UMA ENTREVISTA DE

Daniel Finn

Simone de Beauvoir foi frequentemente ofuscada em vida por seu parceiro, Jean-Paul Sartre. Desde sua morte em 1986, no entanto, a reputação de Beauvoir como uma das pensadoras mais importantes do século XX e pioneira do feminismo moderno se consolidou.

O principal problema que Beauvoir enfrenta hoje é a incompreensão, e não a negligência. Grande parte dos comentários sobre a obra de Beauvoir ignora o diálogo com o marxismo em que ela se engajou. Beauvoir identificou as muitas maneiras pelas quais a opressão de gênero e classe estava interligada e enfatizou a necessidade de um amplo movimento emancipatório baseado em princípios socialistas.

Emma McNicol é pesquisadora do Centro Monash de Prevenção à Violência de Gênero e Familiar. Esta é uma transcrição editada do podcast Long Reads da Jacobin Radio. Você pode ouvir a entrevista aqui.


DANIEL FINN

Como a discussão sobre o trabalho e as ideias de Simone de Beauvoir foi afetada pelo que sabemos — ou talvez pelo que achamos que sabemos — sobre sua vida pessoal?

EMMA MCNICOL

Simone de Beauvoir é alguém com quem milhões de pessoas sempre se sentiram muito familiarizadas — alguém com quem se sentiram familiarizadas e, muitas vezes, talvez, alguém sobre cujas escolhas de vida as pessoas se sentem muito à vontade para comentar. Ela é provavelmente conhecida, antes de tudo, como a bela companheira do mais importante filósofo europeu de seu tempo, Jean-Paul Sartre — embora ela própria tenha sido uma filósofa muito engajada e diligente, mas isso tem sido realmente negligenciado.

“Simone de Beauvoir é alguém com quem milhões de pessoas sempre se sentiram muito familiarizadas.”

A negligência com Beauvoir como filósofa não é totalmente alheia ao sexismo. Questiona-se se a sociedade achou difícil demais aceitar a realidade de que uma mulher estava filosofando. E há implicações significativas quanto ao fato de termos supervalorizado sua vida em detrimento de sua obra. Sua obra não foi levada a sério como filosofia. Sempre soubemos muito mais sobre sua vida amorosa do que sobre sua obra e estamos muito mais familiarizados com imagens de seus escritos do que com os detalhes de sua acuidade e originalidade filosóficas.

Primeiro, seu corpus era visto principalmente como ficção, então ela foi celebrada como escritora. Quando finalmente foi reconhecida como filósofa, ou as dimensões filosóficas de sua obra foram notadas, acreditou-se que ela empregava jargões existencialistas e que isso era um eco da influência de seu parceiro, em vez de um engajamento original e sustentado com a história filosófica ocidental. Na realidade, Beauvoir era uma filósofa por direito próprio, e não uma sombra ou um eco das ideias de Sartre.

Um dos motivos pelos quais sabemos mais sobre sua vida do que sobre sua obra é que ela a narrou em uma ficção pseudoautobiográfica e a detalhou assiduamente em um livro de memórias em quatro partes. Ela não estava instrumentalizando sua vida diretamente para cultivar fama e sua própria mitologia, embora certamente o tenha feito. Ela brincou com sua vida e sua experiência vivida como material textual e filosófico. Suas preocupações literário-filosóficas desempenharam um papel e contribuíram para que os estudiosos não se envolvessem de forma cuidadosa, sistemática e empática com sua obra como filosofia.

Como se sabe, ela rejeitou o manto de filósofa, cedendo a Sartre. Ela insistia que “ele é filósofo, eu sou uma escritora”. Poderíamos dizer que ela desafiou nossas concepções sobre o que a filosofia é ou deveria ser. “O Segundo Sexo” é uma investigação filosófica — uma exploração do que significa ser mulher. E ela estava comprometida com uma forma de investigação literário-filosófica como fenomenóloga. Ela detalhava sua própria experiência vivida corporalmente como filosofia.

O Segundo Sexo é uma investigação filosófica — uma exploração do que significa ser mulher.”

Em alguns aspectos, não podemos dizer que nos concentramos em sua vida em vez de sua filosofia de forma simples, porque ela mesclava os dois e desafiava nossas ideias sobre o que era filosofia. Esta é, obviamente, também uma dimensão de sua práxis feminista. Ela compartilhava os detalhes do que, na época, era considerado uma vida altamente heterodoxa, livre e inspiradora.

Finalmente — e isso coincide perfeitamente com sua morte em 1986 — sua obra, desde então, tem sido tratada e reconhecida como filosofia. No início, no final da década de 1980, houve debates em análises acadêmicas sobre quem influenciava quem, e houve alguns estudos revisionistas feministas bastante contundentes, afirmando que o pensamento de Beauvoir era a base do livro de Sartre, O Ser e o Nada, por exemplo.

Hoje em dia, as coisas são um pouco mais comedidas. Não se trata de saber se ela extraiu todas as suas ideias dele ou se ele, de fato, copiou tudo o que ela pensava. Os analistas estão finalmente reconhecendo o fato de que a obra de Beauvoir surgiu em um meio literário-filosófico específico e estava influenciando e sendo influenciada por diversas obras de diferentes pessoas.

Hoje, os estudos sobre Beauvoir estão em pleno florescimento. Ela finalmente tem seu momento e é devidamente reconhecida como filósofa.

DF

Qual era o contexto político e intelectual em que ela se preparou para escrever O Segundo Sexo no final da década de 1940?

EM

O final da década de 1940 na França foi um período muito interessante. A geração de Beauvoir havia transitado diretamente da Segunda Guerra Mundial e da ocupação alemã para a Guerra Fria. As atrocidades da Segunda Guerra Mundial certamente influenciaram as obras de Sartre e Beauvoir. Eu conjecturaria que o contexto tornou a filosofia de Beauvoir singularmente sintonizada com uma relação dialética entre circunstância e liberdade. Em maio de 1949, ela começou a publicar capítulos isolados de O Segundo Sexo e, em seguida, publicou o texto em dois volumes completos.

Ela fazia parte do meio intelectual da Rive Gauche, referindo-se a um conjunto dinâmico e fluido de músicos, escritores, filósofos e artistas que bebiam, festejavam e compartilhavam ideias na Rive Gauche de Paris. E é importante esclarecer que Beauvoir e Sartre também eram firmemente de esquerda, o que significava que eram anticapitalistas e acreditavam apaixonadamente em uma alternativa socialista.

No entanto, Beauvoir e Sartre encontravam-se em uma posição política bastante precária. Eles dirigiam o periódico Les Temps Modernes (“Tempos Modernos”), que buscava ser neutro no contexto da Guerra Fria, ou seja, ser contra a segregação e o racismo nos Estados Unidos, mas também contra a apropriação indevida de Marx pelos stalinistas e os relatos que surgiam sobre os gulags na União Soviética.

Beauvoir e Sartre tinham uma relação muito complexa com o Partido Comunista Francês (PCF), o partido dominante. Beauvoir desconfiava da linha stalinista dura do PCF. O PCF também desconfiava de Beauvoir e Sartre, presumindo que eram intelectuais burgueses inúteis que não queriam sujar as mãos e que sua educação e preocupações os distanciavam perigosamente das preocupações da classe trabalhadora.

“Beauvoir e Sartre estavam tentando mobilizar e se envolver com aspectos menos deterministas do marxismo, reformulando e explorando como seria um marxismo não stalinista.”

No entanto, Beauvoir ainda considerava o PCF um mal menor do que o Ocidente capitalista e imperialista. Beauvoir explicou que compartilhava o horror do PCF diante de todas as coisas contra as quais lutava, embora enfatizasse que jamais poderia ser membra do partido. Sartre continuou a trabalhar com o PCF após a libertação, embora de uma forma que ele enquadrava como estando com o partido, mas fora dele — uma posição da qual ele oferecia tanto apoio quanto tecia críticas.

Na Tempos Modernos, Beauvoir e Sartre tentavam mobilizar e se envolver com aspectos menos deterministas do marxismo, reformulando e explorando como seria um marxismo não stalinista. O PCF considerou esse projeto extremamente arrogante.

Beauvoir viajou para os Estados Unidos em 1947 e escreveu um diário de viagem muito interessante, “America Day by Day” [Estados Unidos Dia a Dia]. Ela estava cada vez mais familiarizada com obras que abordavam a opressão racial. Beauvoir citou a obra “An American Dilemma” [Um Dilema Estadunidense], de Gunnar Myrdal (branco e sueco), e conversas com o romancista negro americano Richard Wright como fundamentais no desenvolvimento da estrutura e do argumento de “O Segundo Sexo”.

Devo fazer um comentário final sobre o contexto francês. Não se deixe enganar pelas introduções editoriais de “O Segundo Sexo”, que afirmam que o texto surgiu em um momento oportuno porque as mulheres tinham acabado de receber o direito de votar. As mulheres francesas lutaram por esse direito por muito tempo. E quando o governo de Charles de Gaulle finalmente lhes concedeu isso em 1944, foi como um presente por sua contribuição ao esforço de guerra, e não como um ato de reconhecimento de seu status como igualmente cidadãs.

Beauvoir escrevia em um contexto em que as mulheres francesas estavam envolvidas em trabalho remunerado fora de casa — as mulheres tendiam a trabalhar na agricultura antes da Segunda Guerra Mundial e depois em empregos de serviços mal remunerados após a guerra — mas a força de trabalho era estruturada em torno da suposição de que as mulheres eram, antes de tudo, mães.

De fato, no final da década de 1940, esperava-se que as mulheres, e fortemente incentivadas pelo Estado, abandonassem a força de trabalho para impulsionar a economia francesa empobrecida. Às mulheres eram oferecidos benefícios sociais e abonos de família que aumentavam com o nascimento de cada filho. Como Beauvoir argumentou em O Segundo Sexo, a ideia de mulheres como mães cuja vocação natural era o lar era uma dimensão central, imutável e implacável do imaginário francês.

DF

Qual foi a reação ao livro na época de sua publicação na França?

EM

O Segundo Sexo realmente tocou em um ponto sensível. Era extremamente provocativo. Foi rejeitado pela direita gaullista e católica, bem como pela esquerda comunista. Em 1963, Beauvoir refletiu que não se surpreendeu com a rejeição da direita pelo livro, mas ficou chocada com a dureza dos comunistas em relação a ele. Afirmou que sua tese devia tanto a Marx e lhe dava um lugar tão destacado, que esperava alguma imparcialidade do PCF.

Beauvoir lançou três dos capítulos provavelmente mais picantes, intitulados “Maternidade”, “Iniciação Sexual” e “A Lésbica”, causando choque, horror e escândalo antes mesmo de publicar os dois volumes completos. As resenhas comparavam consistentemente o texto à pornografia e à obscenidade, argumentando que o livro era completamente indecente e revoltante.

“Beauvoir atacou a moral burguesa e as normas francesas das quais os homens se beneficiavam diretamente.”

Pessoas de ambos os extremos do espectro político acharam isso repugnante. Era evidente que ela havia irritado algumas pessoas: havia a sensação de que, ao discutir a sexualidade feminina, ela estava dizendo algo que não deveria dizer e revelando os segredos sujos da França.

Não nos esqueçamos de que havia um sentimento de humilhação e masculinidade ferida entre os homens franceses da época. A França não foi apenas derrotada em 1940 — ela havia colaborado com a ocupação nazista. Havia um sentimento de vergonha e derrota após a guerra, que pareceu criar o que hoje poderíamos chamar de um momento tóxico de fragilidade masculina. O texto de Beauvoir pareceu esfregar sal nessa ferida.

Podemos entender por que os homens estavam furiosos. Beauvoir atacou a moral burguesa e as normas francesas das quais os homens se beneficiavam diretamente. Ela não estava apenas discutindo o que não se deveria discutir — a sexualidade feminina e a realidade de que as mulheres podem ter prazer sexual, que a maioria não tinha. Ela foi direta em seu ataque, apontando, por exemplo, que a ilegalização do aborto era extremamente hipócrita.

Curiosamente, o trabalho de Beauvoir sobre maternidade foi quase tão provocativo quanto seu trabalho sobre sexualidade feminina. Seu argumento de que a maternidade é basicamente uma farsa e que as mulheres são alimentadas com a mentira de que é seu destino natural ser mãe e amar isso, ao mesmo tempo em que são destituídas do controle e da vontade sobre essa escolha, foi muito mal recebido. Até jornalistas comunistas acusaram Beauvoir de desencorajar as mulheres a serem esposas e mães (embora não esteja claro se ela realmente fazia isso).

A maneira como Beauvoir abre o capítulo sobre a maternidade com uma defesa apaixonada do aborto ainda parece surpreendentemente corajosa, mesmo em 2023. Mesmo hoje, associamos o aborto à gravidez, mas ainda é considerado uma gafe temática enquadrá-lo e apresentá-lo tão diretamente ao lado do tema da maternidade.

No entanto, a visão generalizada de que o texto era revoltante é o que encontramos nas fontes históricas externas. Em outras palavras, estamos lidando com resenhas e artigos escritos pelos árbitros do que era considerado indecente, a maioria dos quais eram homens. E, no entanto, o primeiro volume de O Segundo Sexo foi imensamente popular, vendendo 22 mil exemplares na França na primeira semana de sua publicação. Essa popularidade e a influência histórica duradoura da obra nos mostram que, embora os árbitros da boa filosofia, da boa literatura ou da cultura francesa possam não tê-la abraçado, muitas mulheres o fizeram.

DF

Como O Segundo Sexo influenciou o desenvolvimento da teoria feminista no mundo anglófono?

EM

O Segundo Sexo é frequentemente comparado à Bíblia para sublinhar sua autoridade para a segunda onda do feminismo. Mas essa comparação tem algumas valências não intencionais, mas precisas. Assim como a Bíblia, as pessoas que possuem O Segundo Sexo frequentemente reconhecem, com culpa, que não o leram inteiro e que, em vez de leituras constantes e de ponta a ponta, conhecem trechos melhor do que a obra inteira. Isso sem nem mesmo entrar em detalhes sobre como esses trechos são usados ​​e abusados.

O Segundo Sexo é frequentemente comparado à Bíblia para ressaltar sua importância para a segunda onda do feminismo.”

Beauvoir também é frequentemente descrita como tendo sido fundamental no desenvolvimento da consciência feminista estadunidense. Aquelas que identificamos, não sem problemas, como autoras e ativistas-chave da segunda onda, como Shulamith Firestone, Kate Millett e Betty Friedan, deveriam reconhecer devidamente sua dívida beauvoiriana.

Betty Friedan, por exemplo, explicou que O Segundo Sexo a “levou a qualquer análise original da existência feminina com a qual eu pudesse contribuir para o movimento feminista e sua política singular”, referindo-se à sua obra de 1963, A Mística Feminina. Kate Millet, frequentemente descrita figurativamente como filha de Beauvoir, refletiu mais tarde na vida que então percebia que provavelmente estava vivendo uma mentira e devia muito ao que Beauvoir havia dito. Millet finalmente admitiu que sua análise de DH Lawrence era dolorosamente devedora da análise de Beauvoir em O Segundo Sexo.

Firestone, que já foi descrita como a Simone de Beauvoir estadunidense, dedicou A Dialética do Sexo a Beauvoir, embora seu argumento seja profundamente diferente do exposto em O Segundo Sexo. Judith Butler, que é provavelmente a teórica de gênero mais importante no Ocidente hoje, baseou-se pesada e explicitamente em Beauvoir em seu primeiro livro, Problemas de Gênero: Feminismo e a Subversão da Identidade, que apresentou a tese de que o gênero é performado, mantido e perpetuado por repetições iterativas.

O impacto de Beauvoir no mundo anglófono da teoria feminista não se limitou, é claro, aos Estados Unidos. Por exemplo, a escritora australiana Germaine Greer também atribuiu a O Segundo Sexo uma importante fonte em obras canônicas, como seu livro de 1970, A Mulher Eunuco. No geral, O Segundo Sexo apresentou uma abordagem extraordinariamente rica que foi incorporada à filosofia feminista.

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A declaração de Beauvoir em O Segundo Sexo de que não se nasce mulher, mas torna-se uma, é uma formulação extraordinariamente famosa, sugerindo que gênero é uma formação cultural e psicológica. Mas O Segundo Sexo não propõe, de fato, uma divisão entre sexo e gênero. Você provavelmente já ouviu a paráfrase popular de que “gênero é uma construção”, o que, na verdade, é uma abordagem equivocada da tese de Beauvoir.

É muito fácil encontrar evidências que sustentem uma leitura construcionista social do texto e alinhá-la a uma visão específica do programa crítico de Beauvoir — isto é, uma que demonstre que o discurso e as instituições patriarcais tornaram parcelas do ser humano em feminino. A poesia de Beauvoir explica como os mitos da feminilidade são recebidos pelo corpo e como a experiência corporificada reforça esses mitos femininos.

Em O Segundo Sexo, Beauvoir pergunta: “O que significou para mim viver como mulher?” Como fenomenóloga, ela pergunta: “O que significa viver como mulher neste corpo?”. Ao fazer essa pergunta, podemos creditá-la por ter inaugurado a fenomenologia feminista. Beauvoir também se baseou significativamente na ideia de alteridade ou do Outro de Hegel, à qual ela teve acesso originalmente por meio das palestras de Alexandre Kojève em Paris. Podemos ver a ideia da mulher como cidadã inferior e como alteridade em toda a teoria feminista atual.

Na introdução de O Segundo Sexo, Beauvoir promete explicitamente desafiar uma compreensão biológico-essencialista das mulheres, segundo a qual a anatomia é destino, ou através da qual poderíamos definir as mulheres em termos de um suposto corpo feminino. Beauvoir evita a noção de gênero como mera construção, bem como uma concepção biológica do que é ser mulher como ingrediente necessário para ser mulher. No contexto atual, O Segundo Sexo contém algumas refutações úteis ao feminismo radical trans-excludente, por meio de seus eficazes apontamentos contra o essencialismo biológico.

DF

Em um artigo para a Jacobin, você questionou muitas das críticas a Beauvoir e a O Segundo Sexo feitas por algumas feministas contemporâneas. Como você resumiria as principais linhas de crítica e, em sua opinião, como elas resistem a um exame mais aprofundado?

EM

O Segundo Sexo é frequentemente descartado como uma relíquia constrangedora de um feminismo branco ingênuo, cuja época já passou há muito tempo. É frequentemente visto como ultrapassado, tendencioso, démodé, racista, classista ou misógino. Há um consenso significativo entre as críticas anglófonas de que O Segundo Sexo é excludente quando se trata de mulheres negras, judias e da classe trabalhadora, e que certamente não é interseccional em sua abordagem.

De acordo com essa crítica anglófona à diversidade, O Segundo Sexo assume como tema mulheres brancas, heterossexuais e privilegiadas, que sofrem opressão apenas com base em gênero e não em classe, raça, orientação sexual ou outros fatores. A ideia de que Beauvoir e Sartre eram intelectuais burgueses, escrevendo apenas para seu próprio meio e pensando apenas em si mesmos e em seus amigos, é uma linha de crítica consistente que enfrentaram ao longo de suas vidas (e, ao que parece, posteriormente). Eram odiados pela direita e, ainda hoje, são frequentemente considerados burgueses, individualistas e privilegiados demais pela esquerda.

“A área em que Beauvoir é muito boa, enquanto as feministas anglófonas são, no geral, muito discretas, é a de classe.”

Na minha interpretação, porém, O Segundo Sexo é mais interseccional do que as críticas anglófonas admitem. A área em que Beauvoir se sai muito bem, enquanto as feministas anglófonas, em geral, são muito discretas, é a classe. Frequentemente nos dizem que O Segundo Sexo é incapaz de abordar as intersecções entre a opressão de raça e gênero ou a opressão de classe e gênero. No entanto, essa crítica nunca analisa de fato a opressão de classe. Nunca analisa o envolvimento de Beauvoir com Marx no texto.

O Segundo Sexo, na minha interpretação, é um texto muito mais voltado para a questão de classe do que a maioria das pessoas parece reconhecer. Acho que ele revela algo sobre a estranheza em relação ao comunismo e ao marxismo nesses círculos. As pessoas relutam em considerar o socialismo e até mesmo em explorá-lo analiticamente.

DF

Retomando esse ponto, como Beauvoir se envolveu com a tradição marxista da teoria social em O Segundo Sexo e em outras partes de sua obra?

EM

De certa forma, é útil refletir sobre a posição social curiosa e um tanto precária que um intelectual engajado ocupava na França naquela época. Eles estavam falidos demais para pertencer à classe média, mas a classe trabalhadora também podia desconfiar deles. Beauvoir e Sartre tinham uma relação muito complexa e problemática com o partido dominante da esquerda francesa e eram considerados burgueses demais para serem intelectuais comunistas de verdade.

No entanto, Beauvoir acreditava no marxismo. Ela afirmou que, depois de ler O Capital, “o mundo se iluminou com uma nova luz, quando vi o trabalho como a fonte e, por assim dizer, a substância dos valores, e nada jamais me fez negar essa verdade” (e ela era uma jovem mulher quando o leu). Ao longo de sua vida, ela insistiu que o marxismo foi uma enorme influência para ela, bem como para O Segundo Sexo.

No entanto, ela só se refere abertamente a Marx esporadicamente em “O Segundo Sexo”, embora tenha declarado que Marx exerceu uma influência fundamental sobre o texto. Sentimos a influência de Marx de forma mais explícita em seu estudo de 1970 sobre o escândalo de como tratamos os idosos sob o capitalismo industrial, intitulado “A Velhice”. Mas falemos especificamente de “O Segundo Sexo.

A primeira maneira pela qual vemos o marxismo de Beauvoir em evidência neste texto é através de seus envolvimentos diretos com a obra marxiana. Embora não haja muitas citações diretas, ela oferece uma leitura cuidadosa de Marx, o que permite um relato matizado da maneira específica como ser da classe trabalhadora e ser mulher se inter-relacionam.

“Nem Beauvoir nem Marx imaginaram exclusivamente a classe trabalhadora como sendo branca e masculina.”

No quinto capítulo da seção de história, ela enfatiza como as mulheres são exploradas de forma mais vergonhosa do que os trabalhadores do sexo oposto e fala sobre os resultados ambíguos da Revolução Industrial. Por um lado, as mulheres tiveram novas oportunidades, mas, por outro, a combinação de gênero e status de classe trabalhadora significou que elas foram exploradas de maneiras extremas.

Baseando-se em Marx, ela escreve sobre como as mulheres eram usadas principalmente em fiações e tecelagens, onde essas atividades eram realizadas em condições de higiene lamentáveis. Ela explica que ser mulher as expunha a formas específicas de precariedade no local de trabalho, incluindo a ameaça de violência sexual.

Essas passagens em que Beauvoir dialoga com Marx são importantes por uma série de razões. Primeiro, mostram que nem Beauvoir nem Marx imaginavam exclusivamente a classe trabalhadora como branca e masculina — embora ela tenha tido que procurar bastante para encontrar essas referências na obra de Marx; às vezes, ela cita notas de rodapé dele.

Em segundo lugar, nessas passagens, Beauvoir considerou a situação específica da mulher da classe trabalhadora. Ela descreve como as trabalhadoras são singularmente oprimidas pelo fato de serem mulheres. Elas são inexperientes em organização política, além de serem assediadas e abusadas sexualmente. Tendo sido socializadas na docilidade e na passividade, relutam em fazer valer seus direitos ou proteger seu bem-estar. Em outras palavras, é improvável que se sindicalizem.

As trabalhadoras também são oprimidas por serem da classe trabalhadora. Especificamente, ela explica como a crescente necessidade da mulher trabalhadora casada é explorada por seus astutos empregadores.

A análise feminista com consciência de classe de Beauvoir, na minha leitura, pode ser encontrada em O Segundo Sexo. Ela acusa a dona de casa burguesa de trair mulheres menos afortunadas do que ela. Ela enquadra o aborto como, antes de tudo, um crime de classe, observando que existem poucos assuntos em que a sociedade burguesa demonstra mais hipocrisia. Ela também ressalta, de forma sóbria e importante, que a experiência de uma mulher com o aborto depende inteiramente de suas circunstâncias financeiras e geográficas.

Além disso, Marx deu a Beauvoir a oportunidade e os recursos para vislumbrar o que ela chama de um mundo autenticamente democrático, permitindo-lhe imaginar um mundo de igualdade e libertação, sem exploração ou classes. Ele também a capacitou a compreender as relações sociais que colocam certos grupos em situações de dependência material que os tornam vulneráveis ​​— e frequentemente cúmplices — de sua própria alteridade e opressão.

A abordagem literário-filosófica de Beauvoir em sua ficção e ensaios é frequentemente historicista, materialista e fenomenológica, tudo ao mesmo tempo. Ela coloca em primeiro plano as relações sociais concretas e a questão de como nossos corpos interagem e vivenciam essas relações. Por fim, dado que Beauvoir entendia o colonialismo como uma forma particularmente flagrante de capitalismo, podemos razoavelmente associar seus escritos em apoio à independência da Argélia ao seu marxismo.

DF

Que efeito os problemas com a tradução tiveram na recepção de O Segundo Sexo entre os leitores anglófonos em particular?

EM

Existem duas traduções para o inglês de O Segundo Sexo. Comecemos pela primeira, de HM Parshley, de 1953, que é notoriamente ruim. Há uma série de problemas com ela. Para começar, Parshley era zoólogo, não filósofo, e lhe faltava a competência filosófica para lidar com uma tradução complexa, transcultural, filosófica e literária.

Ele também cortou cerca de 10 a 15% do texto original de Beauvoir, e sabemos, por uma carta que escreveu ao seu editor, que ele se orgulhava bastante disso. Como diversos estudiosos demonstraram, seus cortes não eram ingênuos nem inocentes. Ele frequentemente cortava material filosoficamente relevante, bem como várias diatribes apaixonadas de Beauvoir contra a misoginia. Em outras palavras, temos a impressão de que ele ficou um pouco abalado com parte do conteúdo feminista e o removeu.

Ele também cortou quase todas as referências ao feminismo socialista, o que significa que aqueles no mundo anglófono estão lendo “O Segundo Sexo” sem o marxismo de Beauvoir. Ele cortou os nomes de pelo menos setenta e oito escritoras, eliminando a rica variedade de vozes femininas que compõem o texto. “O Segundo Sexo” é como uma colcha de retalhos — é um arquivo de textos que Beauvoir reuniu a partir de tudo o que tinha à sua disposição.

Desde então, houve uma tradução de 2010 por Constance Borde e Sheila Malovany-Chevallier. Em um aspecto, esta tradução é superior à de Parshley, porque Borde e Malovany-Chevallier não cortaram nada. No entanto, o texto corre o risco de ter sido corrigido em excesso e ido um pouco longe demais na outra direção. É uma tradução muito literal, palavra por palavra — quase uma transposição. É claro que a arte da tradução envolve alguma forma de licença artística.

De muitas maneiras, a tradução inicial tornou Beauvoir um alvo fácil para críticas, roubando do texto sua profundidade, complexidade e textura filosóficas. O texto em inglês parece muito mais simplista e muito menos inteligente. É como se Beauvoir estivesse fazendo declarações amplas em vez de se envolver com textos e vozes de outras pessoas.

“A tradução inglesa inicial de O Segundo Sexo fez de Beauvoir um alvo fácil para críticas, roubando do texto sua profundidade, complexidade e textura filosóficas.”

Em primeiro lugar, quando Parshley cortou o conteúdo filosófico, isso significou que Beauvoir não era entendida como filósofa e o livro não era entendido como uma obra de filosofia. Ao cortar as referências ao feminismo socialista, ele removeu o contexto do marxismo de Beauvoir. A perda da textura literária e filosófica e da gama de interlocutores com os quais Beauvoir se relaciona significa que, muitas vezes, o texto parece estar legislando sobre a vida e apresentando afirmações estranhamente normativas.

O Segundo Sexo é uma obra de crítica literária, repleta de exemplos de outros textos. É quase polifônico. No entanto, muitos críticos anglófonos não perceberam esse aspecto do texto porque nenhuma das traduções o capta completamente. Beauvoir oferece descrições e exemplos de outros textos, não para endossá-los, mas para mostrar como as coisas são para aquela pessoa ou personagem específica naquele livro específico. Sem leituras cuidadosas e traduções robustas e confiantes, perdemos isso.

Acho que vimos muito dessa herança se manifestar, particularmente na literatura feminista anglófona inicial, explicitamente influenciada por Beauvoir. Por exemplo, muitas pessoas consideram “A Mística Feminina, de Friedan, a versão estadunidense de “O Segundo Sexo”. Mas é um tipo de texto muito mais superficial.

DF

Como pergunta final, para encerrar o assunto, quais temas e argumentos você diria que na obra de Beauvoir têm maior relevância para os debates que são conduzidos hoje?

EM

Em nossa atual atmosfera feminista hipercapitalista e consumista, falamos sobre raça, mas a classe está constantemente ausente. Por essa razão, acredito que a análise feminista-marxista de Beauvoir geralmente não é considerada relevante. Um dos motivos pelos quais as críticas ignoraram a presença de Marx em O Segundo Sexo e a compreensão mais ampla de Beauvoir sobre classe é que nosso atual clima de opinião anglo-estadunidense não considera todas as formas de exclusão com igual importância.

A crítica anglófona à diversidade enfatiza a exclusão racial como a lacuna fundamental de O Segundo Sexo. É obviamente muito importante focar no problema racial na obra de Beauvoir. Talvez, porém, essa não deva ser nossa única preocupação. Também podemos tirar muito proveito do exame das influências socialistas de Beauvoir.

“Beauvoir nos alerta explicitamente contra a tendência de enfatizar diferenças baseadas em identidade em detrimento da desigualdade gerada pelo capitalismo.”

Ao se apropriar de Marx em “O Segundo Sexo”, Beauvoir nos alerta explicitamente contra a tendência de enfatizar as diferenças identitárias em detrimento da desigualdade gerada pelo capitalismo. Ela observa que o principal resultado da união dos trabalhadores para se sindicalizar é fazer com que as diferenças de gênero entre eles pareçam menos contundentes.

Em seu relato, embora as mulheres descritas por Marx trabalhassem em condições deploráveis ​​e exploradas, elas não se viam como classe trabalhadora nem eram percebidas como tal por seus colegas homens até se filiarem ao sindicato. Ela argumenta que o ato de se sindicalizar promoveu uma consciência mais profunda da situação compartilhada de opressão entre as trabalhadoras, e que o problema era semelhante ao da força de trabalho negra nos Estados Unidos.

Segundo Beauvoir, as minorias mais oprimidas de uma sociedade podem ser usadas pelos opressores como arma contra a classe a que pertencem, sendo necessário desenvolver uma consciência mais profunda da situação para que trabalhadores negros e brancos, ou trabalhadores homens e mulheres, possam formar coalizões em vez de se oporem. Para Beauvoir, uma coalizão baseada em camaradagem e solidariedade não seria um movimento negro nem de mulheres, mas sim um movimento de trabalhadores inclusivo.

Em outras palavras, Beauvoir aponta que a classe capitalista pode enfatizar estrategicamente a percepção da diferença entre grupos, enquanto a colaboração política em busca da igualdade pode atenuar essa percepção. Podemos reconhecer nossa experiência compartilhada de exploração, e tal reconhecimento é tanto uma pré-condição quanto uma conquista da coalizão que ela almeja.

Podemos, sem dúvida, criticar O Segundo Sexo por negligenciar a experiência das mulheres negras (sem mencionar algumas das coisas terríveis que diz sobre as mulheres muçulmanas). Mas não devemos ignorar seu interesse pela situação das mulheres da classe trabalhadora. Já em 1949, ela identificou nossa tendência a nos atolar na política de identidade e esquecer a desigualdade de classes.

É importante ressaltar que ela enfatiza que a inclinação para ressaltar as diferenças de gênero e raça a ponto de obscurecer a desigualdade de classe é uma tática central da classe dominante. Na minha perspectiva, a análise feminista-socialista de Beauvoir tem uma relevância perene para o nosso tempo.

 

Sobre os autores

 

é editor adjunto da New Left Review. Ele é autor de "One Man’s Terrorist: A Political History of the IRA".

 
Emma McNicol

é pesquisadora do Centro de Prevenção de Violência de Gênero e Família de Monash.