Diversidade projetada na posse de Lula deve nortear escolha para o STF, lembra Lívia Sant’Anna Vaz, lembrada como nome na disputa

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A alguns meses de Lula fazer mais uma indicação ao Supremo Tribunal Federal (STF), com a aposentadoria da ministra Rosa Weber, em outubro, os nomes cotados para a vaga mais uma vez são de homens brancos. O atual presidente foi o primeiro em quase cem anos a nomear um homem negro para o cargo, Joaquim Barbosa, em 2003 (antes dele, houve outros dois ministros negros, no começo do século XX), e agora há uma articulação para que Lula tenha também a primazia de nomear uma mulher negra, o que nunca ocorreu nem no STF nem em tribunal superior algum no país. Em entrevista à coluna, a promotora de Justiça Lívia Sant’Anna Vaz, que vem colecionando apoios para ser este nome, lembrou que o ato seria coerente com a imagem que Lula projetou em sua posse.

“Não é apenas sobre a primeira mulher negra a ocupar uma vaga como ministra no Supremo Tribunal Federal. É sobre a oportunidade que o presidente da República tem de ser o primeiro a quebrar esse paradigma. Esse compromisso se coloca em imagem na posse do presidente. É algo que nós precisamos ver nos tribunais. É como se, nesse momento da escolha do próximo, da próxima ministra, mandasse Lula esquecer aquela imagem e deixar aquele mais para trás. Nós não queremos esquecer essa imagem”, defendeu.

Baiana, de 43 anos, Sant’Anna Vaz está no Ministério Público da Bahia há 19 anos, onde se especializou nos temas feminicídio, intolerância religiosa, combate ao racismo e ao sexismo, e no acesso à Justiça e a espaços de poder e decisão por mulheres negras. Autora de “Cotas Raciais”, publicado em 2022, em que analisa o impacto no ensino superior e nos concursos públicos dos dez anos da legislação, e coautora de “A Justiça é uma mulher negra”.

A escolha de seu nome teria o condão de mudar uma realidade vergonhosa para o Brasil. Menos de 6% da magistratura brasileira são formados por mulheres negras, quando elas são a maioria da população nacional. Sant’Anna Vaz defendeu que existam cotas raciais e de gênero nos concursos para juízes e outras carreiras jurídicas, e explicou que isso melhoraria a oferta do serviço público à população.

Doutora pela Faculdade de direito da Universidade de Lisboa e mestra pela Universidade Federal da Bahia, a promotora criticou ainda a forma como os concursos públicos medem o mérito. Para ela, as provas de títulos deveriam contemplar também, por exemplo, trabalho voluntário e experiência em movimentos sociais.

Leia abaixo a entrevista ou assista em vídeo ao fim do texto.

Como você analisa a situação atual da composição racial do Judiciário brasileiro?
É gravíssima. Nós estamos há 135 anos da declaração da abolição da escravidão no Brasil, com a Lei Áurea, de 13 de maio de 1888. E nós ainda estamos falando sempre na “primeira pessoa negra” a assumir um cargo de poder. A primeira mulher negra… Eu digo que esse tipo de notícia me traz alegria por estarmos conseguindo, muito tardiamente, quebrar certas barreiras, mas nos traz vergonha também. É vergonhoso que a gente ainda esteja falando em primeira pessoa a ocupar esses lugares. Segundo dados do próprio CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que fez um estudo recente denominado “Negros e negras no Poder Judiciário”, que dá conta de que a magistratura brasileira possui apenas 12,8% de pessoas negras, quando pessoas negras representam 56% da população brasileira. Se eu trouxer um olhar interseccional, de mulheres negras, a situação é ainda pior. Nós, mulheres negras, não chegamos a 6% da magistratura brasileira. E isso não é diferente no resto do sistema de Justiça.

E 6% da magistratura brasileira é um número ainda pior quando se contrasta com o percentual das mulheres negras na pirâmide social, certo?
Perfeito, Perfeito. Nós, mulheres negras, somos o maior segmento social do Brasil. Vinte e oito por cento da população brasileira são formados por mulheres negras. Então, quando você fala em assumir uma vaga num tribunal superior no Brasil, é muito raro que uma mulher negra chegue a esse lugar. Então, quando você menciona o meu nome [para o STF], eu digo que nunca me enxerguei nesse lugar. É muito difícil para uma criança negra, para uma pessoa negra, uma mulher negra, se enxergar em algum lugar onde você não tem representado o país. Mas a representatividade importa, mas não basta. É preciso garantir. A presença negra não é de uma pessoa negra apenas para ali fazer figura, fazendo número. Nós precisamos de pessoas negras nesse espaço também, pessoas indígenas, pessoas com deficiência, LGBTQ. É preciso que a diversidade da população brasileira esteja espelhada nas instituições públicas e privadas.

Qual é a responsabilidade que Lula tem, considerando seu discurso e histórico de combate às desigualdades raciais, com a nomeação ao STF?
Eu penso o seguinte não é sobre Lívia, não é apenas sobre a primeira mulher negra a ocupar uma vaga como ministra no Supremo Tribunal Federal. É sobre a oportunidade que o presidente da República tem de ser o primeiro a quebrar esse paradigma. E Lula tem quebrado paradigmas ao longo de sua trajetória. Não apenas do atual governo dele, no qual ele, por exemplo, já sancionou a lei de enfrentamento ao racismo, já expediu um decreto para garantir 30% de vagas em cargos comissionados, mas por todo o histórico de progresso e de consolidação das cotas raciais nas ações afirmativas nos seus governos. Então, esse compromisso se coloca em imagem na posse do presidente, aquela imagem belíssima da diversidade brasileira, é algo que nós precisamos ver em todos os espaços e nos tribunais. É como se, nesse momento da escolha do próximo, da próxima ministra, mandasse Lula esquecer aquela imagem e deixar aquele mais para trás. Nós não queremos esquecer essa imagem. Os movimentos sociais não querem esquecer. A sociedade não quer esquecer. É sobre um compromisso e um esperançar nosso de realmente assim darmos essa democracia.

Explique por favor a importância para quem não tem o conhecimento de por que é importante.
Porque é importante que, para se ter julgamentos justos, haja o espelhamento dessa diversidade da formação da população brasileira. Nós partimos de nossas próprias vivências, de nossas perspectivas, cosmo percepções de mundo para avaliarmos a realidade. E isso também implica num sistema de Justiça que não consegue ter uma perspectiva de gênero, de raça. Quando vai efetuar seu julgamento, como vai aplicar a justiça? O perfil demográfico do CNJ de 2018 disse que o perfil da magistratura brasileira é de homens brancos, heterossexuais e cristãos. Temos visões parciais ou quase unilaterais do que seja justiça, liberdade, igualdade. Então, é preciso trazer essa diversidade para que essas perspectivas sejam observadas. Muitas vezes são pessoas que eu brinco dizendo que, do alto dos seus gabinetes, não enxergam e não conhecem a realidade do povo. Nós somos servidores públicos. Como você pode servir a um público que você não conhece?

E quando se analisa os tribunais superiores, esse número é ainda muito menor, esse número é zero. Não existe nenhuma mulher negra em tribunais superiores que, repetindo, representa 28% da população brasileira. Por que você considera isso ainda mais grave?
Porque esses tribunais, em especial a Suprema Corte, que é o Supremo Tribunal Federal, vai trazer a interpretação da Constituição da nossa democracia, do nosso direito. Por isso digo no meu livro que a Justiça é uma mulher negra. Eu digo que se o direito, a academia jurídica, continuam sendo masculinos e brancos, a Justiça tem que ser uma outra concepção, que nós precisamos construir. Não somos nós, mulheres negras, que precisamos do sistema de justiça e da academia jurídica, porque nós chegamos até aqui sem o apoio dessas instituições ao longo da história. É o contrário. É a academia jurídica e o sistema de Justiça que precisam das mulheres negras para trazer esse olhar para uma pluriversalidade. Nós não podemos mais aceitar uma concepção de Justiça de olhos vendados. A minha proposta é uma proposta diferente daquela que nós aprendemos na academia, nas universidades, que costumam nos ensinar que é preciso promover um afastamento em relação ao objeto do nosso estudo, o objeto da nossa interpretação. E proponho o contrário, porque o objeto do nosso estudo, a interpretação, o direito, não são só normas jurídicas, são pessoas. Uma justiça de olhos vendados tem a capacidade apenas de manter o status quo, de manter as coisas como estão. Nós precisamos de uma Justiça de olhos bem abertos e atentos para que ela enxergue as diferenças e consiga, a partir das desigualdades pautadas nessas diferenças, promover justiça.

 

Deveriam existir cotas raciais no Judiciário?
Sim. As cotas raciais são a primeira e efetiva resposta do Estado brasileiro rumo à promoção da igualdade racial no Brasil, depois de quase quatro séculos de escravização. Então, as cotas hoje nós temos para acesso a universidades, ao ensino superior e acesso a concursos públicos. Isso ainda é pouco, porque todos os direitos das pessoas negras foram violados durante o período escravocrata e no pós-abolição também, o que faz com que até hoje nós tenhamos perpetuado um racismo estrutural no nosso país. O sistema de Justiça precisa pensar em paridade de raça e gênero, inclusive nessas indicações para tribunais.

Como tem sido a ressonância no governo do apoio de diferentes setores da sociedade ao seu nome?
É importante dizer primeiro que não se trata de qualquer pessoa negra também. Eu acho que nós temos que pensar na trajetória dessa pessoa que seja uma pessoa progressista, comprometida com a democracia, com uma trajetória antirracista, não sexista, não LGBT fóbica. Porque nós vimos no governo anterior pessoas negras ocupando espaços importantes e que acabaram trazendo retrocessos. Se pensar sobre isso, eu acho que assim,
um governo, uma abertura para essa discussão, para esse debate, nós temos que lembrar que diversos ministros de Estado já se manifestaram sobre isso. O ministro Silvio de Almeida, o vice-presidente [Geraldo] Alckmin, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, já se manifestou sobre isso.

No caso do STJ, há três vagas lá abertas, duas para ministros que seriam oriundos dos tribunais estaduais de Justiça e uma vaga de um integrante de advocacia que entra pelo chamado quinto constitucional, formado por promotores, procuradores e advogados. Na advocacia, por exemplo, você percebe que há um compromisso por parte da OAB em eleger na lista sêxtupla que será escolhida neste dia 19 de junho, uma pessoa negra?
Nós temos por parte da OAB um compromisso firmado. Já há um debate interno intenso há alguns anos. É um compromisso firmado de paridade de raça e gênero. O que nós precisamos agora é enxergar esse compromisso sendo cumprido, para que efetivamente a OAB, nessas escolhas, nessas listas que são levadas aos tribunais, respeite esse compromisso assumido. Eu penso, e inclusive já disse isso explicitamente para membros da OAB, para a presidência da OAB, que ela pode ser um exemplo para o resto do sistema de Justiça.

Você tem uma crítica interessante ao mérito abordado pelos concursos públicos.
O princípio meritocrático vai surgir para afastar os privilégios do Estado absolutista. Privilégios de classe, privilégios de família, do clero. Mas eu penso que, da forma como o mérito é aplicado hoje, nós estamos utilizando-o para manter privilégios.

Você fala muito do exemplo das provas de título, que, num concurso público, funcione como critério de desempate ou de se ganhar pontos. Você vê nisso um critério racista.
Sim, é uma filtragem ou excesso de filtro. A gente tem o que se chama de discriminação racial indireta. O critério é supostamente neutro, mas o efeito não é neutro. O efeito é de exclusão. As pessoas negras no Brasil ainda não alcançaram pós-graduação, mestrado e doutorado em quantidade. Nós não temos ainda cotas raciais obrigatórias para pós-graduações. E não é só sobre isso, é sobre pensar o porquê de esses títulos serem importantes para o exercício dessas funções no sistema de Justiça. Afinal de contas, um promotor de Justiça, um juiz ou um defensor, uma defensora, estão ali para lecionar, para seguir uma carreira acadêmica ou para proteger, defender e promover o Estado Democrático de Direito? Proponho outros títulos a serem considerados. Por que não considerar como título o tempo de experiência em movimentos sociais? Tempo de experiência em organizações não governamentais de serviço voluntário? Nós estamos selecionando sempre o mesmo perfil de pessoas, grupos hegemônicos, porque isso tem a ver com o critério de seleção. Então, para mudar o perfil no sistema de Justiça, é preciso que nós mudemos também os critérios de seleção.

E, a exemplo das universidades, que se enriqueceram intelectualmente com as cotas, o mesmo aconteceria com os tribunais, certo?
O direito, em especial, é uma área do conhecimento encastelada. Não dialoga com outros saberes, não dialoga com os saberes tão importantes que nós temos em comunidades de terreiro, em comunidades quilombolas, de comunidades indígenas. Não há um diálogo com esses saberes, como se apenas o saber jurídico vinculado, fixado, aficionado pelo Norte global fosse importante. Então a gente empobrece em termos epistêmicos, nós empobrecemos como quando nós deixamos de dialogar com outros saberes, nos fixamos apenas no nosso global. Nós estudamos filosofia alemã, nós estudamos as construções da Europa, dos Estados Unidos, mas nós não estudamos constituições da América Latina. Nós somos uma bolha na América Latina. Não estudamos a jurisprudência da América Latina, da África. É a concepção de pluriversalidade que eu trouxe aqui. É de um filósofo sul-africano Mogobe Ramose. Nós não acessamos esses saberes. O que proponho é uma expansão de cosmopercepção de mundo. Como nós acessamos saberes que não são aqueles lineares? O saber eurocêntrico é linear. Ele tem como ápice, como topo, a imagem do homem branco, do homem branco como um sujeito universal. Eu, mulher negra, não sou sujeito universal, porque essa suposta universalidade vai homogeneizar as pessoas.

Ela não te contém, não te contempla.
Não contempla as minhas vivências, as minhas dores, os obstáculos que eu acesso, aquilo que me impedem de acessar os meus direitos não são contemplados. Então, é muito importante que a gente repense realmente essas perspectivas e entenda que não é só sobre aquela pessoa negra que alcança aquele espaço, é sobre toda a sociedade. O racismo e o sexismo não são problemas dos negros e das mulheres, são problemas de toda a sociedade.


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