CRIOLA.ORG.BR - 18/07/2023

autoras:

Élida LaurisDoutora em Pós-colonialismos e Cidadania Global pela Universidade de Coimbra. Consultora Independente de Direitos Humanos. Integrante do Comitê Técnico do Projeto Aliança Negra, desenvolvido por CRIOLA

Malu StanchiMestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Especialista em Políticas Públicas e Justiça de Gênero pela CLACSO/FLACSO. Consultora Independente de Direitos Humanos. Integrante do Comitê Técnico do Projeto Aliança Negra, desenvolvido por CRIOLA

Amanda PimentelDoutoranda em Direito e Desenvolvimento pela FGV-SP. Assistente de Coordenação da CRIOLA e Integrante do Comitê Técnico do Projeto Aliança Negra, desenvolvido por CRIOLA

Denúncia de crime no mercado de trabalho tem desfecho insatisfatório 25 anos depois

O Estado brasileiro não assumiu ter violado o direito a uma Justiça sem racismo para Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira, mulheres negras vítimas de discriminação no ambiente de trabalho.

No lugar disso, a Advocacia Geral da União reconheceu, em nota, apenas ter ultrapassado um tempo de duração razoável do processo, sem reconhecer o papel do Estado na perpetuação da violência. O posicionamento foi apresentado durante audiência pública realizada nos dias 28 e 29 de junho, na Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Nesse contexto, é preciso que se diga o óbvio: não foi demora, foi racismo!

Em 1998, Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira apresentaram denúncia contra o crime de racismo. Elas foram excluídas do processo seletivo da empresa Nipomed, que trabalha com planos de saúde, para o cargo de pesquisadora sob a alegação de que não havia mais vagas, sem sequer poderem entregar seus currículos.

Posteriormente, uma amiga das vítimas, mulher branca, foi admitida e contratada pelo mesmo funcionário. O caso é marcado duplamente pelo racismo: no acesso ao mercado de trabalho e ao sistema de Justiça. Ao longo de 25 anos, as vítimas não receberam uma resposta judicial satisfatória, nem do ponto de vista da adequada aplicação da lei, nem do ponto de vista da reparação aos danos que sofreram.

Apesar de todos os esforços de Neusa e Gisele para obter justiça, bem como de Geledés, organização que representa as vítimas no caso, não houve, por parte das autoridades, a diligência necessária para investigar o ocorrido.

Nada foi feito para averiguar se a empresa reproduzia enviesamento racial e de gênero, práticas, comportamentos e atitudes racistas nos seus procedimentos internos e na rotina de trabalho. As autoridades policiais colocaram em suspeita a qualificação profissional de uma das vítimas e, na delegacia especializada, extinguiram o inquérito quando a segunda vítima arrumou novo emprego.

Houve uma demora injustificável de quase sete anos entre a apelação e a sentença do tribunal de segundo grau. Ainda, a autoridade judicial descumpriu o instituto da imprescritibilidade do crime de racismo, previsto na Constituição Federal.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo reconheceu a ocorrência do crime de racismo, mas inviabilizou-o, determinando inconstitucionalmente a prescrição da ação penal. A falha só foi corrigida depois das vítimas apontarem o erro. Como se não bastasse, o acusado foi, ao final, absolvido por meio de um pedido de revisão criminal.

A sentença de revisão criminal violou a mobilização excepcional deste recurso, que não pode ser utilizado para reexaminar as provas dos autos, o que ocorreu na decisão que gerou a absolvição do acusado.

Esse caso é exemplar da forma como os casos de racismo são tratados no Brasil. Mesmo nas poucas situações em que há condenação, as falhas e a omissão do sistema favorecem o agente racista diante da falta de devida diligência por parte das autoridades responsáveis.

Conforme Neusa e Gisele declararam, o racismo institucional minou a confiança no Poder Judiciário, acarretando-lhes danos materiais e psicológicos e interrompendo a realização de seus projetos de vida.

Ambas enfrentaram dificuldades de se recolocar no mercado de trabalho na função para qual tinham qualificação profissional e passaram a reviver repetidamente o trauma de que sua cor de pele e aparência pudessem bloquear suas oportunidades profissionais.

Os erros cometidos, a falta de resposta rápida e eficaz, e o descaso são elementos que amplificaram nas vítimas o sentimento de desamparo e desproteção que o racismo projeta sobre mulheres negras no Brasil.

Na audiência, o Estado brasileiro perdeu a oportunidade de assumir sua responsabilidade na (re)produção do racismo. Optou por listar leis e políticas públicas de combate ao racismo, sem apontar seus limites em face da realidade inalterada dos indicadores sociais sobre a população negra.

A existência de leis e políticas é importante, lutamos muito por elas, mas a cumplicidade do Estado com o racismo institucional não ajuda a efetivá-las. Ajuda menos ainda quando se mascara o racismo reconhecendo apenas a violação à razoável duração do processo.

O Estado brasileiro considera que foi capaz de dar uma solução adequada à demanda de Neusa e Gisele, tendo falhado apenas porque a resolução demorou a ocorrer. A Justiça brasileira já equiparou o racismo à uma piada ou mal-entendido, mas reduzir o racismo à demora é a primeira vez que vimos acontecer.

Sem reconhecer o racismo praticado por diferentes atores, nas diferentes fases do processo judicial, não é possível alcançar justiça para a vida das mulheres negras.

Espera-se que a Corte Interamericana de Direitos Humanos profira uma decisão que condene as falhas históricas do Estado brasileiro no enfrentamento ao racismo, ajudando-nos a dar passos mais consistentes no enfrentamento à violência racial e de gênero.

Artigo publicado originalmente na coluna do PerifaConnection no site da Folha de S.Paulo, em 13/07/2023.

Crédito ilustração do destaque: Linoca Souza – Linoca Souza- 26.mar.21/Folhapress

fonte: https://criola.org.br/artigo-sem-reconhecer-racismo-justica-nao-garante-direitos-humanos-de-mulheres-negras/