que os homens negros estão mais expostos à violência em todas as faixas etárias. Já em Salvador, são as mulheres negras que estão mais expostas à violência na maior parte das faixas etárias, na comparação com as brancas. Em São Paulo, 28% dos homens negros já foram ameaçados por armas de fogo, contra 24% dos homens brancos, 12% das mulheres negras e 8% das mulheres brancas. Além disso, na população negra a mortalidade prematura, na infância e juventude, somada à falta de acesso aos serviços de saúde, incidem na diminuição da longevidade.
Homens e mulheres negros também possuem os piores indicadores de inclusão digital, porém conforme avança a faixa etária, menor é a inclusão para todos os idosos. A região é outro fator determinante para a desigualdade de acesso aos serviços de internet. Salvador é a cidade que apresenta os piores índices, apresentando uma diferença de mais de 20 pontos porcentuais entre mulheres negras e mulheres brancas, na faixa etária de 80 anos ou mais.
O racismo digital se mostra mais latente à medida que envelhecem – Imagem: Reprodução/ Cebrap
Para o pesquisador, o estudo surge como uma tentativa de apontar as desigualdades sobre o direito da população negra envelhecer. “Se temos hoje uma aposentadoria para homens a partir de 65 anos, a gente já sabe que boa parte dos homens negros vai morrer antes de conseguir acessá-la. Pois há uma série de violências e omissões que fazem com que a população branca seja maior que a população negra, quando envelhece”, destaca Huri.
O objetivo é despertar para a compreensão do envelhecimento como um fenômeno que ocorre assim que uma pessoa nasce. “Isso é um estudo que dá insumos para o desenvolvimento de políticas públicas. Não adianta essas políticas estarem direcionadas apenas para o público 60+, mas desde o início da vida”, afirma.
*Estagiário sob supervisão de Antônio Carlos Quinto e Tabita Said
**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado