A riqueza das corporações depende cada vez mais da propriedade intelectual, mas esta depende de nós. Quais estratégias permitiriam vencer quem nos espolia e empregar as tecnologias em favor do Comum, da liberdade e da solidariedade?

Imagem: Zoran Svilar/TNI

Este artigo é parte da série de análises publicada pelo respeitado Transnational Institute, que juntas constituem um aprofundado e instigante estudo sobre as configurações do poder na era das Big Techs, com suas plataformas e algoritmos. O relatório completo você encontra aqui  Iraque. Em parceria exclusiva, Outras Palavras publica as traduções desses artigos. Leia outros textos da série aqui.


Por Julia Choucair Vizoso e Chris Byrnes, no Transnational Institute (TNI) | Tradução: Maurício Ayer

A empresa imobiliária mais influente da história não possui muitos imóveis. Tornou a habitação menos acessível, criou crises habitacionais em destinos turísticos muito procurados, esvazioou comunidades, e chegou a ficar valorizada em US$ 113 bilhões – tudo isso sem ter a propriedade física dos imóveis.

No entanto, a Airbnb tem muitas propriedades. O que falta à empresa em propriedade física ela compensa em propriedade intelectual (PI), os códigos legais e econômicos que regem a criatividade, as informações, a marca e a reputação na economia global. Se você está entre o meio bilhão de usuários do Airbnb, ao navegar pelas listagens, fazer uma reserva, pagar ou entrar em contato com o suporte ao cliente, você está interagindo com diversos tipos de PI, como código de software protegido por direitos autorais, algoritmos protegidos por segredos comerciais, e centenas de patentes da empresa. À medida que a Airbnb se expande para novos mercados, ela explica a seus investidores que o crescimento de longo prazo da empresa virá da rede de propriedade intelectual envolvida no mercado de aluguel e hospedagem.

O império intangível da Airbnb está longe de ser único. Propriedade física, commodities, recursos, produtos – coisas que você pode tocar – são cada vez mais marginais no valor de mercado. A mudança foi sísmica: 50 anos atrás, 80% do valor das maiores empresas do mundo estava em ativos tangíveis; agora 90% está em intangíveis. E as ondas de choque continuam chegando. O valor dos intangíveis se multiplicou por dez nos últimos sete anos, chegando a US$ 65 trilhões, ou mais de 75% da economia global. Nenhuma cadeia de suprimentos global, nenhum acordo comercial existe sem que a propriedade intelectual o atravesse. O poder digital não seria possível sem ele.

Não podemos entender o capitalismo digital hoje e suas muitas desigualdades sem entender como ele transformou cada ato da imaginação humana, cada dado, passado e presente, em uma mercadoria em potencial. Uma nova geração de empresas de tecnologia “disruptivas” encontrou maneiras de usar a PI como uma parte importante de seu arsenal para controlar e explorar o trabalho e os dados de trabalhadores e consumidores digitais na assim chamada economia compartilhada.

No entanto, talvez nenhuma outra categoria de ativos esteja tão pronta para a revolução. Apesar de todo o seu poder na economia, a propriedade intelectual também é excepcionalmente vulnerável. Podemos ocupar as vulnerabilidades do sistema atual, libertar a criatividade e os dados do sistema de exclusão e posse pessoal, e reforjá-lo como uma prática de construção de comunidade radicalmente imaginativa, gerativa e socialmente produtiva.

Imagem: screenpunk/Flickr/(CC BY-NC 2.0)

Criatividade abolicionista

Hoje, trilhões de dólares imaginários são trocados por direitos de propriedade imaginária, mas nos falta a imaginação necessária para transformar a economia em algo que possa ajudar a vida a florescer. Agora, mais do que nunca, a criatividade é a saída para os impasses que enfrentamos. Mas, para que ela prospere, devemos primeiro abolir os códigos econômicos e legais que a prendem.

A criatividade entra na economia como propriedade intelectual, o regime legal surgido na Europa do século XVII, que formalizou a expressão criativa e a invenção em direitos individuais exclusivos. Como um termo abrangente para direitos autorais, patentes, marcas registradas e segredos comerciais, a propriedade intelectual está em toda parte. A tecnologia do smartphone, que talvez você esteja usando para ler este texto, pode ter até 250 mil patentes relacionadas. O relatório do qual este ensaio é capítulo traz um aviso de direitos autorais – na forma de uma licença Creative Commons – na primeira página. Mesmo o rabisco que você pode ter rabiscado em um guardanapo é automaticamente protegido por direitos autorais, quer você queira ou não (e independentemente de sua proeza estética).

A lei de direitos autorais não se importa se o que criamos é bom do ponto de vista artístico. Para que o trabalho seja protegido por direitos autorais, ele deve ser ‘original’ e ‘criativo’, mas o limite é muito baixo: um pouco mais criativo e original do que organizar uma lista telefônica em ordem alfabética.

Fundada nos conceitos de trabalho e individualismo desenvolvidos pelos filósofos do Iluminismo, a PI foi imposta em todo o mundo por meio de projetos coloniais e acordos comerciais. Até hoje, o sistema de PI permanece rigidamente eurocêntrico, sem meios acordados para reconhecer e respeitar epistemologias ou concepções não europeias do indivíduo.

O regime é fortalecido por instituições poderosas e legalmente vingativas, cuja jurisdição se estende a todos os membros da Organização Mundial do Comércio (OMC). Sob a bandeira do policiamento de “infração de PI”, as leis de PI podem bloquear qualquer bem na fronteira e impedir que até mesmo as inovações mais essenciais sejam disponibilizadas ao público. E seu poder parece apenas se expandir. Sob a pressão de uma ampla gama de lobistas corporativos, os direitos exclusivos que antes expiravam tornaram-se perpétuos e expansivos, corroendo o domínio público.

Naturalmente, tal sistema inspira resistência. Vozes críticas resistem à visão de mundo capitalista colonial dos direitos de propriedade que sustenta o sistema. Piratas e defensores da cultura livre insistem que “a informação quer ser livre”, estabelecendo plataformas alternativas para compartilhar cultura. Mesmo os defensores liberais dos regimes de propriedade intelectual admitem relutantemente que, embora a configuração inicial fosse ponderada – ela promoveria “o ideal de progresso, um mercado transparente, acesso fácil e barato à informação, produção cultural descentralizada e iconoclasta, política de inovação autocorretiva” – o sistema foi corrompido pela influência corporativa, minando uma cultura de compartilhamento e remixagem.

O que deveria ser feito? Eliminar totalmente a PI? Reformá-la por meio de políticas públicas? Desenvolver tecnologias legais que permitam que os criadores optem por não participar? Defender pirataria online e campanhas de infração? Embora esses debates sejam importantes (alguns mais que outros), eles restringem perigosamente nossa imaginação. Ao limitar nosso olhar ao mundo interior do que constitui propriedade intelectual – se e como trabalhos criativos devem ser protegidos, o que deve ser considerado propriedade intelectual – estamos deixando de fazer o trabalho radical: localizar a propriedade intelectual na economia política mais ampla, questionar o que papel que desempenha nas estruturas mais amplas de exploração e opressão.

Quando nos retiramos das guerras culturais que dominaram os debates sobre a propriedade intelectual em si, somos forçados a lidar mais seriamente com a materialidade da criatividade – com o modo como ela percorre todas as cadeias de suprimentos globais e todos os acordos comerciais internacionais que se possa imaginar, com o modo como ela torna o poder digital possível e difundido. O capitalismo reconhece esse poder e age para apertar o controle. Cowboys capitalistas que chamam a atenção, como Jeff Bezos, Nathan Myhrvold e Martin Shkreli, estão inovando em torno das incongruências dessa poderosa categoria de ativos. Os anticapitalistas têm dormido ao volante.

A desatenção não chega a surpreender. A menção de propriedade intelectual pode fazer com que até mesmo os olhos mais brilhantes fiquem vidrados. É uma das muitas questões deliberadamente feitas para parecer obscuras, excessivamente técnicas, legalistas e irrelevantes para as crises que enfrentamos. Ninguém precisa ser formado em direito para entender os termos pelos quais sua criatividade entra na economia. Libertar a PI de seu arcabouço legalista, e despertar para o poder que ela encerra, revela que se trata de um regime excepcionalmente vulnerável.

Eis a brecha vital: fundamentalmente, a propriedade e o controle da propriedade intelectual sempre pertencem, em primeira instância, aos artistas, inventores, acadêmicos e criadores que a criaram. Atualmente, esse poder está adormecido. A maioria dos produtores de PI entrega intransigentemente sua PI a corporações (tanto com fins lucrativos quanto sem fins lucrativos) por meio de contratos de trabalho, termos e condições click-wrap e licenças de PI que dão a essas instituições rédea solta para comercializar a PI em cadeias de suprimentos exploradoras e opressivas. Outros simplesmente abrem mão de seu poder usando licenças Creative Commons ou Open-Source, mas, novamente, nada fazem para impedir que as corporações comercializem PI de forma agressiva e opressiva.

Poderíamos imaginar as coisas de uma maneira diferente? E se os criadores retomassem seus direitos de propriedade intelectual, os ocupassem e virassem sua lógica de cabeça para baixo? E se pegássemos a essência da PI – o direito econômico e legal de excluir os outros de um intangível – e optássemos por excluir apenas a opressão e a exploração? Podemos alavancar nossos direitos legais como criadores para meter uma ferramenta nas engrenagens do capitalismo? E se os criadores não ficassem apenas protestando contra os regimes que encarceram a imaginação, mas criassem, aqui e agora, os sistemas, estruturas e instituições de base para substituí-los?

Para esses fins, não estamos a princípio preocupados com a questão abstrata de saber se a propriedade intelectual deveria existir. A criatividade abolicionista para nós não significa eliminar os direitos dos criadores ou as proteções que incidem sobre as criações; trata-se de garantir que a criatividade entre na economia como uma ferramenta contra a opressão. Nas palavras da geógrafa abolicionista Ruth Wilson Gilmore, “Abolição diz respeito à presença, não a ausência”. Pedimos aos criadores que apareçam e estejam presentes nos direitos que nos foram concedidos, para ocupá-los e colocá-los a serviço dos mundos que queremos criar. Para usar nossa criatividade para construir instituições de afirmação da vida.

Inspirados nas perguntas feitas pelos abolicionistas Mariame Kaba e Dean Spade em suas reflexões sobre “reformas não reformistas” (termo originalmente cunhado pelo economista-filósofo francês André Gorz na década de 1960), pedimos aos criadores que se perguntem: para que serve a criatividade, a informação, o conhecimento? Fornece alívio material aos oprimidos e explorados dentro das cadeias de abastecimento nas quais a criatividade é comercializada? Constrói poder, mobilizando a luta contínua entre os afetados pelas obras criativas? Deixa de fora os grupos marginalizados? Legitima o sistema?

O olhar abolicionista vê a criatividade, conforme ela se apresenta em nossa economia, como um fio que se entrelaça por meio de sistemas interligados de opressão. E nos convida a puxar esse fio.

O regime global de PI também é vulnerável por outro motivo. Justamente porque se modelou de um modo desajeitado pelas leis do início da era moderna, relacionadas à propriedade física, a PI está cheia de contradições e absurdos, que oferecem oportunidades intrigantes para experimentação transgressiva, imaginação radical e jogo subversivo. Aqui estão algumas.

Tramas do futuro abolicionista

Trama #1: Protesto como performance protegida por direitos autorais

O protesto é cada vez mais criminalizado nas democracias. Durante manifestações pacíficas contra a inação climática, a injustiça racial, a brutalidade policial ou a guerra, os serviços de segurança prendem e reprimem violentamente manifestantes, jornalistas e monitores de direitos humanos. Os oficiais de polícia enviam ordens de “retomar as ruas”, transformando indivíduos que exercem um direito democrático fundamental – o direito de protestar – em criminosos. Mais países estão introduzindo leis para responsabilizar os manifestantes criminal e civilmente por danos materiais ocorridos durante os protestos.

A digitalização tornou-se um componente crucial da vigilância aprimorada e da capacidade coercitiva dos Estados, e eles a implantam com pouca regulamentação ou transparência. Jornalistas, defensores dos direitos civis e manifestantes documentaram o uso do governo de vigilância, monitoramento de mídia social e outras ferramentas digitais – denúncia que pode levar anos após um protesto para que se apreendam todas as maneiras pelas quais as forças de segurança vigiam os organizadores. Os governos também estão se coordenando com forças de segurança privadas com experiência em tecnologia que começaram como empreiteiras na “guerra contra o terror”. Os “interesses sobrepostos do governo e da indústria que usa vigilância, policiamento e prisão como soluções para problemas econômicos, sociais e políticos” é o que os abolicionistas chamam de complexo industrial prisional.

Imagem: Leslie Peterson/Flickr/(CC BY-NC 2.0) / Stand With Standing Rock de 11 a 15 de novembro de 2016.

Durante os protestos do oleoduto Dakota Access em Standing Rock, por exemplo, documentos vazados mostraram que as forças militares estaduais e federais estavam trabalhando ao lado de uma empresa militar privada, TigerSwan, contratada pelos proprietários do oleoduto, a Energy Transfer Partners. Trabalhando com a polícia em pelo menos cinco estados para atacar o movimento Protetor da Água (Water Protector) liderado pelos indígenas, a TigerSwan estava usando medidas antiterroristas de estilo militar e vigilância digital para monitorar os movimentos dos manifestantes, incluindo filmagem ao vivo de um helicóptero de segurança privado da Dakota Access.

É aqui que entra a propriedade intelectual. E se protegermos legalmente a criatividade inerente ao protesto como arte performática passível de direitos autorais? Os protestos rotineiramente incorporam inovações performativas em seu repertório, seja em Standing Rock, no México, no Iraque ou no Reino Unido. Sabemos que para as comunidades em resistência, “os rituais, danças, protocolos e canções que caracterizam essas lutas não são apenas elementos efêmeros culturais do ativismo; eles são uma parte íntima e constitutiva da construção do mundo indígena, um meio de coordenar e alinhar a imaginação coletiva de modo a facilitar e enriquecer a cooperação dos envolvidos”. Os estudiosos há muito reconhecem a performatividade do protesto, estudando o uso da visualização e do espaço ou argumentando que “coreografia, movimento e gesto não são periféricos, mas centrais para a política de protesto”. E se os manifestantes reconhecerem que essas características-chave do protesto também têm direitos legais que podem ajudá-los a desafiar o complexo prisional-industrial?

Imagine se os manifestantes usassem o © “todos os direitos reservados” em seus corpos ou se adornassem com códigos de barras vinculados aos termos e condições de direitos autorais, especificando que imagens e áudio não poderiam ser usados ​​para uso comercial, incluindo vigilância contratada de forma privada. Imagine se os manifestantes exigissem no tribunal saber como as forças de segurança privada estavam usando qualquer gravação de sua arte, visual ou áudio? Imagine se a descoberta legal (o procedimento pré-julgamento em que cada parte pode obter provas da outra parte por meio de solicitações de documentos) revelasse os interesses comerciais secretos entre departamentos de polícia e empresas de segurança privada, ou entre uma empresa mercenária privada e seu empregador, uma companhia petrolífera. Imagine se essas empresas tivessem que compensar os manifestantes por violação de direitos autorais ou se os tribunais rejeitassem as evidências porque as empresas as obtiveram ilegalmente com violação de direitos autorais. A lei de direitos autorais não vai tirar os manifestantes da prisão por acusações criminais, mas pode ajudar a garantir que o complexo prisional-industrial não lucre com o policiamento.

Como os criadores de uma performance protegida por direitos autorais de Extinction Rebellion, Black Lives Matter, PA ou não PA, #NoDAPL e inúmeros outros destemidos ativistas podem querer condicionar o uso de sua atuação? Que tipos de exclusão legalmente aplicáveis ​​promoveriam os objetivos de sua ação direta ou resposta comunitária? Os manifestantes devem permitir que os departamentos de polícia (e as empresas de segurança privada com as quais eles trabalham cada vez mais) usem gravações de vídeo e som de uma performance roteirizada (ou seja, um protesto) ou de artes visuais como graffiti – e qualquer outro material protegido por direitos autorais – sem quaisquer condições? O que alguém que apreende ou destrói uma instalação tipo arte-acampamento deve pagar em reparações?

Habitamos sistemas que oferecem mais proteção legal para afrontar a injustiça do que para reivindicar a justiça como um direito; sistemas que valorizam a santidade da propriedade mais do que a santidade das vidas negras e indígenas, mais do que proteger a biodiversidade. Não existe um regime internacional de direitos humanos confiável, mas existe um poderoso regime jurídico internacional associado à propriedade intelectual. Podemos reaproveitar radicalmente esse poder. Podemos desbloquear os códigos e a tecnologia legal de PI de seu uso pretendido.

As possibilidades são intrigantes. Poderíamos ser mais capazes de ocupar a propriedade física ocupando a propriedade intelectual, remodelando os poderes absurdos dados à propriedade intangível para promover nossa capacidade de manter o espaço físico? A proteção de direitos autorais poderia complicar a forma como o poder digital cada vez mais oprime protestos ou atos de preservação, sejam eles voltados a questões ambientais ou pela vida digna?

Qualquer um pode participar. Todo manifestante é um artista performático. Para aqueles que já se identificam como artistas ou artivistas socialmente engajados, aqui está uma oportunidade de repensar a agência política de sua arte. Uma obra de arte pode ter potencial de ação política direto, não por meio de debates sobre a retidão de sua estética ou conteúdo político, mas por meio de artistas que ocupam os arcabouços jurídicos e econômicos que a cercam?

Trama # 2: Ocupar contratos de trabalho com cláusulas de direitos morais de PI 

Os contratos de trabalho são onde nós, como produtores de PI, frequentemente entregamos nossos direitos. Cedemos às empresas o que nos pertence legalmente por meio da cláusula de cessão de propriedade intelectual: um termo contratual que dá aos nossos empregadores total propriedade e controle para usar e comercializar nossa propriedade intelectual. Dado o enorme valor da propriedade intelectual para os resultados de uma corporação, não é surpresa que as corporações tenham tentado tornar suas reivindicações sobre a criatividade dos funcionários o mais amplas possível.

As leis que regem as cláusulas de atribuição de PI dos funcionários variam de acordo com a jurisdição, mas os termos comuns exigem que os funcionários abram mão de todos os direitos morais: direitos legais que capacitam os criadores a se oporem a usos de seu trabalho que prejudiquem sua honra ou reputação. Outros termos comuns concedem aos empregadores a propriedade de qualquer ideia registrada em qualquer parte da propriedade corporativa, incluindo a ideia de um funcionário para um projeto pessoal, caso ele a tenha gravado em um laptop de trabalho.

O que aconteceria se ocupássemos nossas cláusulas de cessão de propriedade intelectual? E se nos organizássemos coletivamente como produtores de PI e impuséssemos condições aos direitos de nossos empregadores sobre a nossa PI? Uma tecnologia legal existente que podemos usar é a cláusula de direitos morais: um termo contratual que dá a alguém o direito de rescindir um contrato, ou tomar outra ação corretiva, se a parte infratora se envolver em comportamento imoral. O que as cláusulas morais de PI abolicionistas co-criadas podem estipular?

E se nossos empregadores não pudessem mais usar nossa propriedade intelectual em cadeias de suprimentos com trabalho forçado e devastação ecológica, ou a serviço de militares, vigilância e policiamento?

A PI tem um tremendo poder para interromper toda uma cadeia de suprimentos. Uma disputa de PI tem o poder de parar mercadorias na fronteira. Se os produtores de PI em uma parte da cadeia de suprimentos usarem cláusulas morais, eles podem desencadear uma disputa de PI sempre que esses princípios morais forem infringidos em qualquer ponto da cadeia de suprimentos na qual a PI é usada.

Aqui está um exemplo das Big Techs, cujas cadeias de suprimentos têm um apetite insaciável por cobalto. A mineração de cobalto é conhecida por seus abusos dos direitos humanos, corrupção, destruição ambiental e trabalho infantil. Uma cláusula moral de PI usada por produtores de PI em todas essas cadeias de suprimentos – digamos pela Coalizão dos trabalhadores de tecnologia – poderia ser usada para implementar propostas feitas por ativistas de direitos humanos, afirmando que “qualquer empresa que forneça cobalto da RDC deve estabelecer um sistema terceirizado independente de verificação de que todas as cadeias de suprimentos minerais estejam livres de exploração, crueldade, escravidão e trabalho infantil. Eles devem investir o que for necessário para garantir salários decentes, condições de trabalho seguras e dignas, saúde, educação e bem-estar geral das pessoas de cuja mão de obra barata dependem”. Se tais condições fossem incorporadas a uma cláusula moral de propriedade intelectual – capaz de paralisar cadeias de suprimentos dependentes de cobalto ao desencadear uma disputa de propriedade intelectual quando violada – todo o poder de mercado da propriedade intelectual poderia ser usado como uma cenoura e um bastão para implementar tais propostas.

Acadêmicos, jornalistas, artistas e músicos também podem usar poderosas cláusulas morais de propriedade intelectual. Os editores dependem de papel, tinta e cola, ou computadores, software, Google e Amazon para divulgar seus trabalhos protegidos por direitos autorais. No entanto, a indústria de “celulose e papel” continua a lucrar com o desmatamento na floresta amazônica, fabricantes de tinta a violar os direitos trabalhistas e despejar resíduos perigosos, e encadernações de livros não são recicláveis. A publicação digital, por sua vez, alimenta cadeias de suprimentos que rotineiramente despejam lixo eletrônico em todo o Sul Global. Os produtores de direitos autorais podem usar cláusulas morais de PI para condicionar a publicação e comercialização de suas obras ao compromisso de uma editora de usar cadeias de suprimentos de última geração, amigáveis ​​ao trabalho e ao meio ambiente. Essas condições podem coexistir com os termos de licenciamento de acesso aberto que permitem que qualquer pessoa acesse livremente o conteúdo protegido por direitos autorais, enquanto ainda proíbem os editores de fornecer conteúdo de acesso aberto por meio de cadeias de suprimentos antiéticas.

Por meio de cláusulas morais de PI, podemos colocar Ideias sobre abolição, sustentabilidade ou direitos humanos em prática nas cadeias de abastecimento em que essas ideias são comercializadas. Também podemos aproveitar o poder da propriedade intelectual para aprofundar a solidariedade dos trabalhadores nas cadeias de suprimentos. No processo, podemos experimentar a PI não como um direito exclusivo Individual, mas como uma ferramenta coletiva. Podemos imaginar sindicatos de PI organizados em torno da moral coletiva de PI?

Por que o acesso aberto não é abolicionista

A criatividade abolicionista pode estar em desacordo com os movimentos contraculturais mais bem-sucedidos do mundo da PI, como o movimento do software livre, o movimento do código aberto e o movimento Creative Commons. Embora heterogêneos e envolvidos em debates acalorados entre si, esses movimentos compartilham uma preocupação comum: como a sociedade resolve o descompasso entre o que a tecnologia digital permite teoricamente – a oportunidade de acessar, compartilhar e colaborar na criatividade em uma escala sem precedentes e com custo marginal quase zero – e o que a lei de direitos autorais restringe?

As respostas dos movimentos de acesso aberto foram capazes de construir uma comunidade, cultura e prática alternativas em relação aos direitos autorais. Por meio de mensagens criativas e recursos educacionais acessíveis, esses movimentos trouxeram os direitos autorais para a esfera pública e os libertaram de seus arcabouços misteriosos. Suas licenças padrão fáceis de usar permitem que os criadores desativem a estrutura padrão de “todos os direitos reservados” e exerçam maior poder sem a necessidade de se tornarem especialistas em leis de direitos autorais. Os movimentos também tornaram as informações mais acessíveis para aqueles que não podem pagar por acessos restritos e permitiram a ação coletiva para criar softwares mais seguros e conscientes da privacidade.

A criatividade abolicionista se baseia nas contribuições dos movimentos contemporâneos de acesso aberto, mas muda fundamentalmente o cerne do problema. Os movimentos de acesso aberto estão centralmente preocupados em como compartilhar ideias e cultura mais livremente; como facilitar a liberdade de expressão e o livre acesso ao mesmo tempo em que sustenta a inovação. Essas preocupações são produto do local e do momento histórico em que surgiram. Na década de 1990, cientistas da computação e estudiosos do direito cibernético na Europa e nos Estados Unidos, que participaram da ascensão do software e da internet como ferramentas de massa (a chamada Era da Informação), buscaram resolver um desafio particular: como realizar o potencial e a esperança da internet, enquanto a lei de direitos autorais se tornava cada vez mais restritiva e punitiva.

Em vez disso, começamos nossa análise olhando para o sistema global mais amplo no qual o conhecimento e a informação operam: um sistema colonial que extrai riqueza, conhecimento e cultura de comunidades economicamente marginalizadas e redistribui desigualmente seus frutos econômicos para os mais ricos e poderosos. Esta abordagem está de acordo com as críticas que ativistas e estudiosos críticos há muito fazem aos movimentos de acesso aberto: que o foco central nos valores da liberdade ignora as preocupações com a igualdade; que um noção romântica de “domínio público” como uma paisagem neutra onde cada pessoa pode colher suas riquezas ignora seu papel real na exploração do trabalho e dos corpos de pessoas de cor, mulheres, pessoas do Sul Global e os pobres. Agora sabemos que o “domínio público” do conhecimento indígena sobre flora e fauna locais, medicamentos tradicionais, folclore ou expressões culturais tradicionais permitiu que a grande indústria farmacêutica pegasse o conhecimento indígena, transformasse-o em propriedade intelectual e se tornasse o proprietário exclusivo desse conhecimento: um fenômeno conhecido como biopirataria.

A criatividade abolicionista também discorda de uma crença ideológica que permeia alguns segmentos proeminentes dos movimentos de acesso aberto, qual seja, a de que o sistema já funcionou bem, mas que “infelizmente, nossos regimes de PI se afastaram muito de seus propósitos originais”. Para os colonizados, para os Povos Indígenas cujo conhecimento coletivo foi saqueado, para as comunidades forçadas a acordos comerciais opressivos (por exemplo, TRIPS), para o crescente número de escravos modernos trabalhando em cadeias de suprimentos globais alimentadas por intangíveis, é difícil ver como o sistema de PI funcionou para eles – ou o que décadas de tentativas reformistas dentro da lei de PI nos EUA conseguiram. Para os abolicionistas, o sistema não está quebrado e precisa de reformas, ajustes e consertos. Está funcionando como foi projetado para funcionar, como uma estrutura legal e econômica de colonizador para colonizados. E estamos correndo contra o tempo e o pensamento mágico esperando que a política pública de alguma forma se torne favorável em uma oligarquia dominado pelas corporações.

Os movimentos de acesso aberto também devem enfrentar um fato incômodo: as Big Techs estão do lado deles. A ideia convencional de que grandes corporações sempre preferem regimes de PI mais fortes para bloquear novos concorrentes, ou que a aplicação zelosa da lei de PI favorece os poderosos, não é corroborada pelo registro histórico. Com exceção da indústria farmacêutica, os monopolistas das indústrias que são intensivas em tecnologia têm resistido a uma proteção forte de patentes ao longo da história: a indústria ferroviária no século XIX, a IBM na indústria de computação nas décadas de 1960 e 1970, as Big Techs hoje. Google, Facebook (Meta) e Twitter estão tentando aplicar seletivamente a PI, gastando milhões de dólares em lobby para garantir o mínimo possível de atrito da PI dentro dos mercados nos quais eles já têm poder de mercado dominante, para ter controle irrestrito sobre dados e conhecimento, para continuar a obter “lucros colossais de publicidade a partir de conteúdo produzido gratuitamente pelos usuários”, e para evitar o temida disputa de PI.

Se os atores mais poderosos são os verdadeiros vencedores em um mundo de acesso aberto, não deveríamos reavaliar a afirmação de que “a informação quer ser livre”? Se o livre acesso significa continuar ignorando os apelos das comunidades indígenas para impedir a biopirataria, a expropriação cultural e o “domínio público” dos colonizados, por que continuamos a considerá-lo um valor absoluto?

Ao contrário dos movimentos de acesso aberto, a criatividade abolicionista reconhece que a economia global na qual liberamos nossa criatividade não é um campo de jogo neutro e nivelado. Ceder ou limitar os direitos de criatividade existentes em nosso sistema atual não interfere na estrutura de opressão. Ele simplesmente cede o domínio a atores mais poderosos – domínio que deveria ser cedido para baixo, não para cima. Em vez de abrir mão de nossos direitos em nome de uma espécie de libertarianismo para a Era da Informação, deveríamos abrir nossos olhos para as formas materiais pelas quais nossa criatividade entra na economia e reifica estruturas de poder digital (e de outros tipos de poder).

Como as nossas conspirações para um futuro abolicionista ilustram, existem experimentos e exercícios intrigantes para reconhecer e reaproveitar o poder do que é classificado como “propriedade intelectual”. Ao apoderar-se dos meios de produção imaginativa, podemos transformar a criatividade numa ferramenta de libertação coletiva que rompe e subverte os próprios regimes de poder digital que a encerram e exploram. Ao mesmo tempo, longe de reificar o próprio sistema de PI, a criatividade abolicionista destaca suas contradições, abala seu equilíbrio e cria crises internas. Se há futuro para a propriedade intelectual, nós o descobriremos, coletivamente, em nossos atos de resistência e imaginação. 

   
fonte: https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/como-hackear-o-poder-digital/

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