O direito à educação no Brasil esbarra em diversos obstáculos que fazem com que a sala de aula nem sempre seja um espaço para todas. As desigualdades estruturais prejudicam o acesso à educação por meninas no país. Segundo dados da PNAD Contínua, de 2019, a gravidez e afazeres domésticos são os dois principais motivos para a evasão escolar entre meninas.  


Redução de desigualdades e acesso à educação é alvo de iniciativas promovidas pela Rede (Foto: Fundo Malala)

 
 
 

Entre as figuras mundiais que se destacam na luta pelo direito à educação para meninas, está Malala Yousafzai. Em 2012, com apenas 15 anos, ela foi baleada por um grupo radical no Paquistão, país no sul do continente asiático.

“Conto minha história não porque ela é única, mas porque não é. É a história de várias garotas”, é o que diz a ativista.

O ser mulher

Os problemas estruturais que ameaçam um acesso equitativo à educação, especialmente para meninas vulneráveis no país, podem ser vistos sob a ótica dos processos históricos e dos discursos que definem os “papéis de menina”, desde a infância até a fase adulta.

“A questão de gênero se envolve na educação tanto dentro da escola, como fora da escola. Dentro da educação, como fora da educação”, explica Liz Ramos, assessora educacional e educadora no Centro de Cultura Luiz Freire, instituição que há mais de 50 anos trabalha com projetos ligados ao direito à educação, comunicação e cultura, na cidade de Olinda (PE).

 
 

Para a educadora, o fato de serem mulheres implica a sobrecarga de papeis e de responsabilidades. Em muitos casos, meninas não são apenas estudantes. Afinal, se deparam com uma lista de atividades como cozinhar, cuidar de irmãos e tarefas para a higiene doméstica.

Além disso, ela pontua que outras questões são somadas às desigualdades de gênero. Dessa forma, é possível destacar situações em que há a estigmatização perante meninas que se tornam gestantes em idade escolar, por exemplo.

“A maioria dessas meninas passa por situações que muitas vezes as levam ao abandono escolar”, explica. Segundo dados da PNAD Contínua (IBGE), de 2019, a gestação é um dos fatores decisivos para a evasão escolar. A pesquisa demonstra que 29,6% das adolescentes fora do ambiente escolar, são mães.

Passado: heranças de desigualdade

Nesse mesmo sentido, é possível compreender as dinâmicas das desigualdades que atuam no presente a partir da observação da linha do tempo que posiciona meninas em posições desprivilegiadas.

Assim, para meninas que representam populações vulneráveis, como meninas negras, indígenas e de comunidades quilombolas, as lacunas são ainda mais ampliadas.

“Estamos falando de uma história, já no século 18 e 19, de meninas escravizadas. São meninas que não tinham infância, e que recebiam um trabalho compulsório. Mais tarde, vemos meninas de famílias brancas indo para a escola, enquanto meninas negras ficavam em casa para cuidar dos filhos das madames”, afirma a professora de história da Universidade Estadual do Piauí (UESPI) e presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), Iraneide Soares.

A pesquisadora destaca ainda que algumas regiões brasileiras foram ainda mais prejudicadas por esse processo histórico, como a região do Nordeste.

Nesse contexto, é fundamental olhar para o passado a partir de um olhar mais crítico, que leva em consideração aspectos geográficos, econômicos e políticos. Portanto, pensar no futuro da escolarização de meninas envolve necessariamente reconhecer o passado desigual.

“É importante pensarmos no ambiente da escola. Mas, precisamos pensar em políticas educacionais que possam gerar o enfrentamento que o Estado brasileiro precisa ter para acabar com as desigualdades educacionais”, defende Liz Ramos, do Centro de Cultura Luiz Freire.

Assunto para a sala de aula

“Quando vemos no livro didático apenas imagens do pai com um paletó e maleta, e a mãe sempre fazendo comida, estamos diante de estereótipos que reforçam o que seria trabalho de homem e o que é trabalho de mulher”, pontua Liz Ramos.


O projeto Papo de Meninas promove encontros para incentivo à educação para estudantes (Foto: Centro de Cultura Luiz Freire)

A inserção de trajetórias das mulheres que tiveram impacto na história, também é importante para um currículo que atue como instrumento para superação de desigualdades.

“Queremos também observar as histórias de mulheres que fizeram grandes feitos. Tanto de lideranças políticas, como das mulheres que constroem o país. Assim, temos as empresárias, ativistas, construtoras, mães de família, empregadas domésticas. Ou seja, as mulheres que compõem um cenário muito amplo de alternativas profissionais”, defende.

Presente: a voz das meninas

Enquanto que olhar para o passado é reconhecer as raízes de estruturas de exclusão e desigualdades, colocar as lentes posicionadas para o presente é perceber a continuidade de impactos que atravessam gerações.

Segundo a pedagoga, integrante da Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala e membro do Comitê Pernambucano da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação, Paula Ferreira, é possível reconhecer avanços na legislação, mas ainda há um longo caminho para que a educação seja assegurada como um direito pleno, acessível a todos.

Nesse sentido, ela cita marcos importantes como a presença da educação como direito na Constituição Federal (Artigo 205) e a definição da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Além disso, um avanço na discussão sobre educação no Brasil foi a Lei 10.639, que determina a inclusão obrigatória do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana no currículo escolar, que em 2023, completa 20 anos.

“Mesmo com essas leis, por que ainda lutamos em prol da educação? Porque ela não é igualitária para todos. Estamos longe de chegar em uma educação verdadeiramente democrática”, reflete Paula Ferreira.


Movimentos contam com participação de estudantes para discussões em prol da reducação de desigualdades (Foto: Fundo Malala)

Segundo a educadora popular, pensar em uma vida escolar democrática perpassa por definir soluções para problemas persistentes no país. Assim, questões como acesso ao transporte escolar de qualidade, alimentação em escolas periféricas e um currículo escolar que auxilie questões ligadas à identidade e raça, são instrumentos que devem ser percebidos em um contexto igualitário e equitativo.

“Para meninas negras, é importante me ver nas atividades escolares e me enxergar no espaço escolar, nas atividades didáticas e pedagógicas da escola”, explica a professora.

Desigualdades viralizadas

Diante de todo o contexto sensível da pandemia de Covid-19, que envolveu inseguranças, prejuízos à saúde mental e exposição a diferentes tipos de riscos, a educação para meninas, sobretudo, pobres ou negras, também integrou a lista de perdas significativas.

O computador com acesso à internet não estava na mesa de todas. Assim como nem toda família possuía um celular por membro com acesso à rede de Wi-fi ou dados móveis. Para muitas, que tinham uma tela em algum cômodo exibindo o rosto e a conexão falhada da voz de um professor, era preciso conciliar com o choro dos irmãos mais novos, a louça que se acumula na pia, e as roupas que precisam ser dobradas.

Além disso, muitas ainda encaram a violência e contextos de exploração. Dessa forma, o vírus estava lá fora, e trazia com ele, os riscos de um futuro com oportunidades ainda mais reduzidas.

“Na pandemia as meninas enfrentaram dificuldades de ordem pedagógica e de ordem estrutural, ligada à questão machista”, relembra a pedagoga ativista da Rede Malala no Brasil, Paula Ferreira.

De acordo com ela, levará um longo tempo até que os prejuízos causados pela pandemia na aprendizagem sejam minimizados.

“Aqui em Pernambuco, ouvi relatos de meninas de algumas escolas de Recife, e me falavam que não conseguiam estudar, aprender, ou ter uma hora de estudo. Isso porque a dimensão do trabalho doméstico tomava conta da vida delas”, relembra Paula.

Oportunidades profissionais

No dia 8 de março deste ano, o governo do atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) anunciou um projeto de lei que pretende penalizar empresas que paguem salários mais altos para homens do que mulheres que exercem a mesma função.

Nesse mesmo contexto, pensar nas disparidades entre gêneros no mercado de trabalho envolve uma série de desigualdades que começam ainda na infância.

“Como é que a escola não vai falar que os homens ganham mais pelo mesmo tipo de trabalho que as mulheres estão fazendo? As desigualdades são inúmeras, e a educação é um grande instrumento de construir e consolidar a democracia no país”, indaga a educadora Liz Ramos.

Segundo ela, as desigualdades educacionais englobam três níveis de dificuldade: acesso, permanência e sucesso. Sendo assim, meninas que precisam ultrapassar barreiras mais espessas e resistentes, tendem a ter as portas estreitadas no futuro profissional.


Na foto, Paula Ferreira, pedagoga que atua com palestra e formações para uma educação mais igualitária e antirracista (Foto: Paula Ferreira)

São essas portas que estão nas lembranças da educadora Paula Ferreira. Hoje, a educadora se engaja nas lutas para que mais meninas vejam na educação, uma chave acessível para o acesso de melhores oportunidades.

“Defender a educação também tem muito a ver com a minha própria história de vida. Antes de entrar na universidade, eu me perguntava o que fazer se eu nem tinha um sonho. Eu não fui motivada a sonhar, mas a educação é o lugar onde você se conecta com possibilidades”, explica Paula, a primeira a concluir o ensino básico e superior de sua família.

Futuro: o caminho possível

Para a historiadora, professora e embaixadora da ONG WWF Brasil, Keilla Vila Flor, a discussão para um futuro diferente pode ser iniciada na própria sala de aula. Segundo ela, a percepção de situações cotidianas é essencial, e envolve o modo de tratamento dado às professoras, e na própria forma como os alunos tratam as alunas.

“A experiência de ser uma criança negra na escola, me fez constatar desde cedo que eu precisava ser infinitamente melhor que meus colegas brancos para que minha inteligência fosse celebrada”, destaca Keilla.

Segundo ela, o ambiente escolar ocupa um espaço importante no processo de autopercepção e construção da autoestima, em especial de meninas negras. A professora, que hoje reúne mais de 35 mil seguidores que acompanham conteúdos relacionados à defesa da educação, o acesso ao ensino é também uma ponte para a emancipação.

“A educação permite a profissionalização. Ser financeiramente independente é um fator importantíssimo para que mulheres se sintam menos presas em relações abusivas”, defende.

Redes de impacto

Após o reconhecimento das desigualdades e dos desafios persistentes, uma rede precisa ser construída. Dessa forma, meninas nem sempre estão em posições onde são ouvidas, assim, o papel das organizações, ativistas e educadores, ganha um caráter amplificador.

A Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala no Brasil é formada por 11 educadoras e educadores que recebem apoio da instituição idealizada por Malala Yousafzai, a ganhadora mais jovem do Prêmio Nobel da Paz na história.

Para Paula Ferreira, a integração à Rede foi o que proporcionou que suas atividades em prol do direito à educação ganhassem um olhar direcionado para as meninas.

“No Brasil, somos 10 mulheres e 1 homem. Então, eles destinam recursos para cada organização, para que ela potencialize as suas ações e atividades em prol de uma educação igualitária”, explica.

Além disso, o Centro de Cultura Luiz Freire também integra a Rede de Ativistas do Fundo Malala no Brasil. Na instituição, o educador Rogério Barata é quem representa a Rede que atua pela educação de meninas no país;

Equidade no centro

O município de Olinda, cidade com distância de apenas 10km para a capital Recife, é associada às imagens de frevo, cores e manifestações culturais pelas ruas, é também a casa do Centro de Cultura Luiz Freire.

O lugar é uma das instituições que recebe os recursos advindos pelo Fundo Malala no Brasil.

“Todos os nossos projetos estão ligados de forma direta ou indireta à educação”, explica a assessora educacional Liz Ramos.

Entre os projetos, estão aqueles que atuam com formação de professores, educação para comunidades quilombolas, redes de incentivo à leitura e outras ações mobilizadas para a formação política, cultural e profissional de meninas e mulheres nas comunidades.

Para Paula Ferreira, é preciso construir uma rede em que as responsabilidades sejam bem posicionadas. Ao poder público, o dever de conduzir políticas eficientes e de fazer boas escolhas orçamentárias. Por fim, na escola, instrumentos pedagógicos podem contribuir para que alunas sejam incluídas. Por último, cabe à sociedade como um todo a postura de reconhecer as lacunas, ouvir as estudantes e cobrar mudanças reais.

“A educação é um lugar do ensinar, do aprender, da sociabilidade. Aprendemos muito um com o outro. Além disso, deve ser um lugar de acolhida e de proteção”, explica.

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fonte: https://sagresonline.com.br/educacao-para-meninas-desigualdades-ainda-ameacam-o-futuro/


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