Quase lá: Maternidade ainda é fator de desigualdade para as mulheres cientistas

De acordo com dados do movimento Parent in Science há cada vez mais evidências de que a maternidade ainda é um dos principais fatores de desigualdade na trajetória de mulheres na ciência.

 Publicado: 09/05/2025 às 15:45     Atualizado: 12/05/2025 às 8:27


A professora Cibele Russo se diz realizada em ser mãe Foto: Arquivo Pessoal

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De acordo com dados do movimento Parent in Science há cada vez mais evidências de que a maternidade ainda é um dos principais fatores de desigualdade na trajetória de mulheres na ciência. “Não são só os seis meses de licença maternidade. Já há estudos que mostram que o impacto da maternidade na carreira acadêmica da mulher pode durar cerca de cinco anos”, conta a professora Cibele Russo, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos, que é mãe de Rafael, de 9 anos, e Viviana, de 6. Formada no próprio instituto onde exerce a docência atualmente, ela passou a viver na pele o problema.

Mesmo em um contexto de parentalidade coparticipativa, com o pai presente e atuante, Cibele aponta que os efeitos diretos da maternidade na carreira recaem sobre as mulheres. Um exemplo foi o que ela vivenciou ao solicitar uma bolsa de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). “O avaliador escreveu: ‘Ela teve filhos e agora está retomando a produção científica’. Uma justificativa misógina e profundamente preconceituosa”.

Para Cibele, esse tipo de avaliação escancara uma realidade que muitas mulheres vivem em silêncio: “É como se eu tivesse ficado anos em casa sem fazer absolutamente nada. E não é isso. Eu amamentei meus filhos por mais de dois anos, cuidei deles, dava aula, cumpria prazos de artigos, entregava relatórios, orientava alunos. Sim, a produção científica pode diminuir, mas o trabalho nunca parou”.

A mesma justificativa usada pelo CNPQ foi aplicada a outras mães pesquisadoras. Após repercussão do caso na imprensa, a deputada federal Erika Hilton propôs um projeto de lei para proibir critérios discriminatórios contra gestantes, puérperas, mães e adotantes nos processos seletivos de bolsas de estudo e pesquisa, bem como em editais de agências de fomento. A proposta foi sancionada pelo presidente Lula no mês passado.

Equilibrando pratos

A trajetória de Cibele Russo no ICMC teve início em 2001, quando ingressou como aluna do Bacharelado em Matemática Aplicada e Computação Científica. De lá para cá, construiu uma carreira acadêmica consistente: concluiu o mestrado no próprio Instituto, obteve o doutorado em estatística pelo Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP e, em 2011, foi aprovada em concurso para docente do ICMC, onde hoje leciona, orienta e desenvolve pesquisas na área de estatística aplicada.

Desde criança, a professora Cibele Russo sonhava em ser mãe. Criada em uma família grande, com três irmãos e memórias afetivas que moldaram esse desejo, ela nunca duvidou de que teria filhos. O que não imaginava era o tamanho do impacto que esse sonho teria sobre sua carreira científica

A maternidade, embora sempre fizesse parte dos seus planos, só se tornou uma possibilidade concreta em 2015, após seu retorno de um estágio de pesquisa no Erasmus Medical Center, em Roterdã, nos Países Baixos. “Fui postergando esse desejo até me sentir mais estabelecida na carreira”, conta. O primeiro filho nasceu no ano seguinte.

Mesmo durante a licença-maternidade, Cibele se viu dividida entre as exigências da vida acadêmica e os cuidados com o bebê. “A carreira continuava acontecendo em paralelo. Os nossos orientandos têm prazos para entregar trabalhos, para defender, os artigos têm datas-limite. Não dava para simplesmente parar”, relembra. Ela amamentou o filho Rafael até os dois anos e a filha Viviana até os dois anos e meio, conciliando a rotina de mãe com reuniões, revisões de artigos e avaliações: “Não é só o cansaço físico, é o mental, o emocional. A sobrecarga se acumula em todos os níveis”.

Sem familiares por perto em São Carlos, a professora encontrou na creche da USP um dos pilares que tornaram possível seguir trabalhando. “É uma creche de excelência, com período integral, alimentação de qualidade e todos os cuidados que a gente pode imaginar. Foi essencial para mim”, comenta.


“Meu filho adora ver meu canal no YouTube, onde dou aulas de estatística. Às vezes, quando me reconhecem na rua, ele fica todo orgulhoso”, declara a professora Cibele | Imagem: Arquivo Pessoal

 

Embora os filhos já estejam maiores e não dependam dela em tempo integral, a rotina de Cibele continua exigente. Ela precisa conciliar diferentes frentes de organização diária: a agenda profissional, os compromissos escolares e médicos das crianças e, por fim, a sua própria, que frequentemente fica em segundo plano: “Quando dou aula à noite, é especialmente difícil sair de casa e deixá-los. Mas a gente se adapta. E eles também”.

Ciência e filhos no mesmo quintal

Se por um lado a maternidade impôs desafios para a carreira da professora Cibele, por outro ela também inspira. Em 2018, por exemplo, ela criou o projeto Ensino de Estatística para Crianças, realizado na creche da USP São Carlos, onde executou alguns jogos. “Tem uma coisa que as crianças conseguem fazer antes mesmo de se alfabetizarem, que é medir o comprimento do palmo da mão. E, a partir disso, a gente consegue fazer uma coleta de dados com crianças”, explica.

No ano passado, Cibele levou uma aula de probabilidade para a turma do terceiro ano do ensino fundamental da turma do filho. “Eu ensinei noções de incerteza, de probabilidades. Foi mágico ver o encantamento das crianças com conceitos tão simples e, ao mesmo tempo, tão poderosos”.

Resistência cotidiana

Com uma produção acadêmica que inclui mais de 514 citações, ela atualmente integra a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) da USP, buscando atuar para mudar as desigualdades estruturais dentro da academia. Recentemente, o ICMC passou a contar com fraldários nos banheiros, tanto femininos quanto masculinos. Apesar de todas as dificuldades, Cibele segue firme em seu trabalho, atuando também como divulgadora científica. Ela tem um canal no YouTube onde ensina estatística e ciência de dados. “Meus filhos já têm orgulho. Quando alguém me reconhece na rua e diz que assiste às minhas aulas, meu filho fica todo contente. E isso me emociona”.

Ela se orgulha da própria trajetória, mas reforça que esse caminho não deveria ser solitário nem tão penoso para outras mulheres: “A maternidade não pode ser um fardo dentro da ciência. Somos diferentes dos homens, temos desafios distintos. Por isso mesmo, precisamos de políticas específicas e de acolhimento real. A mulher pode estar onde ela quiser, inclusive sendo mãe e cientista”.

Dados que não mentem, realidades que não mudam


“A maternidade não deve impedir a nossa presença e liderança na ciência”, afirma a professora Cibele. | Imagem: Arquivo Pessoal

 

O relato da professora Cibele Russo é respaldado por um crescente corpo de pesquisas que escancaram o impacto desproporcional da maternidade na carreira científica das mulheres. Um deles, publicado na Nature Humanities and Social Sciences Communications, em 2023, revelou que “o viés de gênero é predominante na ciência, especialmente nas áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática, onde a presença das mulheres diminui acentuadamente durante a carreira acadêmica”.

Conhecido como “efeito tesoura”, esse fenômeno mostra que a maioria das mulheres deixa a carreira acadêmica, sendo um dos motivos os relacionados com a maternidade. “Os dados mostram que o impacto da maternidade na ciência é concreto, mensurável e persistente. Não é uma percepção subjetiva. É um desequilíbrio estrutural que precisa ser reconhecido e compensado pelas instituições e agências de fomento”, afirma a professora Fernanda Staniscuaski, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do Parent in Science.

O projeto Parent in Science surgiu em 2016 de uma iniciativa da bióloga Fernanda Staniscuaski | Imagem: Arquivo Pessoal

Desde a criação do movimento, um dos avanços mais importantes, segundo Fernanda, foi justamente romper o silêncio e normalizar o debate sobre os desafios enfrentados por mães que atuam na ciência. Outro passo significativo foi alcançado em 2021, quando passou a ser possível sinalizar oficialmente os períodos de maternidade no currículo Lattes. Em 2023, foi a vez da Plataforma Sucupira, um sistema nacional para avaliação dos cursos de pós-graduação, aderir a essa possibilidade.

Fernanda finaliza: “Sempre foi possível ser mãe e cientista, mas isso costumava ter um custo muito alto. O que queremos é que isso se torne possível de maneira mais leve e mais justa. Estamos mostrando, especialmente para as meninas e jovens pesquisadoras, que sim, é possível. Ainda vai exigir esforço delas, mas acredito que estamos avançando rumo a um sistema mais justo e acolhedor”.

Com texto de Gabriele Maciel, da Fontes Comunicação Científica; Edição de Antonio Carlos Quinto

Mais informações: Assessoria de Comunicação / Seção de Apoio Institucional no Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação – ICMC
(16) 3373-9666 (com Whatsapp)

 

fonte: https://jornal.usp.br/diversidade/maternidade-ainda-e-fator-de-desigualdade-para-as-mulheres-cientistas/

 


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