Quase lá: Fé, política e divisão de recursos desafiam o modelo de saúde mental no Brasil

Comunidades terapêuticas rivalizam com a Rede de Atenção Psicossocial do SUS o atendimento de pessoas com uso abusivo de álcool e drogas.

 
Por
Luciano Velleda
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A disputa em torno do modelo de tratamento para pessoas que fazem uso abusivo de álcool e drogas – e dos recursos públicos investidos – vai além dos aspectos estritamente ligados ao campo da saúde. Complexo por si só, o tema se mistura ao emaranhado de tensões políticas e sociais que marcam o Brasil nos últimos anos. Religião e bancadas parlamentares, racismo e práticas higienistas, são alguns dos ingredientes que borbulham no fervente caldeirão do debate em torno das políticas públicas de saúde mental no País.

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Presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Rosana Onocko analisa a questão sob dois aspectos. O primeiro, chama de “sócio-políticos e de subjetivação”, ou seja, a ideia criada na população, sobretudo de renda mais baixa, de que as igrejas neopentecostais de fato resolvem algum problema.

“Há uma legitimação perante uma parte da população que a gente precisa desconstruir, mas não basta gritar que ‘não serve’ entre nós, da mesma bolha da luta antimanicomial. Temos que ser capazes de comunicar isso, no sentido mais amplo, para a sociedade como um todo”, acredita.

Até agora, Rosana diz que os atores da luta antimanicomial têm sido incapazes de fazer a disputa, sem conseguir se contrapor, nem sequer se equiparar, ao trabalho sistemático e planejado das igrejas que defendem os métodos das comunidades terapêuticas – baseados na abstinência e em internações longas, que podem chegar a nove meses.

O segundo aspecto trata do reconhecimento de que as Redes de Atenção Psicossocial (RAPS) foram sucateadas e enfraquecidas. “É um cenário de horror. Por um lado, no imaginário coletivo, se vende que as comunidades terapêuticas são a solução. Por outro lado, quando as pessoas buscam ajuda nas nossas Redes de Atenção Psicossocial, as redes estão fragilizadas, com uma articulação frágil na atenção primária, com uma falta de acolhimento muito grande do sofrimento que existe nas famílias das pessoas que têm o uso problemático de álcool e outras drogas”, afirma a presidente da Abrasco.

No diagnóstico de Rosana, o enfraquecimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) ocorre em todos os sentidos devido ao abandono proposital dos últimos anos. Sem cuidado, ela avalia, a tendência do serviço é a burocratização. O quadro foi agravado com a pandemia, com a crise sanitária levando à exaustão os trabalhadores da saúde.

Professor do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Tadeu de Paula Souza acrescenta mais um elemento no caldeirão da disputa. Ele avalia que as comunidades terapêuticas não podem ser vistas simplesmente como um estabelecimento, e sim como parte de um projeto político das forças conservadoras que visa, principalmente, os territórios vulneráveis. Para ele, as comunidades terapêuticas têm relação direta com a “política bélica” que assola os territórios pobres como a principal ação do Estado.

“Você tem uma lógica que é higienista. Tem o paradigma da abstinência, o paradigma que autoriza medidas autoritárias sobre a população em situação de rua, medidas de internação compulsória, porque trabalha dentro desse ideal higiênico”, analisa o professor da UFRGS. Ele vai além e pondera que, no limite, esse ideal é também racista, porque as drogas sempre foram associadas, no imaginário social, com o traficante negro.

Outro aspecto é a relação das comunidades terapêuticas com a religiosidade e, por extensão, com os territórios. Por esse ponto de vista, Souza diz que as igrejas passam a atuar como porta de entrada do sistema de saúde. “Vai gerando um processo cada vez mais intenso de capitalização da fé. Você começa a ter como porta de entrada, do que seria um sistema conservador de saúde, as próprias igrejas. Então as igrejas estão no território capitalizando a fé e, ainda por cima, sendo porta de entrada para as comunidades terapêuticas.”

Uma das consequências dessa relação, destaca o professor de Saúde Coletiva, é a associação das pessoas que têm problema com uso de drogas com valores morais, além da condenação ideológica de pessoas gays e trans. “As comunidades terapêuticas não são estabelecimentos isolados, elas fazem parte de um projeto de avanço das forças conservadoras sobre os territórios, criando propostas de tratamento numa perspectiva moral e religiosa. Isso é terrível e não pode haver recurso público para financiar isso”, afirma.

O professor de Saúde Coletiva da UFRGS ainda enfatiza as inspeções feitas em comunidades terapêuticas pelo Conselho Federal de Psicologia, em que foram detectadas práticas de tortura e de trabalho análogo à escravidão em alguns estabelecimentos.

Souza pondera ser comum ouvir um político favorável às comunidades terapêuticas dizer que elas não são um manicômio. De fato, ele explica, se comparado ao que era um manicômio no Brasil, com centenas de pacientes internados, às vezes até mil pessoas, o professor concorda que não são. O ponto nevrálgico, diz ele, é a “lógica manicomial” presente nas comunidades terapêuticas.

“Alguns dizem que existem comunidades em que a pessoa pode entrar e pode sair. Mas pra sair não é simples, a pessoa é assediada, não é uma coisa onde a pessoa diz que quer sair e abre a porta. Existe pressão pra pessoa ficar. E tem lugares em que a pessoa realmente não tem autonomia para dizer que vai sair. E existem sim comunidades terapêuticas em que a pessoa entra e sai quando ela quer, mas essa saída não é simples, a pessoa tá lá numa crise de abstinência…não é bem assim”, explica.   

O professor destaca que o SUS levou muitos anos para construir a lógica de atendimento territorial. No território, ele explica, é possível entrar em contato com o fenômeno do uso de álcool e drogas na sua multiplicidade.

“Quando você tá no ambiente asilar, você vai encontrar, normalmente, pessoas com uso agravado da droga. A comunidade terapêutica existe para fazer uma disputa de modelo de cuidado. Ela quer ser o centro do cuidado e a ideia é que o CAPS seja um assessor. E a gente precisa o contrário, a gente precisa que o CAPS seja ordenador do cuidado, porque ali você consegue ver os casos com mediação no próprio território, do equipamento 24 horas, você consegue acessar o equipamento de internação, mas como retaguarda, não como o centro do cuidado. E você não precisa usar a força para fazer isso. Na maioria das vezes, o próprio usuário vai pedir para ser internado. Quando você tem vínculo com uma pessoa em situação de rua e ela tá numa situação grave, ela mesma vai pedir para ser internada.”

Outro aspecto ponderado por Souza é o racial. Um dos membros da coordenação da Frente Nacional de Negros e Negras da Saúde Mental, ele avalia que há toda uma estrutura racista organizada por trás das internações compulsórias de pessoas em situação de rua, como recentemente denunciado em Porto Alegre. Afinal, enfatiza o professor, a maioria da população em situação de rua é negra.

“Os territórios periféricos onde o Estado age de maneira autoritária, com as famílias, com as mães, com quem faz uso de crack, são na sua grande maioria de pessoas negras. Ou seja, o que autoriza operar nesse modo autoritário é uma lógica colonial, é a nossa estrutura colonial que permanece operando. Porque você não vai ver esse aparato funcionando com famílias dependentes químicas nos condomínios de luxo de Porto Alegre, São Paulo, Rio ou onde for”, afirma. “Você pode ter uma mãe que tem problema com alcoolismo e vive num apartamento de luxo no Moinhos de Vento, esse aparato não chega nela. É um aparato de gestão da pobreza, mas é uma gestão racial da pobreza.”

Souza pontua que a lógica colonial, ou manicolonial, age também sobre as pessoas com religiosidade de matriz africana, frequentemente perseguidas no Brasil. Em meio as ameaças e perseguições, surgem as igrejas neopentecostais com a “promessa de salvação” do uso de drogas. “Tudo isso está nesse complexo racista que estrutura uma estratégia em torno das comunidades terapêuticas. As comunidades terapêuticas são um dispositivo de uma lógica manicolonial racista”, explica.

Presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Rosana Onocko alerta para a necessidade de se pensar também em outras questões do uso abusivo de álcool e drogas. Uma delas é o fato de muitas famílias serem lideradas por mulheres que criam os filhos sozinhas e enfrentam jovens que se tornam violentos devido ao uso de substâncias. Quando essas mulheres vão pedir ajuda, pondera Rosana, acabam não sendo acolhidas e compreendidas na totalidade do seu drama, que muitas vezes envolve até objetos da casa furtados para pagar o uso de crack.

“Não é banal. Tem uma romantização do uso (de droga) que é pouco feliz para a dimensão de sofrimento que o uso problemático tem trazido para as famílias da periferia. Então quando essa mulher se refugia na igreja, que prescreve que a ciência é a melhor coisa e que se ela quer produzir abstinência tem que trancar o marido, o filho ou o neto numa comunidade terapêutica, a gente julga ela moralmente, mas somos incapazes de oferecer outra saída. E eles conseguem acolher”, analisa Rosana.

A presidente da Abrasco diz que o movimento antimanicomial tem sido “pouco feliz” em equacionar essa questão. Além da mulher moradora da periferia que sofre com o problema das drogas, ela cita também o exemplo da pessoa em situação de rua e a ideia muitas vezes difundida de que viver nessa condição é uma escolha.

“A metade dos moradores de rua, se você der opção, não querem morar na rua. Nós temos um problema, como movimento. Tô fazendo uma crítica interna ao nosso movimento antimanicomial”, reconhece, acrescentando não ser mais suficiente manter o discurso da luta antimanicomial dos anos de 1980.

Outro ponto por ela destacado é a necessidade de cobrar os responsáveis pela não descriminalização do uso de algumas drogas e toda a relação disso com a violência policial, principalmente contra os jovens negros e periféricos, com a superlotação das cadeias e com o desrespeito aos direitos humanos das pessoas presas, muitas delas apenas por serem usuárias de drogas.

O Pastor Roque é um homem que há décadas atua no segmento das comunidades terapêuticas (CTs). Ele mesmo conta já ter sido paciente de uma para tratar problemas com o alcoolismo. Hoje, presidente da Federação das Comunidades Terapêuticas do Rio Grande do Sul (Fecters), pondera que os casos exitosos trazem a motivação necessária para continuar o trabalho. Todavia, reconhece, existem também as frustrações que não devem ser ignoradas. Ele se refere especificamente às decepções causadas pelo alto índice de recaídas. Tendo como base as CTs de nível médio para acima, o pastor diz que 30% das pessoas que concluem o programa terapêutico, normalmente previsto em nove meses, tem êxito na recuperação.

“É baixo, mas comparado às políticas tradicionais de tratamento que o Estado oferece, é um bom índice, mas a gente precisa melhorar”, defende. Roque sustenta que nenhum programa de governo baseado na política de redução de danos tem o mesmo índice de recuperação – que para ele significa parar de usar a substância.

O presidente da Federação das Comunidades Terapêuticas do RS explica que o tratamento de nove meses tem como pressupostos a visão integral do paciente, aliando “corpo, mente e espírito”. Assim, a espiritualidade está na origem e é parte do método das comunidades terapêuticas desde quando foram fundadas.

“A comunidade terapêutica tem um método consagrado cientificamente, dentro da visão holística que atende a espiritualidade. A visão holística trata o ser humano de forma integral, o corpo, alma, a psique e o espírito”, destaca. Oficinas de cozinha, cuidados com o pátio, animais e horta, trabalhos na padaria, entre outras atividades, também fazem parte do método.

Roque explica que, ao entrar numa comunidade terapêutica baseada na abstinência total do uso de drogas ilícitas e lícitas (como o cigarro), a pessoa é entrevistada e diz se aceita aquele método. Caso não concorde, o indivíduo é encaminhado para outra comunidade com perfil de acolhimento um pouco mais flexível, onde se permite, por exemplo, fumar cigarro – ainda que essas sejam minoria no segmento.

A disciplina, enfatiza o pastor, também é um componente do método terapêutico. Horário de alimentação, de banho, para dormir e acordar, e para as sessões de espiritualidade, estão na rotina dos pacientes. De acordo com Roque, as regras ajudam no tratamento.

“Ao entrar no programa, ela já está nesse regramento. Uma pessoa desregrada interna e externamente, ao entrar na comunidade passa a ter um regramento externo. Essas regras externas, a partir da convivência longa de nove meses, ajudam no regramento interno que ela tinha perdido”, defende.

Roque sustenta que a conquista desse regramento interno ajuda o indivíduo quando sair da comunidade e voltar para a convivência social. Pelos preceitos do método das comunidades terapêuticas, praticar os novos hábitos e se manter na abstinência representará então a cura e a recuperação do paciente.

O presidente da Federação das Comunidades Terapêuticas do Rio Grande do Sul (Fecters) avalia que as críticas dirigidas ao segmento partem de “grupos mais ideológicos” que se “fecham na bolha e não constroem soluções”. Ele defende que deve haver diálogo com quem está disposto a trabalhar para construir pontes e políticas públicas que alcancem o indivíduo que precisa de ajuda.

“É com essas pessoas que precisamos construir políticas que alcancem quem está na ponta e não ficar nessa fogueira de vaidades, defendendo nossos pontos de vista que não vão evoluir”, pondera. “Esses grupos ideológicos não conhecem o que é uma comunidade terapêutica. Comunidade terapêutica não é manicômio, não aceita cadeado, não tem porta trancada. O acolhimento é voluntário. A pessoa entra e sai a hora que quiser”, afirma.

O pastor ressalta que, se existe alguma organização que age assim, são então as ditas comunidades de “má fé”, segundo os quatro perfis definidos por ele – as de má fé; as bem intencionadas, mas simples; as medianas; e as de excelência.

“Existimos desde antes do SUS, já havia atendimento de dependentes químicos no Brasil e no Rio Grande do Sul. Uma vez que existe o histórico de serviços prestados, é mais que justo que os governos também reconheçam este serviço essencial, consagrado cientificamente com os melhores resultados na recuperação”, acredita o pastor.

Roque avalia que as críticas também são consequência da disputa econômica por recursos, considerando que as CTs têm obtido uma “fatia do bolo”. Fatia esta, diz ele, ainda tímida, em que pese o governo de Jair Bolsonaro ter aumentado a contratação de vagas de 2 mil para 16 mil leitos. “Num cenário de cento e tantas mil vagas ainda tá muito tímido”, enfatiza.

Para ele, a disputa por recursos públicos acaba por ressuscitar um debate que considera ultrapassado, como dizer que as comunidade terapêuticas são um “minicômio”. “Se não tem cadeado, se o acolhimento é voluntário, se tem um monte de legislação e um aparato de órgãos fiscalizadores por trás do segmento, então são argumentos ultrapassados”, pondera. E conclui: “Um camarada dentro de uma comunidade é um cara a menos para estar assaltando, depredando prédios, para estar com grupos de risco. Então existe um grande ganho em uma comunidade terapêutica atender essa população que usa substâncias químicas de forma abusiva e que vem de forma voluntária para se recuperar”, defende o presidente da Federação das Comunidades Terapêuticas do RS.

Tratamento nas CTs inclui trabalhos em horta, com animais, entre outros; críticos apontam violações de direitos. Foto: Andre Borges/Agência Brasília

O discurso do Pastor Roque de que há uma dívida do Estado brasileiro com as comunidades terapêuticas é uma ideia não bem aceita por Marcelo Kimati, psiquiatra, professor de Saúde Coletiva e assessor técnico do Departamento de Saúde Mental da Secretaria de Atenção Especializada à Saúde, do Ministério da Saúde.

“Não tenho nenhum tipo de estudo que confirme isso, muito pelo contrário. A grande expansão das comunidades terapêuticas se deu num momento posterior a expansão da Rede de Atenção Psicossocial, principalmente aquelas com financiamento público. Elas se expandiram na medida em que começou a expandir o financiamento público e não o contrário”, afirma.

Para Kimati, o discurso de que: “Nós sempre prestamos assistência às pessoas que têm problema de álcool e drogas e nunca fomos reconhecidos”, não tem amparo em evidências.

“Essa não é uma discussão que tem racionalidade no campo da saúde. Não é uma discussão de modelo assistencial, porque as comunidades não se sustentam dentro dessa lógica sanitária em nenhum nível. Elas não se sustentam do ponto de vista de inserção no sistema de saúde ou de inserção no sistema de assistência, e não se sustentam do ponto de vista de eficácia”, afirma.

Considerando que o Brasil tem milhões de pessoas com uso problemático de álcool e drogas e, como o programa das comunidades terapêuticas é de nove meses, Kimati avalia como “pífia” a capacidade desse modelo promover algum tipo de mudança no cenário epidemiológico do País. Afinal, se o governo financia 30 leitos, são apenas 30 pessoas no período de um ano, num cenário de milhões de pessoas.

“Do ponto de vista epidemiológico e estatístico, não existe um modelo a ser disputado. As comunidades terapêuticas não garantem cuidado universal, nem diminuição de vulnerabilidade e nem a integralidade do cuidado. Então elas não têm o menor sentido dentro do Sistema Único de Saúde”, analisa o assessor do Ministério da Saúde.

Psicóloga, psicanalista, ex-secretária Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul e integrante do Fórum Gaúcho de Saúde Mental, Sandra Fagundes diz que o maior investimento em saúde mental no Brasil chegou a 2,7% do orçamento do Ministério da Saúde. Em sua opinião, o ideal seria algo entre 5% e 10%, percentual semelhante ao dos países que mais investem na área.

Sandra defende que os estados precisam aumentar o financiamento em saúde mental na rede pública, já que os municípios, em geral, fazem a sua parte. Por outro lado, municípios, estados e o governo federal também financiam as comunidades terapêuticas por meio da compra de vagas.

No governo Bolsonaro, esse investimento aumentou muito. Em 2018, o governo federal financiou 2.900 vagas em comunidades terapêuticas. Ao final do segundo ano do mandato de Bolsonaro, em dezembro de 2021, essa quantidade tinha subido para 10.657 e, em 2022, fechou com quase 16 mil vagas. Em volume de dinheiro, no começo do governo Bolsonaro, os recursos repassados às comunidades terapêuticas eram, em média, de R$ 40 milhões por ano. Ao final de 2021, esse valor chegou a R$ 193,2 milhões.

Diante do cenário de aumento do investimento em comunidades terapêuticas feito no governo Bolsonaro, a ex-secretária estadual da Saúde do RS pondera que não é possível cortar esse recurso de uma hora para a outra. “Agora, com um conjunto de pessoas que já estão (nas comunidades terapêuticas), não têm como deixar de financiar repentinamente. Precisa criar uma política”, pondera.

Para que isso seja possível, ela argumenta, primeiro é preciso conhecer detalhes de todo o cenário. “Quantas têm? São quanta pessoas nesses lugares? Quais as alternativas que se vai dar? É preciso um processo de desinstitucionalização de quem está em comunidade terapêutica. Hoje têm bancadas religiosas que dominam as comunidades terapêuticas. Há a questão econômica, religiosa e política. Não é pouco.”

A questão do financiamento também é analisada pela psicóloga Marina Pombo, integrante do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul. Ela critica o que chama de “subinvestimento” na saúde mental por parte dos governos do Estado e municípios, com muitos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) sendo geridos com verbas públicas insuficientes para bem executar o atendimento.

“Tem toda uma perspectiva que está sendo contra a ideia de saúde coletiva quando a gente fala das comunidades terapêutica. A perspectiva da saúde coletiva é não culpabilizar o indivíduo, e sim olhar para o macro e entender que existe determinante de saúde. Porque para além do subfinanciamento e do estímulo das comunidades terapêuticas, a gente tem um sufoco material específico que é imposto para todo mundo”, pondera. “A gente aperta materialmente e psiquicamente as pessoas, e quer que elas tenham vidas super saudáveis para lidar com seu mal-estar. A luta antimanicomial também se costura com a guerra contra as drogas. A saúde coletiva, dentro da psicologia, tem a perspectiva de que esse sujeito também é um sujeito social e cultural. É muito complicado falar do uso problemático de drogas sem passar pela condição de vida das pessoas”, afirma.

No caso do RS, ela avalia que o conservadorismo dos gaúchos acentua o apoio às comunidades terapêuticas, apesar do estado ter sido um dos pioneiros na reforma psiquiátrica. Marina ainda destaca o aumento da população em situação de rua em Porto Alegre. Pessoas com dificuldades financeiras, sem moradia, que são “empurradas” para o uso de substâncias, muitas vezes como forma de aguentar o frio e sobreviver nas ruas da cidade. Ao mesmo tempo, ela critica a diminuição dos investimentos nos Consultórios de Rua e em agentes comunitários, serviços que representam o cuidado no território em que as pessoas estão. “O que vai sobrar para essas pessoas? Entrar em comunidade terapêutica”, conclui.

Sem alimentar falsas ilusões sobre o jogo político brasileiro, Rosana Onocko, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), se mostra preocupada com a governabilidade do governo Lula. As pressões dos partidos do centrão, expressa na figura do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), em recentes votações de interesse do governo lhe chamam a atenção. O contexto lhe faz questionar qual o melhor modo do movimento antimanicomial se relacionar com o governo federal.

“Até onde a gente pressiona este governo? Porque, se não pressionar, ele vai para a direita. E até onde a gente pressiona de um jeito que também não o fragilize? A gente precisa criticar, sem fragilizar. É bem difícil. E é muito difícil o que o governo Lula 3 vai enfrentar”, comenta.

Em que pese as dificuldades e contradições, Rosana já vê avanços, principalmente no Ministério da Saúde. Ela elogia a capacidade das pessoas que agora estão no comando da pasta, em comparação com a “destruição” deliberada promovida durante o governo Bolsonaro. De todo modo, equilibrar a governabilidade junto ao Congresso com a postura de “comprar algumas brigas”, é o grande desafio para o governo Lula, na visão da presidente da Abrasco.

“Esse é o ponto. Acho que o Lula decidiu não comprar essa briga com as igrejas evangélicas agora, mas algumas brigas têm que se compradas”, afirma.

Pragmática, Rosana diz que aguentaria a criação do Departamento de Apoio às Comunidades Terapêuticas, criado no Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, se em contrapartida houvesse uma proposta de esvaziamento dos presídios pelo Ministério da Justiça, soltando quem não deveria estar preso, quem não foi julgado e até mesmo quem já cumpriu pena e a ordem de soltura do juiz não chega. Afinal, diz ela, as comunidades terapêuticas já são “aguentadas” desde 2015.

“O que me deixa preocupada é não ver avanços onde deveria ter. Sou capaz de aguentar o arcabouço fiscal se a gente fizer a tarefa ambiental como tem que ser, se a gente demarcar terra indígena, se a gente tiver um plano pra desmilitarizar a polícia. Sou capaz de aguentar alguns ‘sapos’, faz parte da negociação política. O problema é quais ‘sapos’ vamos engolir e quais não vamos engolir”, afirma. E conclui: “Temos que ter sempre um olho no nosso campo específico, que é a saúde mental, o SUS, a política pública, e outro olho no horizonte sócio-político. Não tem como pensar uma coisa separada da outra.”

fonte: https://sul21.com.br/noticias/saude/2023/06/fe-politica-e-divisao-de-recursos-desafiam-o-modelo-de-saude-mental-no-brasil/

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