Ana Claudia Pereira
Consultora do CFEMEA

A Lei Maria da Penha é uma das maiores conquistas das brasileiras na história recente. A sociedade civil teve um papel fundamental na redação da Lei, o que contribuiu para sua riqueza e levou a Organização das Nações Unidas (ONU) a considerá-la uma das três melhores leis do mundo para combater a violência contra as mulheres. Além disso, a lei é aprovada por 80% das/dos brasileiras/os.

Infelizmente, tanto setores do Poder Judiciário quanto do Poder Legislativo resistem a avanços na garantia de direitos que ela traz para as mulheres. O Poder Executivo tem contingenciado parte dos recursos para o enfrentamento à violência, o que compromete a implementação das políticas públicas e serviços que permitem a aplicação da Lei. Com isso, o machismo presente nas instituições ainda coloca em risco a vida de milhares de mulheres.

Apesar de afirmar que os cortes no orçamento não atingiriam as políticas sociais, o governo federal reduziu o orçamento autorizado para o programa de enfrentamento à violência contra as mulheres de R$41,2 milhões, em 2010, para R$36,9 milhões, em 2011. O corte reduz as possibilidades de desenvolver as políticas públicas de apoio à Lei Maria da Penha.

A recente decisão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de que os processos indiciados pela Lei Maria da Penha (11.340/2006) podem ser suspensos por um período de dois a quatro anos e que, após este período, sua pena pode ser extinta, foi recebida com indignação pelos movimentos feministas, movimentos de mulheres e, sobretudo, pelas mulheres brasileiras. Somente o peso da mão do poder patriarcal explica tamanha deturpação de nossos direitos.

Essa decisão permite - mas não obriga - que os agressores deixem de ser punidos por seus crimes, caso não cometam faltas no período determinado. Na prática, mecanismos destinados a crimes de “menor potencial ofensivo” voltam a ser aplicados para casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres.

Esta e outras resistências que a Lei Maria da Penha enfrenta nos tribunais têm motivado a apresentação de projetos de lei no Congresso. Atualmente, o CFEMEA acompanha 23 projetos com este teor que tramitam no Congresso Nacional. Produzidos às pressas, após casos de grande repercussão ganharem a mídia, a maioria deles é redundante e não alteraria em nada o funcionamento da Lei. Alguns propõem retrocessos e um deles criminaliza a violência doméstica contra os homens, que não é fenômeno documentado em nossa sociedade e que já dispõe de mecanismos legais para tratar dos casos existentes.

Ao analisarmos a Lei notamos que seu texto já é bastante completo e abrange diversas situações de violência: a violência é considerada em suas dimensões físicas, morais, psicológicas e patrimoniais; foram introduzidas as medidas protetivas, até então inéditas no direito brasileiro; eliminou-se a possibilidade das vítimas “retirarem a queixa” para que as mulheres deixassem de ser chantageadas e punidas pelos agressores; a violência contra as mulheres deixou de ser considerada crime de menor potencial ofensivo e passou a ser uma infração aos direitos humanos; foram previstos os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e serviços e políticas públicas para dar efetividade à Lei; e, pela primeira vez, o direito brasileiro reconheceu a união afetiva entre pessoas do mesmo sexo.

Por outro lado, é notável a carência de debates e dados empíricos que orientem a produção dos projetos de lei. O texto da Lei não deixa margem para dúvidas e a resistência em aplicá-la decorre do machismo entranhado nas instituições públicas no país. Sem sua superação, a aprovação de cerca de 20 projetos inócuos certamente dará projeção midiática para algumas/alguns parlamentares, mas pode vir a minar a consolidação da Lei junto a tribunais e à opinião pública. Os novos textos voltarão a ser contestados e usados contra as mulheres.

O fim da violência contra as mulheres passa pela implementação das políticas públicas e mecanismos da Lei Maria da Penha para garantir que, logo nas primeiras ocorrências da violência, as mulheres sejam protegidas. E é exatamente esse objetivo que a Lei Maria da Penha persegue. A prisão do agressor é pensada como um recurso de proteção das vítimas, para que estas tenham tempo de reestruturar suas vidas, de exercitarem seu direito de ir e vir e de viverem livres de ameaças. Não é punição desmedida, como alguns querem fazer crer.

A erradicação do machismo vigente na sociedade e da violência que ele produz contra as mulheres requer o compromisso de parlamentares, do Poder Executivo e de operadoras/es de direito. Precisamos de decisão política e recursos para a aplicação da Lei, não de mudanças.


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