Ponciá Vicêncio desbravou mercado editorial restrito pelo racismo, e tocou em profundidade as dores herdadas da escravidão. “Nem eu estava pronta para Ponciá”, revela a autora, que diz ter aprendido a amá-la com suas leitoras e leitores

Por Eliana Alves Cruz para o Suplemento Pernambuco | Imagem: Laura Morgado sobre fotos de Alfred Stieglitz (Wikimedia Commons) e de Marc Ferrez (Acervo Instituto Moreira Salles)

Lá fora, no céu cor de íris, um enorme angorá multicolorido se diluía lentamente, enquanto Ponciá Vicêncio, elo e herança de uma memória reencontrada pelos seus, não haveria de se perder jamais, se guardaria nas águas dos rios.
Conceição Evaristo, Ponciá Vicêncio

O romance Ponciá Vicêncio está completando duas décadas neste ano de 2023. São vinte anos em que a saga da personagem que dá nome ao livro e de sua família está nas prateleiras das livrarias como destaque, a princípio pela editora mineira Mazza e depois pela carioca Pallas, junto com sua autora e hoje estrela da literatura nacional, Conceição Evaristo.

Na cultura popular, vinte anos de casamento são bodas de porcelana e não há imagem mais perfeita para falar destes anos em que o primeiro romance publicado de Conceição atou laços com o mercado editorial. A princípio, núpcias bancadas com recursos próprios da autora e incentivadas pela professora Maria José Somelarte Barbosa. A porcelana, esta matéria delicada, requintada e bela, porém exigente do cuidado de quem sabe do seu valor para tocá-la, pois do contrário há o risco de que se danifique irremediavelmente.

Ponciá Vicêncio, seu clã, seu universo, as relações de opressão e de exclusão óbvias, mas, principalmente, as sutilezas e subjetividades que a prosa poética de Conceição Evaristo traz, falam da musculatura robusta da estória e da força típica das obras que se tornam clássicas, posto que tocam pontos que calam fundo na complexidade humana.

As relações de opressão estão em aspectos essenciais da sociedade na qual o romance está assentado, que ainda é atravessada por noções pouco sólidas de democracia, diversidade e liberdade (seja ela física ou de expressão). Um mundo que de 2003 a 2023 ainda não conseguiu construir unanimidade sobre os malefícios da escravização e da colonização, em especial num país que reluta em admitir que “sangue e garapa podiam ser um líquido só”. O Brasil dos Vicêncios estava muito próximo do pós-abolição, mas o espanto é que aqui, no século XXI e na distância de 2003 ou de 2023 ainda não estejamos muito longe dele.

Há muito o que dizer sobre o livro em si, mas também sobre sua criação e o processo que ele detonou, pois a autoria literária, a academia, o público leitor e o próprio país sofreram transformações significativas desde a estreia de Conceição Evaristo em seu livro solo. Uma trajetória que exemplifica o Brasil que caminha, mas permanece com pés fincados em alguns passados cuidadosamente cultivados, feitos de concreto e não de porcelana.

Não fosse desta maneira, esta não seria uma nação em que as estatísticas descortinam desigualdades abissais e contradições, avanços e retrocessos que caminham em paralelas, mas vez por outra desviam para encruzilhadas. Um lugar onde o fluxo da memória vai e vem não pelos motivos estéticos que norteiam a escolha narrativa de Conceição ao contar a saga da vida de Ponciá em flashbacks, mas por conveniências de manutenção de privilégios, conformidades políticas e históricas.

“Quando o trem foi diminuindo a marcha e parou na plataforma, Ponciá Vicêncio apertou contra o peito a pequena trouxa que carregara no colo durante a viagem inteira. […] Não divisou um rosto conhecido, experimentou um profundo pesar, embora soubesse de antemão que não havia ninguém esperando por ela.”

Ponciá desembarcou na estação da cidade grande vinda do interior ainda tão escravocrata, nas páginas de um romance ido às prateleiras no mesmo ano em que pela primeira vez as universidades públicas – a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade Estadual da Bahia (UNEB) – adotavam cotas para estudantes negros e negras.

Este marco histórico ajudou a fazer da trajetória sofrida da moça negra e acanhada do interior uma jornada impressionante, que deu à Editora Pallas, até o momento da escrita deste texto, a venda de 121.928 exemplares. São mais de 6 mil livros vendidos por ano de publicação.

Os números de vendagem são altos para os padrões brasileiros ainda hoje, quanto mais no início da primeira década do século XXI, com todas as resistências que o mercado e a crítica à época ainda nutriam por autoras como Conceição Evaristo, fruto do Movimento Negro Unificado e do ativismo literário encabeçado pela coletânea Cadernos Negros, do Quilombhoje. Movimentos que buscaram driblar a sensação sentida por Ponciá enquanto apertava a trouxa contra o peito no vagão do trem: a solidão e a invisibilidade.

As cotas não mudariam apenas a cara da universidade brasileira, antes quase que unicamente branca, mas também o foco de seus conteúdos. A massa de jovens que finalmente conseguia galgar o degrau das instituições de Ensino Superior, não se contentou em se sentar passivamente em seus bancos e ocupar suas salas. Estes novos integrantes demandaram da academia, sobretudo, conteúdo que contemplasse com profundidade os saberes produzidos por pessoas negras. Um embate travado em um dia a dia quase sempre tenso e, em grande medida adoecido, para estudantes que precisaram “dar o nó no pingo d’água” para resistir à evasão.

Estes tensionamentos (e questionamentos) seguem contemporâneos no ambiente acadêmico. No entanto, observa-se um momento mais avançado nos debates, e isso se deve não unicamente, mas também ao fato de Ponciá ter chegado trazendo com ela outras personagens da própria Conceição Evaristo e de escritoras e escritores que hoje povoam um universo menos unilateral, ainda que falte uma estrada grande para uma real representatividade nas referências nas diversas áreas do conhecimento.

Não é nada sobre nós. É tudo sobre nós

O conceito de escrevivência foi cunhado por Conceição Evaristo em 1995, ou seja, quase uma década antes da publicação de seu primeiro romance. Não era recente sua fala e, menos ainda, a sua convicção sobre uma escrita nascida de sua própria vida ou de outras que ela observa em seus cotidianos silenciosos, silenciados e invisibilizados.

Na introdução da edição de 2017 de Ponciá Vicêncio, Conceição revela que precisou ser conquistada pela personagem que tanto causa emoção em grande parte das leitoras e leitores. Nem sempre ela gostou de Ponciá, mas foi capturada pela menina-mulher que tinha medo do arco-íris quando, relendo o que havia escrito, reviveu o penoso caminho que percorreu para criá-lo e o tanto de lágrimas suas que estavam no rosto de Ponciá, apesar de suas estórias de vida diferenciadas.

A longa jornada da criadora do clã dos Vicêncios em movimentos sociais forjou a ideia de uma experiência coletiva que está toda inclusa nas individualidades. A escrevivência de Conceição lançou bases para que trajetórias pouco vistas começassem a sair dos cantos a elas impostos arbitrariamente e embarcaram com Ponciá no trem rumo a outras paisagens, uma multidão ansiosa por protagonizar a própria história. Passou a ser urgente a fabulação de vidas que estiveram fora da prioridade da considerada elite intelectual, no entanto, não apenas isto.

Apesar de Carolina Maria de Jesus ser a escritora que mais vendeu livros na história do país, ela havia falecido há 26 anos e não estava no “radar” das novas gerações como finalmente voltou a figurar nos 20 anos que se seguiram. Era chegada a hora de mexer no marasmo das autorias, trazendo com mais força para a cena literária, holofotes midiáticos, premiações e referências acadêmicas aqueles e aquelas que sempre estiveram produzindo literatura, mas, assim como os personagens negros, negras e indígenas fictícios, costumavam caminhar na margem do mundo da imaginação em letras e do chamado “idioma culto”. Um setor submerso por completo na mesma lógica que norteava o restante da sociedade: a da branquitude como paradigma e validação.

Ainda na introdução do livro, a própria Conceição resumiu os percalços da caminhada observando que a autoria feminina é uma afirmação diante da massiva presença de escritores homens, mas sublinhando o sentido político redobrado na escrita de mulheres negras, que além dos desafios para escrever ainda enfrentam obstáculos inúmeros para chegar à publicação, pois estas barreiras não estão apenas no fato de serem desconhecidas ou inéditas. Não estão apenas na questão de gênero, pois, para além destes fatores, há o pertencimento étnico e social.

“A vida era um tempo misturado do antes-a-gora-depois-e-do-depois-ainda. A vida era a mistura de todos e de tudo. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser.”

A professora, dramaturga e ensaísta Leda Maria Martins, na obra Performances do tempo espiralar, fala sobre outra lógica de observação da passagem das horas. Um tempo que não caminha em linha reta, mas que vai e volta tendo a ancestralidade como referência e o corpo como inscrição.

Esta memória que avança e retrocede é a forma como a estória de Ponciá é contada. Uma linha sinuosa como a imagem da cobra que perpassa todo o texto e que tem no arco-íris um de seus símbolos mais fortes. Um tempo que aparenta estar estagnado em passagens relatando o cotidiano moroso e repetitivo dos Vicêncios e que é extremamente violento em sua imobilidade.

O universo, por assim dizer, “vicenciano”, traz corpos negros imersos em passado dilacerante em um grau tão alto, que se materializa na perda da sanidade do avô, que mata a esposa, se mutila e tenta matar os filhos para que não sejam escravizados; na terra que pouco lhes dá, mas que tudo lhes retira; e no alheamento da protagonista que gera outras e mais outras brutalidades sutis e explícitas.

Ponciá Vicêncio inaugura uma marca muito poderosa de sua autora, que é a descrição de existências marcadas de forma indelével pela dor extrema, mas de maneira que não torna a exposição dessas mazelas um recurso apelativo nem estimula uma espécie de fetiche por estas fraturas expostas. O lirismo como recurso e aliado.

O livro é um passeio na prosa poética capaz de fazer quem lê vestir a “roupa” de Ponciá no trem que a leva para a cidade e traz de volta para o interior, no barraco que divide com o companheiro ou na cidade fria e impossibilitada de enxergá-la em sua humanidade.

Esta honestidade em contar a vida da menina que tinha medo de passar embaixo do arco-íris, mas que vai esvaziando-se de inocência face à realidade pesada, se revela em passagens doloridas ao extremo, porém cheias de uma linguagem que não recorre ao lugar-comum. O idioma criteriosamente trabalhado em cada elemento, cada palavra para dar não apenas à personagem principal, mas também ao seu companheiro, sua mãe, avô, irmão, pai etc. as camadas que constituem todo e qualquer ser humano. Assim como Ponciá e sua mãe moldam o barro, a autora molda o texto.

O capricho de Conceição Evaristo com o uso da língua remete a outra escritora de referência: Carolina Maria de Jesus. Salta aos olhos na leitura de Quarto de despejo o amor da autora pelas palavras, apesar das marcas advindas de sua pouca escolaridade, para falar de uma realidade que conhecia muitíssimo bem. Conceição, ao contrário, é professora doutora, mas, assim como Carolina, escolhe criteriosamente os vocábulos para dar as cores exatas (nem mais e nem menos) às suas escrevivências, pois, para além de histórias próprias, elas significam uma experiência ampla de estar no mundo.

“Bom mesmo que os filhos [de Ponciá] tivessem nascido mortos, pois assim se livraram de viver uma mesma vida. De que valera o padecimento de todos aqueles que ficaram para trás? De que adiantara a coragem de muitos em escolher a fuga, de viverem o ideal quilombola? De que valera o desespero de Vô Vicêncio? […] A vida escrava continuava até os dias de hoje. Sim, ela era escrava também. Escrava de uma condição de vida que se repetia. Escrava do desespero, da falta de esperança, da impossibilidade de travar novas batalhas, de organizar novos quilombos, de inventar outra e nova vida.”

Ao longo de 20 anos de leituras, resenhas e análises, o romance tem registros diversos de impressões. No entanto, não é raro ver que ele causa certo incômodo e desassossego. A própria Conceição Evaristo, como já comentado, relata que nem sempre gostou de Ponciá, que ela não foi “amor à primeira vista”. A autora adicionou uma dose a mais de beleza à história do livro ao revelar que Ponciá chegou verdadeiramente ao seu coração conduzida pelo amor que despertava em quem a lia. Uma relação que foi se aprofundando e se descortinando com a ajuda das opiniões soberanas de críticos, críticas, leitores e leitoras. Olhos treinados ou não, preparados ou não. No entanto… qual é mesmo o desconforto que os Vicêncios despertam?

Na verdade, ao que parece, ninguém estava, em 2003, preparado para Ponciá. Talvez nem mesmo sua criadora. Ninguém estava prevenido para a sensação de ciclos inquebrantáveis que ela desperta porque, nestes tempos contemporâneos, estamos soterrados por narrativas midiáticas que empurram todos e todas para o discurso motivacional, de superação, meritocrático, falsamente esperançoso e fomentador de expectativas que jamais serão alcançadas sem que oportunidades sejam criadas.

A areia movediça em que Ponciá se vê presa é em larga medida ligada à nossa, ainda que não estejamos nesta mesma realidade social tão precária. Falando especificamente de pessoas negras no Brasil, se não somos nós caminhando com os pés de Ponciá, foi alguém em nossas vidas ou em nosso passado recentíssimo. Encarar esta face nas páginas poucas, porém densas, do livro requer uma energia extra, e é esta sucção que nos causa um “mal-estar”, um “não sei o quê” que testemunha a densidade desta História assim mesmo, com “h” maiúsculo.


Heranças

“O que há num nome?”, perguntou William Shakespeare. Caso Ponciá não fosse uma Vicêncio, seria ela o quê? Qual o passado que seu sobrenome contaria? A quem ela remeteria se carregasse desde o nascimento uma marca de real pertencimento? Sua personalidade, seus sentimentos, seu destino, enfim… seria ela outra?

A partir daqui a autora deste texto assume a primeira pessoa do singular. O pronome “eu” sai de seu esconderijo do discurso indireto porque é sobre nome e sobrenome a discussão mais forte do livro Ponciá Vicêncio. A herança mais pesada que a família negra carrega.

Muita reflexão fiz após este trecho:“Ponciá Vicêncio sabia que o sobrenome dela tinha vindo desde antes do avô de seu avô, o homem que ela havia copiado de sua memória para o barro e que a mãe não gostava de encarar. O pai, a mãe, todos continuavam Vicêncio. Na assinatura dela, a reminiscência do poderio do senhor, de um tal coronel Vicêncio. O tempo passou deixando a marca daqueles que se fizeram donos das terras e dos homens”.

A consciência de que nossos sobrenomes carregavam a contradição de falarem muito sobre nós e ao mesmo tempo pouco dizerem, me levaram a uma busca frenética por este nome negado. Uma experiência que culminou no livro que ficcionaliza a minha própria história familiar, Água de barrela, e que nasceu do mesmo incômodo e vontade da protagonista de Conceição.

Toda a trajetória de Ponciá é, ao fim e ao cabo, uma busca visceral pelas rédeas da própria vida. Uma viagem à sua essência pelo entendimento de sua história para encontrar-se. É neste ponto que eu e ela nos reconhecemos e nos damos às mãos. Nesta encruzilhada dura e difícil das que descendem da retirada de humanidade pela supressão do direito ao próprio nome.

Ponciá se atira voluntariamente no mundo desconhecido embarcada em um trem, carregando apenas o próprio corpo, a fome e suas angústias. Mesma bagagem dos escravizados que originaram os Vicêncios negros e que deram riqueza aos Vicêncios brancos. No sobrenome grita um personagem importante, que aparece apenas por menções, mas que permeia todo o romance. Um personagem definidor daquelas vidas e também das nossas, pois atrás do sobrenome Vicêncio está o colonizador e escravizador. No campo, um coronel; na cidade, uma rede desenhada para oprimir.

A força da metáfora do sobrenome no livro carrega consigo a marca da dominação por várias gerações. A retirada do nome é apagamento da ancestralidade familiar e também marca de posse, como se as vidas fossem bens como terra, sobrado, gado. O clima de liberdade ilusória causado pela assinatura da Lei Áurea não livrou os braços daquela família das enxadas da lavoura do coronel Vicêncio e do “favor” de estarem residindo em seu território.

Ponciá e seu irmão Luandi chegam à cidade “fugidos” de uma permanência quase que literal no sistema escravocrata. Eles estão em busca da liberdade real, mas dão de cara com um sistema inteiro que substitui o coronel na tarefa de mantê-los subalternos e sub-humanos.

Os sete abortos, o casamento infeliz, a miséria, a violência doméstica. Tudo na vida de Ponciá apontava para a desesperança mais profunda, como na passagem em que o narrador diz: “Ponciá havia tecido uma rede de sonhos e agora via um por um dos fios dessa rede destecer e tudo se tornar um grande buraco, um grande vazio”.

Luandi quer ser soldado acreditando que alcançará a tão sonhada liberdade – e com ela a autoridade, respeitabilidade, cidadania e humanidade – quando obtiver a “voz de mando”. Ele se vê diante de outra ilusão, pois quando finalmente consegue o que quer, se vê submisso a outras “vozes de mando” mais altas e poderosas.

A personagem Bilisa, namorada de Luandi, personifica toda a hipersexualização de mulheres negras – quando ela, também vinda do interior à procura de vida melhor para si e sua família, se vê no trabalho doméstico e no lugar de objeto sexual do filho do patrão e depois prostituta que tem quase todo o dinheiro retido pela cafetina e o segurança.

As frustrações inúmeras enfileiradas pelos personagens de Ponciá Vicêncio vão criando uma atmosfera sufocante de beco sem saída, de impossibilidade de mudança. Este ar rarefeito me levou do incômodo ao espanto, das lágrimas à ternura e do estranhamento à identificação com Ponciá.

Conceição criou há duas décadas um romance sobre o qual não se fica indiferente e, principalmente, uma história sofisticada que metaforiza coisas grandes e profundas da sociedade brasileira. O sucesso do livro reside nisto tudo, mas também no fato de que suas páginas não se conformam em denunciar o indefensável. Elas apontam caminhos.

“Pouco a pouco, mais e mais, Ponciá se adentrava num mundo só dela onde o outro, cá de fora, por mais que gostasse dela, encontrava uma intransponível porta.”

Primeiro Ponciá se refugiou dentro de si. Quando ergueu um muro que não deixava que vissem o que ia dentro dela, a personagem nos disse que há uma vida interior que não precisa (e, em determinadas circunstâncias não pode) ser vista por ninguém. O seu mundo particular é suficientemente atribulado e “povoado”. Este recurso, o de mergulhar em nós mesmas, é conhecido expediente de sobrevivência de mulheres negras por séculos. É preciso criar uma couraça para lidar com tanto peso e hostilidade. Este alheamento conduz a uma solidão mais funda do que o fato de estar só. É uma solidão que se dá mesmo em meio a muitas companhias. A saída apontada para este isolamento autoimposto, conscientemente ou não, é mais um apontamento brilhante na criação de Conceição: o retorno ao começo.

O arco-íris do qual a menina Ponciá tinha tanto medo, pois poderia transformá-la em menino, e o barro, matéria-prima manipulada pela família e por ela própria, são das imagens mais bonitas usadas na obra, pois são o elo com a ancestralidade e o pertencimento de grupo.

A imagem do arco-íris que abre o livro remete imediatamente a Oxumarê, orixá importante em religiões de origem iorubá, ou ao inquice Angorô da cultura banto. Entre os muitos significados desta entidade, uma é o de retorno, de ciclos que voltam ao ponto de partida. O Oxumarê nos leva aos círculos de vida e aos da escolha narrativa do livro Ponciá Vicêncio. É o tempo, a serpente que devora a própria cauda, a memória. Oxumarê é, na mitologia, filho de Nanã, a dona da lama que existe no fundo dos lagos, a matéria-prima tão cara à família Vicêncio.

Ponciá renasce muitas vezes ao longo da história em um movimento que leva à representação de Oxumarê presente no início e no fim da sua trajetória. Assim como se reconstrói como quem molda a lama. No final, ela fecha o ciclo se unindo ao barro e ao arco-íris. O cumprimento da herança de Ponciá aponta que é fincando raízes que conseguimos voar.

Quando está na favela, saudosa da terra, ela toma a decisão de retornar à sua cidade natal, e quando reencontra a família na estação de trem, se reencontra consigo e acha a paz que a sua aflita solidão ensimesmada não lhe permitia sentir, afinal, “Ponciá precisava apenas de viver os seus mistérios, cumprir o seu destino”.


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