As três organizações feministas, CFEMEA, Grupo Curumim e IPAS, visitaram as duas maiores maternidades de Pernambuco e descobriram a cruel realidade do atendimento ao aborto no país

O Dossiê "Realidade do Aborto Inseguro em Pernambuco: O Impacto da Ilegalidade do Abortamento na Saúde das Mulheres e nos Serviços de Saúde de Recife e Petrolina" surgiu com o objetivo de conhecer melhor a realidade do abortamento inseguro e dos serviços de saúde nos municípios de Recife e Petrolina, no Estado de Pernambuco, e contribuir com uma abordagem de direitos humanos sobre essa realidade. A idéia foi reforçada a partir da constatação de que a população e, principalmente, @s legislador@s e gestor@s carecem de informações sobre essa realidade.

O dossiê foi composto por duas fontes de dados. Por um lado, uma comitiva, composta por pesquisadoras das organizações feministas, visitou, nos dias 9 e 10 de junho, a Maternidade Professor Barros Lima e a Maternidade do Hospital Dom Malan, em Recife e Petrolina, respectivamente. Perguntas e conversas foram direcionadas aos gestores e profissionais de saúde, e também se pôde entrevistar mulheres internadas ou que estiveram internadas para tratar complicações de abortamento. Por outro lado, o dossiê também considerou pesquisas realizadas nos Sistemas de Informação em Saúde/SUS, em bancos de dados locais, relatórios dos Comitês de Mortalidade Materna, publicações e sites, bem como pesquisas científicas que envolveram o tema.

Realidade dos hospitais e do atendimento

A escolha dos dois municípios foi feita pelo fato de concentrarem as referências obstétricas do Estado de Pernambuco, com maior volume de internações por abortamento. Além disso, com base em uma pesquisa sobre os índices de morte materna por meso-região, realizada em 2003, foi diagnosticado que o abortamento foi a primeira causa de morte na VII Gerência Regional de Saúde, com sede em Petrolina.

Na Maternidade Barros Lima, em Recife, saltou aos olhos a falta de profissionais, leitos obstétricos, equipamentos e manutenção dos mesmos, além da maternidade não estar informatizada. Por não garantir assistência básica na rede municipal, cerca de 30% das internações obstétricas de Recife são para tratar complicações do abortamento de mulheres residentes fora do município. E, apesar de existirem protocolos criados exclusivamente para atender mulheres em situação de abortamento, o mesmo não é posto em prática por tod@s profissionais, o que acaba sobrecarregando aquel@s que realizam o procedimento. Muit@s profissionais se recusam a atender as mulheres alegando razões morais e religiosas. Há um mês vem sendo implantado o "Planejamento Reprodutivo Pós-abortamento" na Maternidade de Barros Lima, mas não se pode garantir que tod@s profissionais o cumpram, já que há relatos de mulheres atendidas nessa unidade que após terem sofrido abortamento, receberam alta sem quaisquer orientações para evitar novas gestações indesejadas.

Em Petrolina, especificamente na Maternidade do Hospital Dom Malan, a realidade encontrada é ainda mais grave e dramática. Em primeiro lugar, a Maternidade atende cerca de 57 municípios do Estado de Pernambuco, além de alguns da Bahia, Ceará e Piauí. Isso porque as gestões municipais de grande parte desses municípios não se responsabilizam pela atenção à saúde das mulheres e, o que é ainda mais grave, estas gestões se negam a atender mulheres em situação de abortamento. (Se negam por que? Podem ser vários motivos...). Faltam também profissionais de saúde, equipamentos (como aparelhos de ultrassonografia) e, principalmente, faltam informações sobre as Normas Técnicas do Ministério da Saúde e de Leis Federais (como a lei do acompanhante, Lei nº 11.108/05), o que leva ao descumprimento dessa legislação. Sobretudo, é notória a discriminação com as mulheres em situação de abortamento.

A legislação brasileira permite a realização de aborto nos serviços público de saúde quando a vida da mulher está em perigo ou quando a gravidez é resultado de estupro. Entretanto, muitas vezes os serviços não estão disponíveis, nem mesmo para os casos previstos em lei, o que ocorre no Hospital Dom Malan.

Violência institucional

Esses dados e informações conduzem à reflexão: se essa é a realidade encontrada em cidades de grande porte, como Recife e Petrolina, não é difícil imaginar e prever o que acontece em municípios menores em um país de dimensões continentais como o Brasil. Nesse sentido, cresce a importância de se replicar esse trabalho em outros Estados e municípios para subsidiar e levantar dados para informar de forma qualificada às autoridades.

A ilegalidade e criminalização do aborto no Brasil tem forte impacto na falta de qualidade e na violação de direitos humanos na assistência à saúde das mulheres. O Plenário do Congresso Nacional tem a chance de mudar essa realidade a partir da aprovação do Projeto de Lei nº 1135/91 (que descriminaliza o aborto no Brasil), ao qual está apensado o PL 174/91 (que legaliza a prática até o 90º dia e prevê o atendimento pela rede pública de saúde). A falta de informações sobre esse grave problema de saúde pública aliada à ação dos grupos religiosos fundamentalistas e aos interesses eleitoreiros típicos deste ano, levou à rejeição do PL na Comissão de Seguridade Social e Família e na Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania. No último dia 13/08, o Deputado José Genoíno (PT/SP) apresentou recurso para que o PL seja também analisado pelo Plenário da Câmara, que aguarda votação.

"Quando passou tudo, acordei, estava num quarto com mais três mulheres que tinham abortado. Veio uma médica e examinou calmamente todas nós. Fez perguntas, anotou, viu o sangramento e explicou tudo. Pra finalizar, disse que a gente tinha de ficar uns quinze dias de resguardo, se cuidando, que não pegasse peso, essas recomendações. Ninguém conversou sobre Planejamento Familiar, nem foi feita nenhuma medida contraceptiva, só recomendou que voltasse se tivesse algum problema: sangramento, mal cheiro, febre, qualquer problema"

"Às vezes até com hemorragia... teve um caso que a mulher já cheirava mal quando conseguiu chegar no atendimento, mais de um dia esperando na triagem, com um feto retido, infectado, e, mesmo assim, ficou para ser a última do dia. É assim, quando é um aborto, não querem nem saber se foi espontâneo ou provocado, a mulher fica para o último lugar nas internações". (profissional na maternidade D. Malan).

"Meu companheiro não pôde ficar comigo porque disseram que eu era maior de idade, que eu não podia ter um acompanhante homem, só mulher. Ele ligou para mãe dele e ela veio, imediatamente"


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