Mulheres do mundo inteiro participam em junho de 2012 da Cúpula dos Povos, no Rio de Janeiro. O objetivo é trazer o olhar feminista sobre a crise mundial e soluções a partir da perspectiva de justiça socioambiental. Schuma Schumaher, representante da Articulação de Mulheres Brasileiras e da Articulación Feminista Marcosur no Grupo Articulador da Cúpula dos Povos, conversa com o Jornal Fêmea sobre esse processo

Por Mel Bleil Gallo

Fêmea - Como começou a articulação feminista sobre a agenda socioambiental?

Schuma Schumaher - Tudo começa com uma história de vinte anos atrás, quando várias organizações, numa coalização brasileira, investiram muito no Planeta Fêmea, o espaço das mulheres para Eco 92 (leia mais na página 12). A gente tinha uma agenda feminista radical e as discussões foram muito ricas. Foi o feminismo que trouxe a proposta de que a crise era uma crise de paradigma, que envolvia mulheres, homens, natureza. E que essas relações eram o que a gente precisava repensar para enfrentar o capitalismo, o patriarcalismo, o racismo e tudo mais.

Há muito tempo vínhamos participando com outros movimentos sociais da construção do Fórum Social Mundial e quando a agenda da Rio+20 foi posta, nós estivemos junt@s desde o começo, na Cúpula dos Povos, construindo esse espaço da sociedade civil.

É um processo muito difícil, com pouco tempo para ser organizado, em um contexto diferente. Uma coisa é você fazer a Eco 92, no governo Collor. Outra coisa é você organizar a Cúpula dos Povos, no contexto de um governo mais popular, democrático e onde o confronto fica mais difícil. Mas como a cúpula é dos movimentos sociais organizados no mundo inteiro, e não apenas do Brasil, nós temos que olhar e pensar nos problemas que se passam além daqui.

Fêmea - Como você compara o espaço da Rio+20 com a Eco 92?

Schuma Schumaher - Eu acho que esse espaço perdeu um pouco a importância, porque a proposta inicial era se fazer uma avaliação dos acordos da Eco 92 e ver o que avançou ou não. Obviamente essa proposta foi completamente descartada pelos governos. Vamos ter um encontro simbólico, mas sem avaliar nada do que aconteceu de lá pra cá. Além disso o G20 vai se encontrar dois dias antes da Rio+20, no México e nem todos os países participantes estarão aqui. Então a gente também corre o risco de que as coisas mais polêmicas e importantes sejam acordadas antes. Ao mesmo tempo, é muito importante para nós mulheres termos a oportunidade discutir essa agenda do desenvolvimento, da sustentabilidade e da justiça socioambiental. Embora a gente sempre pense sobre isso, ela não era a agenda clássica do feminismo.

Fêmea - Você acha que o feminismo traz uma nova perspectiva sobre essa pauta?

Schuma Schumaher - Sim. Nos últimos anos, o olhar feminista tem sido incorporado a essas temáticas que importam para o cotidiano de mulheres de variados segmentos e realidades. Isso é bastante significativo e tem possibilitado uma atenção maior sobre a questão do território, sobre os bens comuns e como que a gente compreende essa crise ambiental. Percebemos que a gente não tem um milagre pra resolvê-la, sem pensar no social primeiro. São outras vozes que estão se juntando na busca de soluções mais democráticas, que enfrentam as desigualdades, o capitalismo e esse novo conceito de economia verde que é uma forma disfarçada de capitalismo.

Fêmea – Quais são os pontos principais onde a contribuição feminista entra com mais força?

Schuma Schumaher - Acho que ela vale muito principalmente na questão de direitos sociais e do racismo ambiental. Um dos graves problemas que está em discussão é a questão das retiradas, nas obras de grandes eventos, como a Copa do Mundo. Isso é tratado de forma econômica, sob a ótica da governabilidade, sem levar em conta os direitos sociais.

Mas ao falar de direitos, não estamos nos referindo apenas à autonomia das mulheres e aos direitos sexuais e reprodutivos. Além desses, nós estamos falando do direito à água, do direito à terra. E todos estão ameaçados agora na Rio+20. Muitos países não querem que essa questão entre – se é que algum documento vai sair, assinado pelos governos. Porque obviamente querem privatizar a água, privatizar a terra, privatizar o campo, os parques, os jardins para depois cobrar pelo uso de tudo. E por outro lado você tem também o Vaticano, nas Nações Unidas, que embarca nessa história, quando quer tirar da pauta a questão dos direitos reprodutivos.

Fêmea - Como você compara a mobilização social desse ano, com relação à Eco 92?

Schuma Schumaher - A participação social vai ser muito pequena perto do que foi 20 anos atrás. Lá a gente inaugurou um período de agenda social das Nações Unidas e um período muito mais forte de participação dos movimentos sociais. Hoje existem muitos movimentos que acompanham as mudanças climáticas. São tantas as frentes que precisavam de atenção e tão pouco tempo para organizar essa Cúpula, que acho que nós não teremos a mesma representação de antes.

Fêmea - Há uma fragmentação?

Schuma Schumaher - Acho que tem uma fragmentação da agenda, mas não de conflito. É uma fragmentação na hora de eleger prioridades, a partir do nosso campo comum.

Fêmea – E como fazer para fortalecer uma agenda unificada, a partir da Cúpula dos Povos?

Schuma Schumaher - Na Cúpula, nós temos uma preocupação muito grande com isso. Vamos ter vários espaços para convergir. Estamos trabalhando com um tripé: um é para entender as causas estruturais da crise ambiental, o segundo é para pensar quais são as propostas que nós temos para solucionar essa crise e o terceiro é como e com que bandeiras seguiremos junt@s. É para dizer que as coisas não começaram hoje, nem muito menos terminam aqui.

Fêmea - Que pontos você acredita que devem entrar nessa agenda mínima?

Schuma Schumaher - Com certeza uma agenda de direitos: ao território, ao bem comum, sexuais e reprodutivos, entre outros. Essa é a agenda básica que deve sair. Uma agenda concreta brasileira que vamos seguir é com relação aos megaeventos internacionais e o combate às remoções forçadas, à exploração sexual e outros problemas que vêm com a realização da Copa do Mundo, das Confederações, Olímpiadas e todo o mais.

Mas eu já não tenho a mesma certeza se vamos seguir juntos na crítica ao desenvolvimentismo, que é a opção política do governo brasileiro atual. Aqui não tem consenso.

Fêmea - Como você vê a a evolução do debate sobre desenvolvimento na perspectiva da justiça socioambiental?

Schuma Schumaher - De certa forma é mais fácil pensar críticas do que propostas, mas esse é o nosso desafio. Tem algumas propostas que a própria sociedade tem vivido, que dão uma dimensão do que pode ser feito. Economia solidária, soberania alimentar, não-privatização dos bens comuns são propostas. Tudo que é feito dentro da matriz de acumulação de riquezas para alguns, em nome do desenvolvimento, tem que ser questionado. Nós não aceitamos esse modelo, como está sendo colocado.

Fêmea - Qual é o saldo para o movimento feminista a partir dessa articulação na agenda socioambiental, em especial na Cúpula dos Povos?

Schuma Schumaher - A gente cresce como movimento, sem dúvidas. O maior saldo tem a ver com o processo, com a mobilização e o envolvimento das mulheres. A nossa agenda feminista se alargou: é uma agenda que hoje contempla muito mais sujeitas com toda a diversidade das suas realidades cotidianas. É um saldo enorme e espero que a gente siga conversando e debatendo essa agenda, para encontrar soluções. É muito bacana a gente poder falar de território e defender o território das quilombolas, o território das ribeirinhas e o território de todas as mulheres, que é o nosso corpo, nosso primeiro território.


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