Um balanço de fim de ano sobre a incidência dos movimentos de mulheres no processo orçamentário revela avanços. Aprofundou-se o debate político sobre a distribuição dos recursos públicos, denunciou-se os mecanismos que reproduzem as iniqüidades de gênero e étnico-raciais no orçamento e intensificou-se a mobilização social para enfrentar as desigualdades.

Apesar de tudo, ainda não foi possível consolidar um espaço de participação social no Ciclo Orçamentário. As negociações com o governo neste sentido, que já vinham complicadas e morosas desde o ano passado, com a eclosão da crise política em abril último, terminaram por paralisar-se definitivamente.

A ausência de diálogo entre a área econômica e de planejamento do governo e os movimentos de mulheres e anti-racista se revelaram claramente nos projetos de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO-2006) e de Lei Orçamentária da União (PLOA-2006), encaminhados durante este ano pelo Executivo ao Legislativo. Os desafios nacionais consagrados no Plano Plurianual 2004-2007, de enfrentamento das desigualdades de gênero e raça, não estavam refletidos em nenhum dos dois projetos. Ademais, até setembro, grande parte dos recursos destinados às políticas públicas para as mulheres estava contingenciada.

Incidência no Processo Orçamentário

Mas a situação não ficou assim. No debate sobre o PLDO-2006 no Congresso Nacional, o CFEMEA, a Articulação de Mulheres Brasileiras, o INESC e as demais organizações que integram o Fórum Brasil do Orçamento elaboraram várias propostas de emendas, pressionaram e abriram espaço para a discussão com @s parlamentares. Algumas dessas emendas foram encaminhadas e aprovadas pel@s parlamentares, resultando em vitórias significativas.

A primeira delas diz respeito à inclusão na Lei de Diretrizes Orçamentárias, de dois desafios no Anexo de Metas e Prioridades, quais sejam: promover a redução das desigualdades de gênero; e promover a redução das desigualdades raciais, com ênfase na valorização cultural das etnias. E ainda, a inclusão de quatro ações prioritárias, dirigidas à capacitação de agentes públicos em temas transversais (gênero e raça); ao desenvolvimento da educação infantil; e à inclusão previdenciária.

Também no processo de debate sobre a LDO, foi possível evitar a ameaça de desvinculação de receitas da união na área da saúde e confirmar a prevalência do princípio da participação social no processo de elaboração da Lei Orçamentária Anual de 2006.

As emendas aprovadas na LDO elevaram o patamar de discussão (ainda em curso) no que se refere ao Projeto de Lei Orçamentária Anual para 2006. No debate sobre a PLOA-2006, a decisão do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher de pronunciar-se publicamente, pela primeira vez, em relação ao processo orçamentário foi fundamental. Desse modo, além de tornar público o posicionamento de várias articulações e redes de mulheres que integram este órgão, o Conselho também sustentou fortemente as iniciativas políticas da Ministra Nilcéia Freire dentro do governo para descontingenciar os recursos do Orçamento de 2005 e assegurar novos recursos para os programas e ações que compõem o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres na PLOA 2006.

Nesse contexto, a Bancada Feminina no Congresso Nacional desempenhou papel de destaque. A partir de subsídios apresentados pelo CFEMEA, as deputadas e senadoras definiram estratégias suprapartidárias para ampliar os recursos do Orçamento da União para as políticas públicas para as mulheres. E os primeiros resultados já apareceram: em três Comissões Técnicas Permanentes da Câmara dos Deputados foram aprovadas emendas prioritárias que aumentam substantivamente os recursos para os programas de combate à violência contra as mulheres; saúde integral da mulher e gestão da política de gênero.

A Marcha Zumbi dos Palmares+10, realizada no último dia 16 de novembro, foi um outro elemento político da maior relevância na discussão sobre os recursos para as políticas públicas de promoção da igualdade racial. Esta foi uma das questões centrais levantadas pel@s manifestantes que reivindicam a constituição de um Fundo próprio, para dar efetividade às ações previstas no Estatuto da Igualdade Racial. O Congresso Nacional não pode ficar alheio a estas demandas por recursos, principalmente quando está discutindo o Orçamento da União para o ano que vem.

Aprendizado e perspectivas futuras

Num momento de crise política como o atual, não resta dúvida que, em comparação com o Executivo, as chances de diálogo no Congresso Nacional são maiores e mais efetivas, pela própria natureza plural do Parlamento. Mas tanto num Poder como no outro, a falta de transparência e de acesso às informações, bem como a forma desnecessariamente complexa e confusa de divulgação das informações orçamentárias, fazem com que os orçamentos públicos sejam entendidos e estudados apenas por uma elite de tecnocratas, profissionais tributaristas e economistas que, muitas vezes, encaram o orçamento essencialmente como uma peça técnica.

É por esta propriedade, que o processo orçamentário é sempre tão suscetível à corrupção e ao clientelismo político e tão avesso à participação social. É porque a esfera política de decisão sobre o orçamento é estreita ao extremo, que ela mantém privilégios de gênero, raça e classe em vez de assegurar direitos; e reproduz os mecanismos de concentração da riqueza e da renda, tornando meramente cosmético princípio da universalidade dos direitos. Os Orçamentos Públicos e seus processos de discussão e decisão são essencialmente políticos e devem ser apropriados pela sociedade.

Em 2006, o último ano do governo Lula, é um momento estratégico para a concretização dos avanços. Da experiência política construída vem a certeza de que é necessário consolidar politicamente as conquistas, institucionalizá-las, publicizá-las para poder mantê-las no momento da alternância de governo, (mesmo no caso de reeleição presidencial, devido à recomposição ministerial), e renovação do Congresso Nacional. Ainda que insuficientes, os desafios incluídos no Plano Plurianual (PPA), a sua priorização pela LDO, a ampliação dos espaços de participação social no Ciclo Orçamentário, o aumento do volume de recursos destinados às áreas de igualdade racial e de gênero, a maior transparência dos processos, tem três atores políticos fundamentais: na sociedade, os movimentos feministas e anti-racistas e sua atuação inclusive nos mecanismos de controle social; no governo, as Secretarias (SPM e SEPPIR); e no Legislativo, as Bancadas Feminina e pela Igualdade Racial.

Da quase inércia que se via há três anos atrás em relação a essas questões no processo orçamentário, já se pode constatar os avanços para uma institucionalidade em processo de construção, ainda mutante, mas simbolicamente rica. Porém coexistente com uma gestão pública empobrecida, auto-centrada e auto-referenciada, com muitas portas fechadas (não todas!), especialmente quando se trata de transversalizar a perspectiva de gênero e raça.

Portanto, manter o ânimo dos movimentos de mulheres e anti-racistas para incidir no debate sobre Orçamentos Públicos, do nosso ponto de vista, é estratégico. São esses movimentos a parte com menos poder nesse processo, mas certamente são os únicos com autonomia política consolidar esses avanços em um ano eleitoral, como será o que se avizinha. Lá na frente, na virada de 2006 para 2007, tanto em caso de reeleição, quanto de renovação na Presidência da República, tudo o que parecia sólido, pode se desmanchar no ar, se não estivermos muito vigilantes.


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