Quem esteve no Fórum Internacional de Haia para o Cairo+5 sabe que se deu aí uma negociação fluída, envolvendo países e ONGs em todos os espaços de debate. Para muitas de nós, Haia abria a expectativa de que o Cairo+5 permitiria articular melhor medidas de implementação da CIPD - Conferência Internacional de População e Desenvolvimento - às questões de desenvolvimento. Ou seja que teríamos aí um bom começo para seguir adiante em direção a Copenhague +5 e Beijing+5.

Entretanto, as duas sessões do Prepcom - Comitê Preparatório - acontecidas em Nova Iorque (março e junho) foram negociações muito difíceis, implicando, inclusive, em riscos de retrocessos importantes em relação a agenda da CIPD. O que teria acontecido que pode explicar a mudança radical entre o ambiente caloroso de Haia, em fevereiro, e os perigos de retrocesso no Prepcom (em março e junho)?

Deve-se lembrar que o Vaticano esteve relativamente silencioso em Haia e que na mesma ocasião o Grupo dos 77 e China - que teoricamente representam o mundo em desenvolvimento - não operou como um bloco. Já em Nova Iorque o Vaticano foi muito vocal e, claramente, teve influencia sobre o G77 no seu conjunto. O maior obstáculo observado nas negociações do Prepcom foi, de fato, a decisão do G77 de atuar em bloco em relação a todas as questões, incluindo-se gênero, saúde e direitos sexuais e reprodutivos. Esta opção era justificada como sendo "estratégica" para assegurar a coesão do grupo em outras negociações do sistema como, por exemplo, a OMC e o debate sobre arquitetura financeira internacional.

Entretanto, sabemos que em Cairo e Beijing o G77 só buscou consenso em questões econômicas e sociais pois não há possibilidade de acordo nos demais temas, sobretudo naqueles que dizem respeito, de perto, às mulheres. Ou seja, parece claro que a opção por atuação em bloco teve influência direta dos países mais conservadores e eventualmente a mão nefasta do próprio Vaticano nas dinâmicas de preparação para negociações de março de 1999. O resultado foi que como não se finalizaram os trabalhos em março, as negociações foram retomadas em junho, imediatamente antes da Sessão Especial da Assembléia Geral.

Juventude, Sexualidade e Aborto: Boas Razões para Romper um "Consenso Forçado"

Na sessão de junho, ao final da primeira semana de trabalho, 27 países expressaram, de forma coordenada um posicionamento que divergia da posição apresentada formalmente pelo G77. Esta decisão coletiva alterou, por completo e de forma positiva, a dinâmica da negociação.

No debate sobre o parágrafo 13, que trata das políticas para juventude, foi apresentada uma proposta de texto pela Namíbia abrindo, finalmente, a possibilidade de os países se expressarem individualmente. O mesmo aconteceu no caso do parágrafo 23 relativo a inclusão da educação sexual no currículo escolar, a partir de um novo texto apresentado por Gana. As duas propostas foram apoiadas pelos 27 países dissidentes, assim como pelas inúmeras outras delegações. Entre os 27 países, 16 são latino-americanos.

Um segundo momento crucial ocorreu ao final do Prepcom quando foi negociada a proposta de texto apresentada pelo Brasil para o parágrafo referente ao aborto. A proposição original brasileira combinava:

  • Menção integral ao parágrafo 8.25 do Cairo.
  • Uma recomendação explícita de que os profissionais de saúde sejam treinados e equipados para garantir que o aborto seja seguro nas circunstâncias em que é legal.
  • Menção integral do parágrafo 106 k da Plataforma de Ação de Beijing que recomenda ao países a revisão das legislações punitivas.

O texto foi calorosamente apoiado pelos demais 26 países "dissidentes" e outras delegações, somando-se mais de 60 votos de apoio. Nas declarações de voto algumas delegações foram muito contundentes, como por exemplo o Nepal. Embora as leis nepalesas em relação ao aborto sejam extremamente rigorosas, o delegado presente ao Prepcom afirmou que a proposta brasileira poderia ser um instrumento importante no processo de reformulação da legislação nacional.

Entretanto, uma minoria de delegações se opôs radicalmente ao texto brasileiro: os países islâmicos em bloco (com exceção de Bangladesh e Indonésia); Argentina; Nicarágua, Guatemala; Santa Sé e Malta (que só compareceu à sala para manifestar seu voto neste caso específico). Inevitavelmente, as negociações foram reabertas. O processo de "produção de um novo consenso" durou mais de quatro horas em sessão plenária, observada de perto pelas ONGs e imprensa (o que é uma metodologia pouco habitual de solucionar impasses nas Nações Unidas).

O resultado disto é um texto que, se não faz menção à linguagem de Beijing, inclui a recomendação acerca do treinamento e equipamento de profissionais. O conteúdo aprovado não reflete, portanto, a dinâmica real da negociação. Expressa o "consenso possível" determinado pela capacidade de obstrução dos países conservadores.

Neste sentido, o resultado político da negociação pode e deve ser interpretado como positivo. Já o texto adotado combina um avanço importante em termos de implementação ( treinar profissionais) e um retrocesso (a omissão com relação a leis punitivas). Ao meu ver, cabe ao movimento de mulheres otimizar os ganhos e relativizar a perda.

Vale lembrar que no início das negociações da CIPD +5, para um grupo de atores bastante relevantes - incluindo-se aí o FNUAP - seria suficiente repetir as definições do Cairo, ou seja apenas reiterar as idéias contidas no parágrafo 8.25. Além disto é preciso dizer que o consenso da CIPD+5 é, em vários aspectos mais consistente, que aquele que emergiu do Cairo e de Beijing, como sugere a análise acerca do posicionamento regional latino-americano.

Um novo consenso regional?

A voz da América Latina foi, sem dúvida, mais amplamente progressista nas matérias sobre sexualidade e reprodução do que em ocasiões anteriores. Se tomamos como referência o posicionamento regional em Cairo e Beijing fica evidente que a posição dos países evoluiu de forma gradual, mas contínua e positiva ao longo dos últimos cinco anos. Já em 1994, o Brasil teve uma posição clara com relação ao aborto (parágrafo 8.25) e direitos reprodutivos (parágrafo 7.3) no que foi acompanhado, ainda que com grande discrição, por outros países como Uruguai, México e Bolívia. Porém alguns países não foram tão vocais e vários fizeram reservas explícitas à Plataforma de Ação da CIPD (Argentina, Nicarágua, El Salvador, Guatemala, Peru, Honduras, República Dominicana). Um ano mais tarde, em Beijing, de novo se registrou uma posição bastante avançada, porém discreta, em relação ao parágrafo 106 k (8.25 de CIPD+5 a revisão de leis punitivas) e com relação ao parágrafo 96 (direitos sexuais).

No caso da CIPD+5 foi particularmente marcante:

  • A clara posição da maioria dos países latinos no que se refere a não aceitar o consenso forçado que as forças conservadoras buscavam lograr no Grupo dos 77.
  • O persistente esforço do México no sentido de garantir a educação sexual nos currículos de educação pública.
  • O apoio consistente da maioria dos países aos textos relativos a adolescência e mais especialmente ao texto proposto pelo Brasil para o parágrafo referente ao aborto, em voto aberto na plenária do grupo de trabalho. As únicas exceções, como se sabe, foram Argentina, Nicarágua e Guatemala.

Vale dizer, no contexto de negociações das Nações Unidas é muito diferente explicitar posições em plenária do que fazê-lo nos grupos informais de negociação (o que, em grande medida marcou o processo de Beijing). É também fundamental registrar que a maioria dos países estiveram sob pressão aberta do Vaticano durante as duas últimas semanas da CIPD+5. O posicionamento regional observado em Cairo+5 não foi, ao meu ver, conjuntural. Não deveria ser interpretado apenas como "uma posição de negociação na ONU". Entre outras coisas, reflete o trabalho contínuo que vem sendo realizado pelas organizações de mulheres nos níveis nacionais ao longo dos últimos cinco anos, no sentido de pressionar para que a agenda da CIPD seja implementada.


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