Lia Zanotta Machado
Professora Titular do Departaento de Antropologia da Universidade de Brasília e Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher/UNB.

O pior que poderia ter acontecido à problematização da violência contra a mulher, aconteceu. Foi banalizada . Dela se pensa que tudo já se sabe. Pesquisas acadêmicas muitas vezes não recebem apoio financeiro dos pares, supondo que nada há de novo a investigar. Criou-se no imaginário social uma idéia de “mesmice”! E pior, a “mesmice” da violência contra a mulher, pensada como fazendo parte de nossos valores culturais , acrescida à idéia de que o nosso Estado não tem recursos suficientes para sustentar políticas públicas de peso contra a violência, levam a uma sensação de inércia e impotência.

Criadas as Delegacias Especializadas sobre a Mulher na década de oitenta, e criadas as campanhas contra a violência, são estas duas modalidades que vêm sustentando o núcleo das políticas públicas. O impacto foi e está sendo responsável pela instauração simbólica do direito das mulheres à não violência. Mas ainda é necessária uma revolução nas políticas públicas.

Para os olhares dos acadêmicos não especialistas, há dois tipos de pesquisa: a do feminismo ortodoxo que, em princípio culpa os homens e vitimiza as mulheres, e a pesquisa que aponta as mulheres como também co-responsáveis pela violência porque participam de uma relação violenta, acabando reconhecida como “nova” e, quem sabe, mais apreciada! Esta dupla leitura , e não, nenhuma delas em particular, é que introduziram algo “novo”, e é a grande questão a ser aprofundada e refletida pelas pesquisas acadêmicas e a grande questão a ser introduzida e abordada no desenho das políticas públicas.

A situação de violência contra a mulher exige uma análise que busque articular dimensões simbólicas de amplitude distintas, indo do horizonte do “estoque cultural de valores de longa duração” de uma sociedade sobre os papéis de gênero e sobre as articulações de valor de cada gênero com o poder, a violência, a honra e a subjetividade, passando por uma análise contextual da diversidade do meio comunitário e familiar, e chegando à diversidade da configuração emocional dos sujeitos nas relações violentas. É este entendimento que poderá permitir analisar e apoiar os processos em que os sujeitos venham a se engajar para sair das relações violentas ou, mantendo as relações afetivas, buscar o término dos atos violentos.

Hoje, grande parte das denúncias e dos processos que prioritariamente eram dirigidos às Delegacias Especializadas da Mulher, ou então às delegacias comuns, como os das lesões corporais e ameaças contra as mulheres, estão sendo encaminhados aos juizados de pequenas causas . Qual a avaliação que se tem das Delegacias Especializadas? Qual foi seu poder de irradiar suas formas de abordagem para as outras tantas delegacias comuns? Se foram e estão sendo realizados estudos sobre as delegacias especializadas, quase nada se tem sobre o seu eventual impacto no tratamento dado às denúncias e aos processos nas delegacias não especializadas.

Quando se poderia e se deveria estar pensando (ou já ter pensado) nessairradiação, corrigindo e superando dificuldades encontradas nas especializadas, já o processo judiciário configura e apresenta caminho alternativo para todos os conflitos violentos que puderem ser enquadrados na definição de “pequenas causas”. Assim elogio o reconhecimento do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher na ur-gência da análise do funcionamento das delegacias especializadas. Não é possível que os juizados de pequenas causas venham a lidar com a “mediação entre agressor e vítima”, como se tivessem que “reinventar a roda”, sem se apoiar em toda a complexidade do funcionamento das Delegacias Especializadas, e sem aprender não só com seus acertos mas com seus erros.

Participando da pesquisa elaborada pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (NEPeM) da Universidade de Brasília sobre a Delegacia Especializada da Mulher do Distrito Federal (em coordenação conjunta com Lourdes Bandeira), permito-me dar a minha visão, apontando a presença de fortes ambigüidades no diálogo entre agentes de polícia e as mulheres que denunciam. Oscilam não só muitas mulheres (denunciando e retirando as denúncias) como agentes de polícia diante do dilema : a denúncia do crime e a prisão dos homens ou a busca de formas de mediação entre agressores e vítimas, já que além de agressores e vítimas, os dois participam de uma relação social e afetiva, onde os dois continuam comprometidos e constrangidos, ou mais do que isso, subjetivamente compromissados.

Talvez seja este o núcleo dos desafios das políticas públicas sobre a violência contra a mulher e, diria, sobre toda a violência interpessoal. Sem perder a idéia central da justiça de que um ato violento definido como crime supõe a culpabilização do agressor e não da vítima, há que se abordar a questão da contextualidade diferencial da violência interpessoal, pois agressores e vítimas participam, de alguma maneira dos mesmos constrangimentos e restrições e compromissos, envolvidos por forte carga emocional e que ultrapassa a relação entre dois, abarcando e sendo abarcados por efeitos em toda a rede familiar e interpessoal. Assim, a busca do término da violência conjugal não aponta apenas para a criminalização e a punição. Exige mais. Não pode também se transformar apenas em “mediação entre agressores e vítimas” que não reconheça a diferença de poder entre eles. Aliás, sou radicalmente contrária à idéia de substituir criminalização por “mediação”. Esta é uma conseqüência perversa da “equivocada percepção acadêmica” de uma visão dicotômica sobre violência conjugal contra a mulher : a “relação entre agressor e vítima” versus a “co-responsabilidade dos parceiros”.

O desafio das políticas públicas é combinar a idéia de criminalização com as de mediação, reparação e reabilitação. As punições podem ser pensadas como penas alternativas, desde que haja uma reflexão prévia institucional, que se leve em conta a gravidade e o seu contexto, mas jamais podem ser feitas sem terem acrescidas a idéia de reparação social e pública do agressor diante de sua mulher e do contexto familiar e comunitário e ações para a reabilitação. Terapias devem ser oferecidas e obrigatórias para grupos de homens agressores, e terapias devem ser oferecidas para as mulheres vítimas de violência e para os filhos de casais em situação de violência. Serviços podem ser desenhados levando em conta as condições precárias dos recursos do Estado, mas o mínimo para todos deve ser oferecido. Mais difícil que não oferecer reabilitação, é o Estado arcar com os altos custos sociais do crescimento da violência no Brasil, onde , sem dúvida, os valores sociais e culturais da “honra masculina”, do “poder e da coragem masculina” estão perversamente combinados e fazem vicejar a violência familiar , a violência interpessoal e a violência generalizada das ruas, de homens contra homens e contra mulheres.


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