Parte I

 

Cândido Grzybowski

Poucos se dão à tarefa de pensar sobre o que é e o que significa, afinal, o “desenvolvimento”. Ele funciona como um poderoso senso comum, um amálgama agregador apontando sentidos e rumos. Atravessa todos os extratos sociais, todos os meandros em que a gente leva a vida,  sejam rurais ou urbanos, nas grandes periferias e nos centros mais aquinhoados e intensos, no interior das famílias e comunidades, no trabalho, nos espaços de lazer e cultura, nos meios de comunicação e redes, nas esferas do poder. Geralmente, é visto como uma verdadeira lei econômica incontestável e está incorporado como um acordo político básico de que precisamos do desenvolvimento. Ele é visto como bom e necessário, um processo de sempre ter mais e mais bens e serviços, expressão de bem estar e “civilização” a ser construída. Está subentendido que sem desenvolvimento ninguém pode ter futuro, seja qual for. Só falta achar o caminho certo e as lideranças adequadas que nos levem a ele e nos proporcionem o máximo. O fato é que o  desenvolvimento justifica os mais variados regimes políticos, de fascismos e ditaduras a democracias liderados por blocos de direitas ou democracias de perfis mais progressistas e includentes, até os regimes de socialismo histórico de inspiração marxista se vangloriaram de seu rápido desenvolvimento econômico.

Haja engodo mais poderoso! De cara, precisamos reconhecer que o difuso conceito de desenvolvimento, enquadra o modo de pensar e limita a imaginação, os sonhos, a inovação e a ousadia,  algo fundamental para o viver humano. Podemos divergir sobre como fazê-lo, mas parece que não temos outra saída para buscar algo mais e melhor, até a justiça social, com maior igualdade e inclusão de todas e todos. Mas, sobretudo, o desenvolvimento tem a capacidade de esconder a falsidade e a dominação nele embutida, assim como a destruição ecológica e social que é produzida em seu nome. Sempre de formas, extensões e impactos ecossociais muito diversos.

Vale a pena esclarecer o sentido que estou dando ao “desenvolvimento como mantra”. Não estou pondo em dúvida que a busca de desenvolvimento implica em processos econômicos, científicos e tecnológicos, sociais, culturais e políticos, diferentes e inter-relacionados. Tudo depende onde – em que país, região – e em quais  condições históricas e  políticas se dá o desenvolvimento. Meu objetivo é chamar a atenção para a dimensão ideológica  que a noção de desenvolvimento esconde mais do que aponta e revela, de sua capacidade de provocar adesão mais do que dúvidas. Sempre medido e acompanhado pela mágica e reducionista camisa de força do crescimento do PIB – produto interno bruto em termos de valores de mercado de todas atividades econômicas de um lugar em um período dado. Se ele cresce e tende a crescer é sempre bom e festejado, Mas se não cresce ou, pior, se diminui, o PIB se torna um sinal de alerta de crise à vista. O PIB não aponta qualidade nenhuma, pois é um termômetro e se basta a si mesmo: indicador da “febre” da economia. Nada sobre desigualdade social ou destruição ecológica do desenvolvimento. Enfim, nada sobre a saúde e bem estar da população. Nada sobre o domínio e o extrativismo de recursos naturais em nome dele. Sempre é repetida a promessa nunca cumprida do desenvolvimento: a economia precisa crescer para distribuir. É esperar, esperar... para nunca chegar lá.

Em si mesmo, o conceito de desenvolvimento é de múltiplo uso, para tudo que cresce. Ele vem sendo usado desde muito tempo, seja para seres vivos, capacidades humanas, tecnologias, culturas, sociedades inteiras. Porém, aqui estou tratando do desenvolvimento econômico, entendido como crescimento da produção de bens e serviços. Mas como expressão de um ideal de bem estar coletivo precisa ser situado nas relações geopolíticas de constituição, expansão e domínio do capitalismo, com suas etapas, que não cabe aqui aprofundar. Basta ficarmos nas heranças vivas e atuantes hoje.

Como expressão ideológica carrega as heranças do que foi a violenta e destrutiva expansão europeia de conquista, colonização, extrativismo, com escravidão, racismo e patriarcalismo, em nome da modernidade, da “civilização cristã” contra a “barbárie”. Foi uma empreitada que se gestou no seio da Europa e se consolidou às expensas do mundo, para a acumulação primitiva do que se tornou o capitalismo “desenvolvido”:  novo modo de produção, exploração, destruição e domínio – econômico, político, militar, imperial e cultural para a acumulação de mais e mais capital em poucas mãos – em  que estamos mergulhados até hoje, e que nos dizem “não haver alternativas”. Será?

Bem, não é o lugar e nem meu objetivo aprofundar isto. Basta lembrar como uma espécie de lastro histórico. Como expressão carregada  ideologicamente, o “desenvolvimento” se tornou o mantra do capitalismo após as destrutivas grandes guerras mundiais do século passado, aquela carnificina envolvendo o mundo tudo, movida por disputas geopolíticas imperiais, tendo a Europa como palco principal. Mas o objetivo era a partilha do mundo, ou seja, o acesso e exploração das colônias, especialmente aquelas sob domínio inglês e francês.

A I Guerra Mundial, de 1914-1918, acabou com a capitulação da Alemanha, principal potência capitalista em ascensão na época. Mas em meio à ela aconteceu a Revolução Socialista na Rússia, em 1917, com grande impacto político, passando a ser vista como ameaça ao mundo.

A revanche da Alemanha se forjou com todos os horrores do nazismo de Hitler, que iniciou a II Guerra Mundial em 1939 e conseguiu dominar militarmente a Europa Continental Ocidental. Com sua derrota em 1945, especialmente pelas vitórias da URSS, vindo do Leste, e aliados liderados por EUA, na frente Ocidental, deu-se o fim da II Guerra, em 1945.

Desta guerra surgiu o mundo bipolar da Guerra Fria, com EUA de um lado e URSS do outro. Também surgiu a ONU com promessas de evitar guerras, mas estruturalmente incapaz de gerir as contradições do mundo até hoje, dado o poder de veto no Conselho de Segurança das cinco potências vencedoras da guerra. Isto é um resumo, quase uma caricatura, mas o que importa é a realidade criada e que foi dominante de 1945 a 1989, quando se deu a implosão da URSS e do Pacto de Varsóvia dos países comunistas do Leste Europeu. Os EUA, temporariamente vitoriosos, conquistaram hegemonia imperial capitalista unipolar, com seus exércitos e o dólar. Só agora no século XXI esta hegemonia está sendo ameaçada de algum modo

Mas o que isto tudo importa para o que chamo “mantra do desenvolvimento”? Tudo se gesta naqueles anos iniciais do pós-II Guerra Mundial. O “comunismo” representado pela URSS, apesar de membro com poder de veto na recém nascida ONU, passou a significar o inimigo maior à nova hegemonia. Importa destacar que, antes mesmo do fim da guerra, em Breton Woods, no norte de Massachusetts, EUA, por acordo entre o bloco vitorioso, foram criadas as instituições centrais da nova hegemonia do dólar para o capitalismo: BM e FMI, que não se faz necessário qualificar aqui pelo que significam para o mundo e o imperialismo norteamericano desde então.

O que sim importa destacar é como surgiu a bipolaridade, sob liderança dos EUA e da URSS. A “guerra fria” é de 1947. Derrotados o nazismo e o fascismo, o inimigo maior passou a ser o socialismo/comunismo, representado pela URSS. Apesar da ditadura de Stálin, a URSS mostrava um sucesso espetacular em avanços econômicos e sociais, que seduziam muitos países pelo mundo, sobretudo as ex-colônias dos imperialismos europeus, a partir de então submetidos ao imperialismo dos EUA e seus aliados europeus, ex- potências coloniais.

É do Governo Truman, dos EUA, que se impõe a noção de “desenvolvimento” – capitalista, é claro – em contraposição ao “socialismo/comunismo”. Baseado no “american way of life” passou a ser referência de um mundo possível de produção de bens e serviços com acesso a todo mundo, e um de viver e de cultura baseado no consumismo,  um sonho em termos de bem estar para povos nos mais diferentes países. Como parte da estratégia, muito além de bancar o “cão de guarda” do mundo, passou a contar com BM para financiar o “desenvolvimento” e o FMI para regular as moedas e evitar crises financeiras sob o domínio do dólar – então tendo o ouro como equivalente. Mas para  assegurar a sua hegemonia concebeu o Plano Marchal[ii] de recuperação da Europa Ocidental devastada e o “machartismo” interno[iii] contra as esquerdas e simpatizantes, em nome do combate ao comunismo.

Foi uma estratégia de “legitimação da hegemonia do desenvolvimento” – como prefiro definir – que influenciou o mundo inteiro. De algum modo, afetou e submeteu as grandes promessas das esquerdas em ascensão na Europa animada por potentes movimentos sindicais e intencionalidade anticapitalista. Para o que, então, passou a se chamar “Terceiro Mundo” (ex-colônias em geral) sobraram a vigilância militar descarada e o risco de intervenção militar, para quem fosse considerado fora do rumo certo do “desenvolvimento”... capitalista, sem dúvida. Aí começa, por exemplo, o drama da ousadia de Cuba, com a revolução comandada por Fidel Castro, e, na sua esteira, a implantação de ditaduras militares entre nós latinoamericanos com apoio dos EUA, que passaram a uma estratégia de contenção de insurgências pelo mundo, com guerras que foram se multiplicando, que não se faz necessário relacionar aqui.

As contestações não frontais ao “desenvolvimento”, mas concebidas mais para explicar os porquês do não desenvolvimento, foram muitas e em si mesmas importantes como buscas e construção de imaginários alternativos nos países pobres, em geral ex-colônias do expansionismo eurocêntrico, na América Latina, África e Ásia. Aqui cabe focar especialmente a vigorosa produção intelectual a respeito, com impactos políticos em nossos países, surgida na América Latina. Trata-se, de uma forma ou outra, em esforço crítico do “desenvolvimento”, mas sem sair da caixinha que ele representa como concepção de bem estar coletivo a ser buscado, seja para combater desigualdades sociais e pobreza, como para conseguir melhores padrões de vida em termos de consumo de bens e serviços.

Na verdade, aqui só cabe lembrar as origens e rumos de tal produção, impossível de aprofundar para os objetivos de minha análise. A inspiração veio da CEPAL/ONU, através do argentino Raul Prebisch, com a formulação da linha estruturalista do pensamento econômico. Ele apontou as relações econômicas mundiais como de trocas desiguais, onde o desenvolvimento gera e pressupõe o subdesenvolvimento. Na mesma linha e com grande impacto no nosso seio veio Celso Furtado e sua grande produção, referência até hoje. Daí veio toda uma ideia da necessidade de ação do Estado para passar do subdesenvolvimento ao desenvolvimento. É de 1952 a criação no Brasil do BNDE – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico[iv], um dos maiores bancos do gênero no mundo, até hoje. Vieram as grandes estatais para induzir o desenvolvimento, como a Petrobras e Eletrobrás. Também veio depois a SUDENE, com a finalidade de promover o “desenvolvimento” no Nordeste.

É importante destacar duas decisões políticas com enormes consequências para a história do desenvolvimento brasileiro. Primeiro, os “50 anos em cinco do Juscelino Kubitschek”, com a opção pela indústria automobilística e sucateamento da enorme malha ferroviária de então, para criar mercado para caminhões de carga e ônibus para transporte de passageiros. Até os bondes desapareceram... A outra decisão foi a majestosa e  ousada obra de Brasília para ser a nova capital do Brasil. Claro, em nome do mesmo mantra do desenvolvimento foi construída a capital no Planalto Central, no divisor de águas dos grandes rios brasileiros, afluentes do Amazonas e os do Paraná. Mas Brasília, bela obra de arquitetura, desde o nascimento produziu mais favelas – as cidades “satélites” - do que cidade propriamente dita, para todas e todos, nossa grande chaga social de periferias excluídas em todo que é cidade. Estes dois marcos são uma espécie de mudança de época na história brasileira. Ambas decisões produziram impacto econômico, social, migrações enormes, destruição ecológica ... como resultado do desenvolvimento.

Em termos de pensamento, na esteira do pensamento estruturalista veio a “teoria da dependência”, com muito mais capacidade crítica do que a linha inaugurada pela CEPAL. A motivação, porém, era o porquê que não acontecia o tal “desenvolvimento”. Claro que muitas versões de esquerda foram se multiplicando no sentido de mudar a estrutura de relações que impediam nosso acesso ao desenvolvimento.

Outro destaque em termos de desenvolvimento brasileiro, que não dá para ignorar, foi o período da ditadura militar, de 1964 a 1985. Foi algo que ocorreu primeiro no Brasil,  mas se multiplicou e em muitos outros países da região. No nosso caso, a ditadura, com toda a sua violência, repressão, perseguição e morte de opositores ao regime, produziu o “milagre econômico” brasileiro dos anos 1970, então festejado pelo capitalismo do mundo inteiro, levando o Brasil a se tornar um dos principais destinos do capital estrangeiro para... trazer o tão sonhado desenvolvimento com suas mazelas.

Nunca é demais lembrar os “feitos” do milagre da ditadura. Especial destaque merece a agressão direta à integridade da Amazônia com sua proposta de “colonização” (literalmente), abrindo a Transamazônica, via de Leste rumo ao Oeste, contra Povos Originários e Tradicionais, ameaçando a integridade do bioma amazônico, com assentamento de colonos e, na sua esteira, estimulando a grilagem de terras e desmatamentos para nova fase de expansão dos grandes latifúndios. Outro destaque é construção da gigante hidrelétrica de Itaipu com a formação de um imenso lago, expulsando milhares de agricultores familiares e alagando as Sete Quedas do Rio Paraná, em nome do desenvolvimento.  Bem, das ruínas da destruição ecossocial surgiu o MST, um movimento social renovador e com bandeira da Reforma Agrária. Itaipu inspirou um modelo de grandes obras, como a Ponte Rio-Niterói, feitas a pau e fogo. Também devemos à ditadura, em nome do desenvolvimento, a consolidação do modelo do agronegócio e sua expansão rumo ao Centro e Oeste do país, tornando o país um dos maiores produtores e exportadores de grãos do mundo, em base de um capitalismo agressivo da natureza, dos povos originários e da própria política e poder do país. Mas não dá para falar do “milagre econômico” da ditadura deixando de lado o arrocho salarial implacável, como política de, mais uma vez, de desenvolvimento. No seu lastro cabe destacar, na contramão, o ressurgimento do “novo sindicalismo”, tendo os metalúrgicos do ABC na frente e “criando” a liderança de Lula e o PT, que marcam as lutas pela redemocratização desde os anos 1980 e o período de 14 anos de governos petistas.

Como conclusão provisória – pois continuarei em novas postagens – sim tivemos e temos “desenvolvimento” medido pelo PIB, desenvolvimento capitalista concentrador e destruidor em termos ecossociais, combinando extrativismo sem limites, exploração até com trabalho análogo à escravidão, com índices de pobreza e fome vergonhosos. É disto que precisamos? Tem saída que não implique em concentração de riquezas e destruição ecossocial?

 

[i] Esta postagem tem origem numa intervenção minha feita no Simpósio Especial “Alternativas do Desenvolvimento e Bem Viver”, como parte da programação de XIV RAM – Reunião de Antropologia do Mercosul, de 1 a 4 de agosto de 2023, na UFF, Niterói, RJ.

[ii] O Plano Marchal (general do exército dos EUA, secretário de Estado do Truman) é um grande pacote financeiro de bilhões de dólares em condições favoráveis para os países europeus, de 1948 a 1951, que veio junto com a instalação de batalhões militares americanos  em seus territórios, em nome da defesa diante da ameaça “comunista”. Nisto também veio a criação da OTAN.

[iii] O machartismo lembra o Joseph McCarthy, influente senador, que de 1950 a 1957 animou uma “caça às bruchas” no meio intelectual, cultural, cinematrográfico e sindical dos EUA, em nome de combate ao comunismo interno.

[iv] O “S”, de Social, no BNDE foi acrescentado nos anos 1980.

 

O Mantra do Desenvolvimento II

 

Retomo a reflexão sobre o desenvolvimento focando um período mais recente, particularmente marcado pela globalização capitalista neoliberal. Esta foi se gestando desde os anos 1970, combinando vários processos, mas se consolidando como uma espécie de dogma ou religião laica. Submeteu e subverteu os próprios Estados – com o mote de menos Estados e menos políticas sociais – pois, na estreita visão neoliberal, desenvolvimento só se alcança com o domínio absoluto do livre mercado,  suas leis de mercantilização de tudo e que vença o mais competente. Tivemos o aparecimento do Fórum Econômico Mundial, em Davos, como espaço de construção de consensos para o desenvolvimento neoliberal e global do capitalismo, com participantes de CEOs de grandes empresas, bancos, fundos de desenvolvimento, as suas elites pensantes através de fundações ou de grandes meios de comunicação, além de líderes políticos dos países dominantes. O pensamento neoliberal começa a sua escalada rumo à hegemonia nas grandes universidades, tendo na liderança a Universidade de Chicago, berço dos “Chicago Boys”.  Em meados dos 1980 apareceu o “Consenso de Washington” das Instituições Multilaterais (BM, FMI), que propôs o famigerado decálogo de imposição das políticas de abertura comercial e tratados de livre comércio, desestatização e privatizações, ajuste estrutural, reformas trabalhistas e dos sistemas de aposentadoria.  Enfim, um capitalismo de domínio do capital financeiro e da mercantilização total da vida. Na sua esteira, depois de vários anos de negociações da “Rodada Uruguai do GATT”, foi criada na década de 1990 a OMC, que se somou ao BM e FMI.

Vendo hoje aqueles anos tumultuados dá para qualificá-los como de “radicalização do capitalismo” com uma estratégia imperial dos EUA e seus eternos aliados da Europa, para (re)controlar o mundo, já que as guerras imperiais levaram a impasses ou derrotas (Coréia, Vietnam...). Basta lembrar o significado econômico e político da “crise da dívida” no então chamado “Terceiro Mundo” e a destruição provocada, em seu nome, na forma de “ajuste estrutural” imposto, verdadeiro tsunami sobre nossas economias e, particularmente, sociedades. No processo, em 1989, acabou a bipolaridade da Guerra Fria, com a implosão da URSS e do bloco socialista do Pacto de Varsóvia. Aí começa o que vemos mais claro hoje, a expansão da OTAN, começando com a guerra na antiga Jugoslávia.

No centro do capitalismo, os governos Reagan, nos EUA, e Thatcher, na Inglaterra, foram emblemáticos no período. Aliás, a conservadora Thatcher, a “dama de ferro”, foi implacável na destruição do movimento sindical inglês. Ela cunhou a expressão de que não há alternativa ao neoliberalismo: TINA – there is no alternative.  Exatamente na mesma Inglaterra, Tony Blair, trabalhista, veio com propostas de “neoliberalismo de esquerda”, uma espécie de capitulação vergonhosa que contaminou a socialdemocracia europeia em seu conjunto. Além disto, abriu espaço para o ressurgimento de propostas da direita extrema, que não escondem sua vocação fascista, nacionalista e xenofóbica.

Fora do mundo eurocêntrico, cabe destacar o que surgiu no Sudeste Asiático e, sobretudo, na China com a sua escalada para se tornar o que é hoje, o coração industrial do mundo. Enfim, o mantra do desenvolvimento capitalista neoliberal passou a penetrar em tudo e em todo mundo. Não foi exatamente uma revolução apesar de redesenhar o mundo e submetê-lo ainda mais ao capitalismo. A versão chinesa, com liderança do partido comunista, promoveu exatamente o desenvolvimento capitalista,  para combater a imensa fome e pobreza no seu seio e construir uma sociedade comunista. É possível? Bem, tem semelhança com o que foi o “comunismo” na Rússia de Stalin. Mas na China, as grandes empresas capitalistas foram aceitas e transferiram as suas plataformas industriais para lá, valendo-se da “disciplina” do Estado, salários extremamente baixos e falta de movimento sindical para combatê-las. O Estado teve e tem um papel central nas transformações “capitalistas chinesas”.

O fantástico crescimento econômico tornou a China um polo central na demanda de matérias primas de toda ordem e do mundo inteiro. A reprimarização das economias “endividadas”, como a de nossos países da América Latina, foi alimentada por este “boom das commodities” com centro na China. Trata-se ainda do desenvolvimento, sem dúvida, medido pelo crescimento espetacular do PIB por longos anos, pois tornou a China. Transformador? Sem dúvida! Hoje, entre os super bilionários que manietam o mundo a seu serviço, naquela parcelinha dos 1%, os chineses tem participação destacada. Se temos um capitalismo globalizado diferente do que foi o capitalismo do pós II Guerra Mundial, a espetacular ascensão da China e seu entorno tem um grande papel.

Ocorreram mudanças geopolíticas de monta, que não é meu objetivo analisar aqui. Vale a pena, porém, destacar que neste contexto, a dívida externa se tornou sinônimo de imposição das políticas do “Consenso de Washington” sobre os países subdesenvolvidos com o pacote de ajuste estrutural. Isto num contexto de esgotamento dos regimes autoritários e de redemocratização. Ou seja, as democracias no continente ressurgem “encurraladas” pelo globalização capitalista neoliberal, onde o desenvolvimento, entendido como crescimento, dependeu de muito ajuste e um verdadeira reprimarização (agronegócio e mineração) das economias. Talvez os casos da Argentina e do Brasil são os mais emblemáticos, pelo seu tamanho e pela dependência que passaram a ter da produção de “commodities”, especialmente para China, mas também para a União Europeia. Mesmo a onda de governos progressistas não conseguiu inverter tal tendência global. Isto porque se restringiram a políticas democráticas distributivas dependentes da “exportação de commodities”, sem transformações significativas nas economias com seu “neoliberalismo progressista”,como são definidos nos círculos mais críticos.

Mas em termos de concepções e imaginários, com grandes redes, coalizões e eventos se instalou um debate sobre “alternativas de desenvolvimento”: desenvolvimento sustentável, desenvolvimento humano, desenvolvimento com face humana, desenvolvimento como direito[1], entre tantos outros. Tudo para submeter o próprio “desenvolvimento econômico capitalista neoliberal” a objetivos democráticos e sociais, apostando na possibilidade distributiva e consumista, mercantil, de mais e mais crescimento com base nas empresas e seus mercados.

Não cabe aqui lembrar isto tudo, pois não é o propósito da série de postagens. Mas gostaria de ressaltar o papel da ONU, em particular, como promotora de “alternativas de desenvolvimento”, algo que ela alimenta até hoje como fórum multilateral sem verdadeiro poder de gestão do mundo, pois não passa de sinalizador de tipo “moral” e espaço político de busca de consensos para evitar guerras... As guerras não foram e não são evitadas até hoje, pois fora do Conselho de Segurança, com o poder de veto de “cinco” potências, a ONU nada decide.

No Interior da ONU foi criado o PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Também surgiu a CNUCED – Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento. Em termos de debate sobre como praticar um desenvolvimento mais justo – com cara humana, ao gosto da ONU – foram e são espaços importantes e mereceram atenção e participação de muitas redes e coalizões pelo mundo. Mas merece destaque especial o ciclo das grandes Conferências Temáticas da ONU, num esforço de se contrapor e produzir alternativas, de algum modo, à globalização neoliberal ou, ao menos, mitigar seus impactos, chamando os governos nacionais e fóruns multilaterais para suas responsabilidades a respeito. No processo, ganhou destaque uma agenda ambiental e social. Só relaciono aqui as principais: Meio Ambiente (Rio, 1992), Direitos Humanos (Viena,1993), População e Desenvolvimento (Cairo, 1994), Desenvolvimento Social/Pobreza (Copenhagen, 1995), Mulheres (Pequim, 1995), Assentamentos Humanos/Habitat (Istambul, 1996). Basta lembrar estas para ver a preocupação mais social, mas sempre sobre o mantra do desenvolvimento, sem pô-lo em questão enquanto tal. As conferências da ONU não são criações da época, mas ganharam intensidade e destaque provocando maior atenção e participação de organizações da sociedade civil, com organização de eventos paralelos à conferência oficial, buscando influir nos acordos oficiais.

É dos intensos anos 1990 – para nós, latinoamericanos, de redemocratização e esperanças – que surgem outras medidas de desenvolvimento além do PIB. A ONU adota o IDH – Índice de Desenvolvimento Humano, criado com participação de Amartya Sen. Sua publicação anual pelo PNUD começa em 1993. Sem dúvida, mais amplo por inclui expectativa de vida (indicador de saúde), tempo médio de estudo (educação) e valor médio de renda (PIB). A gente não precisa ter muita imaginação para ver como o PIB determina os outros dois em sociedades capitalistas. É um olhar mais amplo, sem dúvida, mas não questionador do satus quo dominante.

Foram décadas de mais análises (muito importantes, até) e debates em termos de busca de alternativas de desenvolvimento. Foi uma época de profusão de publicações, conferências, encontros. Destaco, pelo seu significado, o Dicionário do Desenvolvimento, gestado no processo da Conferência do Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro, em 1992[2]. Foi fundamental, também, um pequeno relatório publicado ainda em 1972 pelo Clube de Roma demonstrando,  pela primeira vez, a insustentabilidade do crescimento. O impacto da publicação foi enorme, pois com ela se pôs em questão, talvez pela primeira vez, o desenvolvimento baseado no crescimento, recebendo muitas críticas, especialmente de economistas.[3]

De toda forma, no enfrentamento da globalização capitalista neoliberal, as contribuições como as da ONU podem ser vistas como uma espécie de busca de um caminho intermediário, de garantir que a humanidade e todas as formas de vida não sejam inviabilizados pelo capitalismo. Uma mitigação dos seus efeitos mais perversos. A consciência da crise climática ganhou relevo. Não chega ser uma visão integrada da destruição ecossocial em curso e de busca de transformações inadiáveis. São acordos, mais acordos...  e tudo continua mais ou menos como antes. Talvez isto adie o desastre provocado pelo desenvolvimento do capitalismo e sua acumulação, pois algo acontece em termos de transição energética, por exemplo. O problema é que estamos diante da necessidade de mudar tudo, economia, poder e estilos de vida para ficarmos nos limites planetários e sermos justos com toda a humanidade e todas as formas de vida, de que dependemos.

Este caminho intermediário não passa de um sinalizador de perigos imediatos e boas intenções diante deles. Com as Conferências da ONU surgiram as COPs, como as do Clima e da Biodiversidade, realizadas com regularidade. A ONU, ainda em 2000, adotou a Declaração dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Depois, em 2015, os ODS – Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. São sinalizações de tipo consensual... sobre como praticar um desenvolvimento sustentável e bom – mais explícito seria declarar “crescimento capitalista” verde e humano, se isto fosse possível, pois não foi, não é e nunca será.

Termino destacando a contribuição de tais propostas para a requalificação do próprio debate de “alternativas de desenvolvimento”. Começou naqueles tumultuados anos o debate muito mais promissor sobre alternativas ao desenvolvimento enquanto tal. Isto redundou na busca de mudanças de paradigmas transformadores mais complexos, debate que ocupa certa centralidade até os dias de hoje, no bojo do qual foram postas em evidência propostas como as de “bem viver” de inspiração dos indígenas latinoamericanos. Tal tema deixo para uma próxima postagem, com a declarada intencionalidade de abandonar de vez a caixinha do desenvolvimento como perspectiva. Mas, no imediato, temos o risco de algo muito pior: as direitas e sua opção fascista de um mundo para poucos, os ‘bons’, com exclusões das maiorias indesejáveis. Uma opção pelo desenvolvimento capitalismo autoritário, sem vergonha de pregá-lo abertamente.

 

 

[1] Foi nos tumultuados anos 80 da década passada que tudo isto ganhou  força e deu origem a muitas redes mundiais de ativismo de sociedades civis, para além do sindicalismo que existe há muito tempo. O “direito humano ao desenvolvimento” foi aprovado na Assembleia da ONU de 1986.

[2] A versão publicada no Brasil, em português, é de 2000. Ver Wolfgang Sachs. Dicionário do Desenvolvimento: guia para o conhecimento como poder. Petrópolis: Vozes, 2000

[3] Clube de Roma. Os Limites do Crescimento. 1972. O relatório foi produzido,  sob encomenda, pelo MIT, de Boston, pela equipe liderada por Dona Meadows.

 

fonte: https://sentidoserumos.blogspot.com/


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