Tribunais utilizam critérios, não previstos em lei, para decisões sobre violência familiar que restringem a aplicação da Lei Maria da Penha e o reconhecimento, muitas vezes, também como violência de gênero
Conflitos entre duas irmãs, uma das quais se refere à outra como prostituta e vagabunda, é violência baseada no gênero? Essa análise é o tema do episódio desta semana da série Mulheres e Justiça. A convidada da professora Fabiana Severi para falar sobre o trabalho de reescrita de decisão judicial sob a perspectiva feminista, a partir desse caso, é a doutora em Ciências Criminais e professora do curso de pós-graduação em Direito na Universidade Federal de Pelotas, Carmen Hein de Campos.
Carmen conta que, em 2020, a partir de discussões sobre decisões de violência doméstica e familiar, com base na Lei Maria da Penha, e ao analisar decisões mais recentes dos tribunais e juízos de primeiro grau, seu grupo de pesquisa verificou a necessidade de entender por que magistrados e magistradas estavam vinculando conceito de violência baseada no gênero a determinados requisitos não previstos em lei, como, por exemplo, vulnerabilidade, hipossuficiência e subordinação. “Com isso, entendemos ser importante descobrir as primeiras decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde esses parâmetros foram delimitados.”
Ao analisar os argumentos do STF, nessas primeiras decisões verificaram a existência de determinados requisitos para o entendimento de que seria um caso de violência doméstica e familiar a necessidade da fixação de requisitos não previstos em leis, como vulnerabilidade e hipossuficiência. A partir disso, o grupo analisou um caso de 2008, relativamente recente em relação à criação da Lei Maria da Penha, em 2006, e um caso bem diferenciado, em que quase não se percebe a violência doméstica praticada por irmã contra outra irmã, chamada de prostitua e vagabunda. “O Tribunal entendeu que o caso era de mera desavença entre irmãs, que não havia uma violência baseada no gênero, pois não havia subordinação e, também, não era um caso de relação entre mulher e homem, ou seja, violência por parceiro íntimo.”
Mulheres que assumem papéis de gênero
Na reescrita sob a perspectiva feminista, as pesquisadoras discutem o conceito de violência baseada no gênero e mostram que há casos em que mulheres assumem papéis de gênero e reproduzem estereótipos masculinos com outras mulheres, ou seja, verbalizam expressões utilizadas por homens para desqualificar as mulheres. “Ao discutir profundamente o conceito de violência de gênero, concluímos que, neste caso em específico, estávamos diante de violência baseada no gênero e não meramente uma desavença entre irmãs.”
O principal resultado do grupo foi reescrever a decisão judicial desde uma concepção feminina de gênero, que não significa meramente relações entre sexos diferentes, entre mulheres e homens apenas. “A primeira consequência direta da aplicação da teoria feminista de gênero, ou das teorias de gênero, é demonstrar que as relações de gênero também se dão entre mulheres.” A pesquisadora alerta para a necessidade de repensar os critérios dos tribunais que permanecem e não estão previstos em lei e foram fixados em decisões de 2008, logo que a Lei Maria da Penha entrou em vigência. “Esses critérios restringem a aplicação da Lei Maria da Penha e nós queremos demonstrar que esses critérios violam a própria legislação e dificultam o acesso das mulheres à Justiça.” Participaram deste projeto, além da professora Carmen, as pesquisadoras Clarissa Campani Mainieri e Juliana Azevedo de Oliveira Alves.
A série Mulheres e Justiça faz parte do projeto Reescrevendo Decisões Judiciais em Perspectivas Femininas, uma rede colaborativa de acadêmicas e juristas brasileiras de todas as regiões do País que se presta a reescrever decisões judiciais a partir de um olhar feminista.
A série Mulheres e Justiça tem produção e apresentação da professora Fabiana Severi, da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP, e das jornalistas Rosemeire Talamone e Cinderela Caldeira -
Apoio:acadêmicas Juliana Cristina Barbosa Silveira e Sarah Beatriz Mota dos Santos-FDRP
Apresentação, toda quinta-feira no Jornal da USP no ar 1ª edição, às 7h30, com reapresentação às 15h, na Rádio USP São Paulo 93,7Mhz e na Rádio USP Ribeirão Preto 107,9Mhz, a partir das 12h, ou pelo site www.jornal.usp.br