Silvia M. S. Camurça
Militante da Articulação de Mulheres Brasileiras e integrante da equipe multiprofissional do SOS Corpo (Recife - PE). Texto originalmente publicado na Revista Bocas do Mundo (AMB)

Foi no Fórum Social das Américas de 2003, na Guatemala, que começamos a posicionar nossa denúncia da violação e controle do corpo das mulheres nestes termos, ou seja tomando nosso corpo como nosso território, território que estamos dis-postas a defender. “Aqui não se toca, não se mata, não se maltrata”, era o complemento da frase que ali gritávamos em portunhol, brasileiras e guatemaltecas liderando caminhada na manhã de abertura do Fórum.

A ideia não se confunde com a insígnia ‘nosso corpo nos pertence’ dos anos 1970, mas trata da mesma questão, contudo indo mais além. Vejamos. Em ‘nosso corpo nos pertence’ afirmamos a autoridade do Eu de cada mulher sobre o próprio corpo, uma questão de autonomia e autodeterminação. Entretanto, ao mesmo tempo, esta insígnia dá margem a manter a dicotomia entre mente e corpo, como duas coisas separadas, um pertencendo ao outro: meu corpo pertence a mim. Ou seja, um Eu separado e possuidor de um corpo.

Com a ideia de ‘nosso corpo, nosso território’, propomos tomar o corpo como território onde nossa vida habita, algo inseparável da própria vida que se realiza através e pelo corpo, nossa base material de existência humana: meu corpo sou eu. Não há um EU separado do corpo. Esta ideia é especialmente importante para atualizar o debate sobre a autodeterminação reprodutiva de nós mulheres e, me parece, tem a força necessária para reafirmar que temos direito a sermos “donas de si mesmas”.

A insígnia “nosso corpo, nosso território” mantém o centro da demanda e da denúncia colocada em público nos anos 1970 e nos vincula à luta do presente contra a expropriação de outros territórios, lugares de existência coletiva. A luta em defesa de seus territórios vem sendo levada pelas homens e mulheres indígenas, quilombolas e de populações tradicionais do Brasil e de outros países da América Latina. Assim, essa é uma ideia que nos vincula umas as outras. No Brasil, vincula as mulheres do sudeste com as da Amazônia, as do litoral Cearense com as de Goiás, as da Bahia com as do Espírito Santo e as de Pernambuco. Nos vincula à luta por justiça

socioambiental, uma das frentes de luta da Articulação de Mulheres Brasileiras na qual confrontamos o padrão atual de desenvolvimento e denunciamos a situação das mulheres nas áreas de conflitos socioambientais em cada um destes estados.

Por território nos referimos a algo a mais que a terra. O tema nos remete a lugar onde se vive, onde as relações sociais se realizam, onde se produz, se cuida do viver, se faz cultura, arte, lugar de raízes, com história e sentido comum para quem o habita. Sabemos que as populações desalojadas de seu território podem até receber novas terras para habitar, mas nunca terão de volta seu território para sempre perdido e, com ele, a teia de relações sociais que ali estavam estruturadas.

Os territórios de muitas populações estão hoje fortemente ameaçados pela força do capital em sua nova fase de desenvolvimento. Esta ameaça se faz na forma de agronegócio, de especulação imobiliária, ou de grandes obras de desenvolvimento como hidrelétricas, transposição de rios, entre outras.

Trazendo o conceito para falar de nós mulheres, afirmamos que nesse território da vida que é o corpo, é que nossos sentimentos, nossas ideias, nossa inteligência, nosso desejo, nossa dor, nosso prazer acontecem. Assim podemos compreender melhor as críticas à mercantilização do corpo da mulher, por exemplo, pela medicina estética. Na verdade, pela mercantilização dos corpos femininos, a indústria da medicina estética mercantiliza e transforma em mercadoria as próprias mulheres. De consumidoras de produtos de beleza passamos a ser consumidas pela indústria que enriquece às custas dessa exploração.

Vamos mais além, nosso corpo, nosso território, é também explorado pela indústria farmacêutica, que acumula milhões pelo consumo de remédios, dos quais nós mulheres somos as principais usuárias. Entre eles estão tranquilizantes, antidepressivos e afins, medicamentos que no final das contas apenas são paliativos, mas nos ajudam a enfrentar os efeitos e dores que a situação de opressão nos impõe ao longo da vida.

Somos também exploradas pela indústria de turismo de massa: pela venda e mercantilização das mulheres negras, vendidas como mulatas, “produto de exportação”, ou a “mulher brasileira”, apresentadas ao consumidor de turismo sexual como muito caliente e disponível. Explora-nos no trabalho sexual, mas nos explora também nos serviços hoteleiros, restaurantes e casas de diversão, mediante contratos de trabalho precários e desvalorizados. E ainda como “nativas”, indígenas ou não, nas florestas, no pantanal ou nas praias do nordeste e do sul, sempre vendidas como prendas fáceis e disponíveis para a conquista do visitante.

Por fim, gritamos que nosso corpo é nosso território, para dele afastar o poder do direito patriarcal e a ingerência das autoridades religiosas que, em nome da fé ou da lei, criminalizam as mulheres pela prática do aborto. Nosso corpo não é um “meio” ou um instrumento a serviço da reprodução biológica da vida humana. Não. Nosso corpo é parte de nossa própria existência, vale por si mesmo, como tem sentido a existência de toda mulher. E sobre nós, nossa existência, somos e queremos ser sempre soberanas, livres, sujeita de nossas vontades e donas, cada uma, de si mesmas.


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