Obra de Narcisa Amália, escritora do século 19 que foi redescoberta só agora no século 21, é leitura obrigatória para o vestibular

 Jornal da USP -  Publicado: 28/05/2025 às 15:51

Texto: Cláudia Costa

narcisa amalia nebulosas

Arte sobre foto - Wikimedia Commons e Atlas FGV

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Dá-se o nome de Nebulosas às manchas esbranquiçadas vistas aqui e ali por todo o céu – (Delaunay, tradução livre), epígrafe da primeira parte do poema Nebulosas

 

A desconhecida autora de Nebulosas, único livro publicado pela poeta, escritora, tradutora, crítica literária e primeira jornalista brasileira Narcisa Amália de Campos (1852-1924), é leitura obrigatória para o Vestibular de 2026 da Fuvest. Publicado em 1872 pela renomada editora Garnier, o livro não apenas provocou uma celebração unânime de seu talento, mas também conquistou o reconhecimento de figuras proeminentes como Machado de Assis e o imperador D. Pedro II. Uma segunda edição foi lançada em 2017 pela Gradiva Editorial e a Fundação Biblioteca Nacional. Os 44 poemas originais dessa mulher, corajosa para a época, exploram temas femininos, uma conexão profunda com a natureza e seu compromisso social em defesa da abolição da escravatura. 

A escritora carioca, nascida em São João da Barra, aos 11 anos se muda com a família para Resende, também no Rio de Janeiro. Filha do poeta Jácome de Campos e da professora primária Narcisa Inácia de Campos, recebeu uma educação pouco comum às mulheres da época. Narcisa desponta porque segue um processo formativo diferente, aprende o francês, língua franca no século 19, e se profissionaliza. É na Gazetinha que inicia sua trajetória profissional, com funções de redatora, tradutora e revisora, colaborando também com outros jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo. Assim como Castro Alves, teceu críticas sociais, mas sempre com rigor literário.

O pesquisador da USP Lucas Viana Gregório a destaca como tradutora: “Um grande feito para a época”, em suas palavras. Ela traduzia muitas obras do original em francês, e isso a influenciou. Como conta o pesquisador, o livro Nebulosas traz epígrafes, ou seja, um texto que antecede os poemas, que, em sua opinião, é “um texto de influência, de inspiração para a obra da autora”, citando nomes como Victor Hugo, Martinez (de La Rosa) e vários outros escritores franceses para suas poesias. 

O próprio título, Nebulosas, que também intitula o primeiro poema, veio a partir de um livro de ciências em francês aplicado à astronomia, informa Lucas, autor de Ser negro e ser mulher no século XIX: a poesia de Luiz da Gama e Narcisa Amália, pesquisa realizada no âmbito da pós-graduação em Literatura Brasileira, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. 

Lucas Viana Gregório, pesquisador na área de Literatura Brasileira da FFLCH-USP - Foto: Reprodução/LinkedIn

Uma mulher além de seu tempo

Narcisa é uma mulher letrada que teve acesso à educação desde o início, e esteve inserida em um ciclo literário, intelectual e acadêmico de homens que estão pensando o Brasil, como aponta o pesquisador, que escolheu a autora como tema de sua pesquisa antes mesmo de saber sobre a escolha de seu nome para a Fuvest, e celebrou esse fato dizendo que isso a coloca em evidência para que todos possam conhecer sua obra. Segundo ele, existem poucos dados biográficos sobre Narcisa, “justamente por ela não ter sido muito estudada”, mas isso está mudando já que ela tem sido redescoberta agora no século 21, mesmo sendo uma autora do século 19. 

Como lembra o pesquisador, Narcisa se destaca por ser a primeira mulher a atuar profissionalmente no jornalismo brasileiro, mesmo que poucas pessoas saibam disso, inclusive dentro do próprio jornalismo. “Narcisa não é citada nas faculdades de Jornalismo, muito menos nas faculdades de Letras. É uma pessoa que está muito esquecida, mas que fez algo realmente pioneiro e que desponta dentro do seu século”,  afirma. 

Ela consegue, como diz Lucas, ser publicada pela editora Garnier, de Machado de Assis, que já é reconhecido como um grande crítico literário, e que escreve palavras elogiosas sobre sua obra.  Além disso, acrescenta, consegue publicar um livro totalmente financiado durante o século 19, o que para o pesquisador é um grande feito já que mesmo durante todo o século 20, as mulheres, mesmo no Modernismo, tiveram muitas dificuldades de publicarem livros, por serem mulheres. 


Narcisa Amália de Campos, poeta, escritora, tradutora, crítica literária e primeira jornalista profissional brasileira - Foto: Wikimedia Commons

Mas como uma mulher consegue integrar um ciclo literário predominantemente masculino? Para o pesquisador isso é possível por conta de duas pessoas: Jácome de Campos, seu pai, que não é um poeta muito conhecido, mas que se relacionava com muitas pessoas do ciclo literário carioca e, valendo-se disso, começa a introduzir a filha nesse lugar de poetas, escritores e pensadores; e Pessanha Póvoa, jornalista, advogado, político e poeta, também pouco conhecido, que assina o prefácio da primeira edição de Nebulosas, na qual escreve: “Seu estilo vigoroso, fluente, acadêmico, a riqueza das rimas, tão eufônicas, tão reclamadas e necessárias ao verso lírico, suas convicções, falando à alma e à imaginação, justificam a sua já precoce celebridade, confirmam a sua surpreendente e rápida aparição, precedida do respeitoso coro da crítica sincera e grave”.

Influências abolicionistas

Seu primeiro e único livro, Nebulosas, foi lançado quando Narcisa tinha apenas 20 anos. “Então, muito provavelmente, Nebulosas é um conjunto de poesias que ela escreveu durante a adolescência, início da juventude. E aí lembra muito a história de Gonçalves Dias com Primeiros Cantos, e Castro Alves com Espumas Flutuantes”, informa Lucas. Segundo ele, Narcisa segue na toada de poetas românticos que publicam muito cedo. 

Uma das partes do livro é mais abolicionista e republicana. “Republicana no sentido de desejo à república e não no sentido partidário que temos hoje”, explica o pesquisador. “Narcisa era contra o Império e a favor da República, e contra a escravidão e a favor da abolição. Muito do que ela escreve é influenciado a partir dessa geração abolicionista que surge no final do século 19”, diz.  

Quanto às influências, são claras: “Narcisa lê Gonçalves Dias e lê Castro Alves, nomes consolidados na literatura brasileira, que ela traz como epígrafes da sua obra. “Nós conseguimos ver até semelhanças nas poesias”, diz o pesquisador. “Narcisa também escreve na imprensa sobre problemas sociais do Brasil, sobre as pessoas negras e, principalmente, sobre as mulheres, o que também influencia em sua obra”, informa, acrescentando que ela própria descreve o livro como fruto da geração à qual pertence. 

Narcisa era contra o Império e a favor da República, e contra a escravidão e a favor da abolição. Muito do que ela escreve é influenciado a partir dessa geração abolicionista que surge no final do século 19.”

“É o único livro da Narcisa, talvez por escolha e também talvez por questões do período, e até por dificuldades que ela encontrou na vida”, comenta. Uma curiosidade sobre sua vida: ela se divorciou duas vezes, o que é raro no século 19, período em que o divórcio ainda tinha que ser aprovado pelo Vaticano. Um de seus maridos, Francisco Cleto da Rocha, era escritor, e ao lado de outros escritores famosos, passaram a menosprezar e difamar a obra dela. Ela precisou deixar a cidade e parou de escrever. Mas ela continuou na imprensa. 

“Narcisa é mais jornalista do que poeta, se formos colocar nesse sentido. Ela publica Nebulosas, alcança um sucesso interessante, mas ela se dedica mais à imprensa, publicando muitos artigos que ainda estão espalhados por aí e precisam ser encontrados. Não existe hoje uma coletânea sobre a imprensa da Narcisa; além desse livro de poesias, existem apenas dois ou três livros sobre ela e uma pequena biografia”, cita.


Capas de edições do livro Nebulosas - Foto: Reprodução/Editoras

 

Romântico por essência

Nebulosas é um livro romântico por essência, como define o pesquisador. “E ele é um livro que faz sentido no seu contexto da época. E que está dentro do Romantismo, movimento literário pioneiro no Brasil no sentido de trazer um fator brasileiro para a literatura.” O Romantismo tem a questão da depressão, do lirismo, do drama, da tristeza, do amor romântico, da morte, e também questões sociais, justamente por ser um movimento que quer exaltar sua pátria, abordando, por exemplo, o grande problema do século 19, que é o sistema escravocrata, como aponta o pesquisador. “Narcisa está inserida nesse meio, e seu livro representa muito bem isso”, afirma. 

O livro reúne 44 poemas, divididos em três partes. A primeira parte é de um só poema chamado também de Nebulosas, muito importante, segundo o pesquisador, para entender a obra da autora. “É esse poema que dispara o tom da lírica da Narcisa, uma lírica mais escura no sentido do anoitecer, porque as nebulosas só surgem à noite. É uma poesia triste”, declara. Como disse a escritora Norma Telles em seu livro Encantações, a musa de Narcisa é triste, lembra o pesquisador.

Por isso Nebulosas é um livro romântico na sua essência”, ressalta o pesquisador. “Quando a gente lê Nebulosas, lembra muito a leitura de Primeiros Cantos, de Gonçalves Dias, a Lira dos Vinte Anos, de Álvares de Azevedo, Espumas Flutuantes, de Castro Alves, enfim, outros escritores que têm uma estética muito parecida."

A segunda parte do livro, com seus 27 poemas, é o momento mais romântico, ou “ultrarromântico” da Narcisa, informa Lucas. As poesias abordam temas como a saudade da infância e a exaltação da natureza, muito comuns aos românticos, como explica. “São poemas muito bonitos da Narcisa, que ela dedica a Resende, ao Pico Itatiaia, também no Rio de Janeiro,  e que ela admira, escrevendo lindamente sobre esses lugares”. Fala também do amor, não necessariamente um amor destinado a um amado, e sim à amiga, à mãe, já que a presença feminina na obra de Narcisa é muito importante segundo o pesquisador.

A parte final, com 16 poemas, é caracterizada como seu momento mais abolicionista e republicano, além de homenagear figuras que marcaram a sua história: “ela escreve para o pai, para o Pessanha e para todos que estão dentro do círculo dela”. Como descreve o pesquisador, “Narcisa é uma poeta condoreira da terceira geração do romantismo”, ou seja, que utiliza a produção literária como instrumento de denúncia às injustiças sociais, sobretudo à escravidão.


Narcisa Amália conseguiu integrar um ciclo literário predominantemente masculino - Foto: Instagram/Brasil Imperial

 

A “poeta dos livres”

Narcisa ficou conhecida como a “poeta dos livres”, justamente por causa dessa terceira parte do livro, que é abolicionista, conta o pesquisador. “A poesia da Narcisa é uma poesia libertária, mas que não necessariamente gerou libertação, como aponta Lucas, alertando que é preciso ter muito cuidado com esse título. O pesquisador diz que Narcisa esteve frente aos debates raciais, debates históricos sobre a escravatura, e está nesse grupo de poetas românticos que veem de longe – não à toa a ave do Condor representa essa geração – e de longe aborda a abolição. Ele lembra de um poema da obra, chamado O Africano e o Poeta, em que ela traz justamente essa relação entre o poeta que escreve sobre a escravidão e a pessoa que a sofre.

Diferente de outros escritores, como Luiz Gama, que surgiram na época, Narcisa não atua na linha de frente, mas na questão de querer abolir a escravatura. “Ela publicou muito na imprensa, mas a ação dela ficou circunscrita a esse espaço literário e da imprensa jornalística”, explica. E reitera: “ela recebeu esse título por escrever muito sobre a questão da liberdade das mulheres, das pessoas negras e de qualquer pessoa que sofresse algum tipo de opressão no Brasil naquele momento”. Então, sim, ela é a “poeta dos livres”, mas esse título não representa a totalidade de sua obra, porque pode reduzir Narcisa a um só lugar: como escritora do abolicionismo, o que não é o caso, já que seu repertório é mais amplo.

Grande repercussão

Segundo o pesquisador, o livro recebeu uma repercussão positiva, “justamente por ser publicado por uma editora famosa”. Ela conquistou o público literário do Rio de Janeiro e teve boas críticas de Machado de Assis, que na época escrevia para a revista de literatura Semana Ilustrada, e na ocasião disse: “Nossa, olha, a poesia da Narcisa é muito boa, mas fico surpreso de ser uma mulher escrevendo isso”, e mesmo falando que “a obra é muito interessante, de um lirismo bom, “tristemente” indica o livro para outras senhoras, como explica Lucas. 

Narcisa também é reconhecida pelo imperador D. Pedro II, que a indica à Lira de Ouro, uma premiação do Império aos artistas brasileiros, criado como forma de reconhecimento e fomento à arte no Brasil. “Ela recebe a premiação em um baile, nos padrões parisienses, já que o Brasil se inspira muito em Paris, e é considerada uma princesa das Letras”, relata.

O pesquisador ressalta que poucos escritores recebiam destaque na sua primeira publicação. “Não é à toa que a Fuvest escolheu a Narcisa, porque ela foi sim, em sua época de publicação, uma escritora muito reconhecida”, afirma. 

Para o pesquisador, ela cai no esquecimento porque aquela geração que a reconheceu morre, e ela também morre em 1924 – paralítica por conta do diabetes e de várias outras doenças que desenvolve, esquecida no interior do Rio de Janeiro. Narcisa acaba não participando da Semana de 22 e sobre isso Machado de Assis disse: “Não vamos considerar estes escritores”, se referindo aos escritores do século 19. 

Enquanto mulher, já é apagada desse ciclo, entra no ostracismo assim como muitos outros escritores de seu tempo, e, até por conta dessa tendência moderna do século 20 de recusar o antigo e aderir ao novo, fica esquecida, como cita o pesquisador.

Por que ler Narcisa?

Ainda hoje o livro de Narcisa é muito importante, destaca o pesquisador. “Na minha pesquisa eu associo muito à Narcisa. E em sala de aula sempre pergunto: por que ler Narcisa Amália? Atualmente no Brasil, que em sua maioria é negro e feminino, precisamos voltar à história e mostrar que as mulheres, sim, fizeram parte da formação deste País, da formação acadêmica e literária”, ressalta Lucas. 

E como Nebulosas entrou na lista obrigatória da Fuvest, é preciso tomar um certo cuidado com a internet, alerta o pesquisador. Infelizmente, há pouca produção acadêmica sobre a autora, e, quando você lança o nome dela nas redes – e aqui o pesquisador abre um parêntese para dizer que ele pesquisa a autora desde 2021 -, não existem muitos textos sobre ela. “Lá em 2021, você encontrava algum artigo ou algum texto de aluno de graduação”, afirma. Hoje, diz, já é possível achar mais textos, mas esses são muitos generalistas. E qual a dica do pesquisador: ler toda a obra da Narcisa para a prova do vestibular.

Dicas para os vestibulandos

Alguns poemas são muito importantes e considerados estratégicos pelo pesquisador da USP Lucas Viana Gregório na leitura da obra de Narcisa Amália. O primeiro poema, Nebulosas, dá o tom da lírica da autora e é uma figura poética que a própria Narcisa utiliza para explicar a sua poesia: “é uma figura que é difusa e obscura, que só surge à noite, e, de alguma forma, – eu faço um parênteses porque é só uma hipótese da minha pesquisa, mas não necessariamente é de fato uma interpretação consolidada sobre a Narcisa – as Nebulosas, em certo imaginário, representam as mulheres do século 19”, relata Lucas, acrescentando que, dentro da poesia, Narcisa fala que as nebulosas são esquecidas pela sociedade e que precisam de proteção. 

Um outro poema que o pesquisador destaca é Invocação, em que a autora fala sobre a dificuldade de ser mulher escritora, tema esse que ela não aborda muito em sua obra poética, e sim na imprensa. “Ela diz que quando quer publicar algo, essa palavra mulher aparece como empecilho para ela.”

Outros dois poemas importantes, que trazem a natureza e a exaltação à pátria, são O Itatiaia e A Resende, este último “introduz uma figura muito importante na análise da Narcisa, que é a peregrina”. O pesquisador lembra que o poema começa com o seguinte verso: “do meu peregrinar cansada”. “Então essa poeta que peregrina, que conhece, que anda, é uma figura muito importante para as mulheres no século 19 que publicam no mundo ocidental”. 

Na última parte do livro, o pesquisador indica a leitura de O Africano e o Poeta, que foi muito difundido, até mesmo musicalizado. “Se você pesquisar no Youtube ‘O Africano Hip-Hop’, vai encontrar uma dupla cantando essa música”. Para ele, esse poema representa bem a poesia abolicionista de Narcisa. 

O pesquisador ainda dá outras dicas, como ler a edição atual de Nebulosas, da Penguin e Companhia das Letras, que traz prefácio e pós-prefácio da pesquisadora Anna Faedrich, grande estudiosa da obra de Narcisa Amália. E, por fim, para que os vestibulandos leiam Narcisa com um dicionário do lado, já que o vocabulário da autora é muito complexo.

fonte: https://jornal.usp.br/universidade/livros-da-fuvest-2026-nebulosas-reune-poemas-abolicionistas-e-romanticos-marcados-por-critica-social/


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