Quase lá: Pepe Mujica: Minha geração cometeu um erro ingênuo

O falecido militante histórico uruguaio José “Pepe” Mujica argumenta que o capitalismo não se resume apenas as relações de propriedade, mas um conjunto de valores culturais que a esquerda deve confrontar com uma cultura de solidariedade.

Tradução
Cauê S. Ameni
JACOBIN

O falecido militante histórico uruguaio José “Pepe” Mujica argumenta que o capitalismo não se resume apenas as relações de propriedade, mas um conjunto de valores culturais que a esquerda deve confrontar com uma cultura de solidariedade.

 
 pepe mujica

Minha geração cometeu um erro ingênuo. Acreditávamos que a mudança social era apenas uma questão: desafiar os modos de produção e distribuição na sociedade. Não entendíamos o imenso papel da cultura. O capitalismo é uma cultura e devemos responder e resistir a ele com uma cultura diferente. Em outras palavras: estamos em uma luta entre uma cultura de solidariedade e uma cultura de egoísmo.

Não estou falando sobre a cultura que é vendida, como música ou dança profissional. Tudo isso é importante, claro, mas quando falo de cultura, estou me referindo às relações humanas, ao conjunto de ideias que regem nossos relacionamentos sem que percebamos. É um conjunto de valores tácitos que determinam a maneira como milhões de pessoas anônimas ao redor do mundo se relacionam.

O consumismo faz parte dessa cultura. É uma ética necessária ao capitalismo em sua luta pela acumulação infinita. O pior problema para o capitalismo seria pararmos de comprar ou comprarmos muito pouco ou apenas o necessário. Isso gerou a cultura consumista que nos envolve. Um sistema social capitalista não se resume apenas a relações de propriedade; é também um conjunto de valores comuns à sociedade. Esses valores são mais fortes do que qualquer exército e são a principal força que mantém o capitalismo vivo hoje.

Minha geração acreditava que mudaria o mundo tentando estatizar a mídia e a distribuição, mas não compreendemos que no centro dessa batalha deve estar a construção de uma cultura diferente. Não se pode construir um prédio socialista com pedreiros capitalistas. Por quê? Porque eles vão roubar a armadura, vão roubar o cimento, porque só querem resolver seus próprios problemas, porque é assim que somos formados. Minha geração, racionalista com uma visão programática da história, não compreendeu que os humanos muitas vezes decidem com a intuição e então sua consciência constrói argumentos para justificar as suas decisões. Escolhemos com o coração, e aqui a cultura se torna uma questão vital porque tempera nossa irracionalidade.

“Significa viver como se pensa. Caso contrário, acabamos pensando como vivemos. A luta é por uma sociedade autogerida, para aprendermos a ser nossos próprios chefes e a liderar nossos projetos comuns.”

Por exemplo, o que aconteceu com nossos líderes de esquerda? Líderes de esquerda estão doentes e imersos nessa mesma cultura e é por isso que, muitas vezes, seu modo de vida não é uma mensagem coerente com sua luta. Veja, eles disseram que eu era pobre quando era presidente, mas não entenderam nada! Eu não sou pobre. Pobre é aquele que precisa de muito. Meu objetivo é ser estoico. E o fato é que se o mundo não aprender a viver com uma certa sobriedade, a não esbanjar e não desperdiçar, se não aprender isso logo, nosso próprio mundo não sobreviverá.

A ânsia por dinheiro nos incita a continuar comprando coisas novas, mas sustentar a vida do planeta significa que precisamos aprender a viver com o necessário e não desperdiçar nossos recursos. Agora, como você pode ver, essa luta é uma epopeia cultural. Nós, da esquerda, precisamos construir uma linha de pensamento diferente da que temos.

Isso significa abandonar nossa conexão com o capitalismo. Acabamos ficando sem criatividade em termos de ideias. Queríamos fazer o mesmo que o capitalismo, mas com mais igualdade. E, no fim das contas, tudo isso tem a ver com o que consideramos ser uma vida boa, os valores que podemos valorizar na vida, as coisas às quais podemos aspirar. Significa ter noção de limites. Nada demais, como diziam os gregos.

A esquerda deve ser fiel a outro conjunto de valores e é por isso que insisto no problema da cultura, no problema do comprometimento e no problema de valorizar certas áreas da vida que o capitalismo não valoriza. Há muita tristeza em nossas sociedades, mesmo que sejam ricas em riqueza. Somos um povo superalimentado, mas sufocados pela quantidade de lixo que criamos. Infestamos tudo, compramos coisas que não precisamos e depois vivemos em desespero pagando contas. Precisamos propor outra forma de vida! Para mim, a esquerda precisa ser mais revolucionária do que nunca.

“A esquerda terá que ser diferente porque o tempo muda. A única coisa permanente é a mudança.”

Significa viver como se pensa. Caso contrário, acabamos pensando como vivemos. A luta é por uma sociedade autogerida, para aprendermos a ser nossos próprios chefes e a liderar nossos projetos comuns. Essas coisas terão que ser discutidas por uma nova esquerda. Acredito na existência permanente da esquerda, mas ela não será a esquerda que era. O que era se foi, passou! A esquerda terá que ser diferente porque o tempo muda. A única coisa permanente é a mudança.

Não vou sugerir obstáculos à criação de novos programas revolucionários. Pelo contrário! Mas também não tenho uma fórmula mágica. Parece-me que a criatividade deve ser incentivada, porque vivemos num mundo com uma esquerda velha que vive só de nostalgia, uma esquerda que tem dificuldade em perceber por que falhou e tem grande dificuldade em imaginar novos caminhos a seguir. Acredito que este é um momento de muito ensaio, muita experimentação e criatividade. E para isso existem alguns parâmetros que podemos seguir, porque, como eu disse, a minha geração não deu importância suficiente à cultura. Refiro-me à cultura inerente às relações comuns e ordinárias que as pessoas têm, que, sob o capitalismo, os usa na vida cotidiana apenas para garantir maior acumulação.

A cultura na qual estamos inseridos – e praticamente cercados – serve apenas para a multiplicação do lucro individual. E essa cultura é muito mais forte do que exércitos, poder militar e tudo o mais, porque essa cultura determina os relacionamentos permanentes de milhões de pessoas comuns no mundo todo.

E isso é muito mais forte que a bomba atômica! Portanto, mudar um sistema sem enfrentar o problema da mudança cultural é inútil. Precisamos construir um novo sistema e, paralelamente, uma nova cultura, uma nova ética, porque, caso contrário, o que vimos com a União Soviética acontecerá novamente, onde um movimento revolucionário deu uma volta de 360 ​​graus para estar no mesmo lugar — só que hoje isso seria muito pior! Temos que aprender com essa derrota, certo?


Adaptado do livro Sobrevivendo ao século XXI, de Noam Chomsky e José Mujica, lançado pela editora Civilização Brasileira em 2024.

 

Sobre os autores

 
José Mujica

foi um revolucionário e estadista uruguaio que serviu como presidente de 2010 a 2015.

 

fonte: https://jacobin.com.br/2025/05/minha-geracao-cometeu-um-erro-ingenuo/

 


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