Primeira pessoa não-binária a conseguir a retificação de gênero em uma ação judicial individual no Distrito Federal, o ator, drag queen e humorista brasiliense Gahbi marca sua estreia em novelas, em Elas por Elas, produção das 18h na Globo
O ator, drag queen e humorista Gahbi marca sua estreia em novelas, em Elas por Elas, com o personagem Polvilho, braço direito da protagonista Renée (Maria Clara Spinelli). Brasiliense, ele é a primeira pessoa não-binária a conseguir a retificação de gênero em uma ação judicial individual no Distrito Federal, em processo iniciado no ano passado.
Aos 35 anos e sem se limitar a nenhum pronome de tratamento, Gahbi está realizando um sonho de infância. "Sempre fui noveleiro de carteirinha. A minha primeira vivência de dramaturgia foi assistindo televisão e tinha esse desejo muito forte em mim de trabalhar nessa linguagem", conta ele, que faz dois tipos de stand-ups, um como drag queen e outro de "cara limpa".
Para Gahbi, que se identifica como artista não-binárie, estar em uma novela da Globo traz uma sensação de alegria e de vitória. "Isso acessa o Gabriel lá de trás, da infância e da adolescência, de 1988, que não via na televisão dos anos 90 uma representatividade afirmativa", afirma. Ele explica que sentia falta de assistir nas ficções a história de pessoas como ele. "Havia personagens, em sua maioria, construídos de forma debochada e pejorativa. Então, há um fato muito significativo aí. Acredito que estamos vivendo um tempo de reeducação enquanto sociedade, e isso é resultado de um processo histórico excludente. A gente se reeducar é uma necessidade urgente porque está diretamente ligada à preservação da vida de grupos marginalizados", defende o ex-morador da Asa Norte.
Formado no bacharelado e na licenciatura em letras pela UnB, Gahbi trabalhava como professor de língua portuguesa e estava com a “vida programadinha, uma tolice da juventude", segundo ele. Em 2010, veio o teatro, por meio do grupo de pesquisa da professora Sylvia Cyntrão. Depois do primeiro espetáculo, ele sentiu algo inédito que o conduziu às artes cênicas, também na Universidade de Brasília, junto com o mestrado em Literatura. Em 2013, fez mobilidade acadêmica para o Rio de Janeiro. "Era pra ficar seis meses, fiquei quase sete anos. Me graduei em atuação cênica pela UNIRIO e já estava inserido no mercado. Fazia a jornada dupla, típica do artista brasileiro, para me manter, trabalhando como ator e professor", explica.
Gahbi conta que, no final de 2019, veio a Brasília passar férias e rever os amigos e familiares. Logo surgiu a pandemia e ele se recolheu na casa dos pais, Vera e Carlos. Somente em 2022, voltou ao Rio. Com demandas de trabalho no audiovisual no Rio e em Brasília, segue na ponte aérea, lá e cá. Por aqui, gravou a série Réus, com direção da Cibele Amaral. No Rio, filmou o longa-metragem Mãe fora da caixa, com direção de Manuh Fontes.
Sob medida
O personagem em Elas por elas, que seria uma pequena participação, foi ganhando musculatura ao longo das gravações e tornou-se fixo. "Isso acompanha o movimento da minha carreira, não há nada meteórico até agora, é degrau a degrau com aprendizado e crescimento", declara Gahbi, que conquistou o trabalho após encontrar a diretora Amora Mautner em uma peça de teatro e perguntar a ela sobre oportunidades no audiovisual.
A personagem Polvilho não poderia estar mais sob medida. Afinal, Maria Clara Spinelli é a primeira atriz que passou pela transição de gênero a protagonizar uma novela no Brasil — inclusive, Renée também é trans. "Foi uma feliz coincidência do destino. Ganhei uma amiga. A Renée e o Polvilho se conectaram fácil, descobrimos ali uma cumplicidade muito boa. Além disso, achei muito sagaz e inteligente da parte dos autores, Alessandro Marson e Thereza Falcão, junto com a direção da Amora Mautner, de, nesse remake de Elas Por Elas, haver essa família. Quando se pensa em uma família dona de padaria em Niterói, o imaginário popular já vai direto para o mais tradicional, mas ali temos uma família diversa, chefiada por um homem negro e uma mulher trans, que acolhe os enteados como filhos", comemora.
Diversidade possível
Além de Maria Clara Spinelli, a ShiMenegat, também não-binárie, faz Renée jovem. Entretanto, a novela consegue fugir, acredita Gahbi, da armadilha do mercado de, muitas vezes, promover a dita inclusão pela via da exclusão, ao segregar, criando um pequeno reduto LGBT+ que restringe a ação e promove conflitos somente naquele pequeno território. "Nossos corpos não se resumem a alegorias da representatividade. Pelo contrário, o núcleo da Renée, aquela família e seus agregados, apresenta a diversidade de famílias, de pessoas com suas múltiplas qualidades e falhas, de cores e idades diferentes. Acredito que fala de uma diversidade possível", defende.
Para o artista, a TV Globo faz o Brasil ser reconhecido como o melhor produtor de novelas do mundo. "Mesmo com as novas linguagens, das séries do streaming, as novelas são obras enraizadas na cultura brasileira e, portanto, um espaço representativo do nosso país. Daí, ser artista não-binárie nesse território, apresentar meu trabalho e falar nos veículos de comunicação é ver que nossas narrativas, histórias, pautas e desafios podem ser apresentados", declara Gahbi. Ele, porém, não acredita que representa toda uma comunidade. "Somos plurais e hoje a representatividade também pode ser um risco, na medida em que o mercado expressa que a presença de um único indivíduo já é a democratização daquele espaço. No final das contas, a minha presença e de outras pessoas LGBTs fala de passos em avanço e diz mais sobre a abertura de um questionamento pro público e para o mercado audiovisual: e as outras pessoas? E as pessoas pretas, indígenas, PCDs, outras LGBTs, novas narrativas femininas, e os corpos gordos? Há ainda novos protagonismos e muita história a ser contada nas telenovelas", conclui.
Uma curiosidade: ao mudar sua identificação de gênero no cartório, Gahbi não alterou o nome, Gabriel. "É nome de anjo, e anjo não tem sexo", resume ele, que levanta bandeira contra a gordofobia por meio do movimento Corpo Livre. "É a possibilidade de se existir a partir do corpo que você está", conclui.