Célia Vieira
Economista e consultora do CFEMEA

O Congresso Nacional está discutindo a proposta do governo de diretrizes orçamentárias para 2006, o chamado Projeto de LDO. Sabe quais são as implicações da LDO na sua vida? É bom que saiba, porque cada um e cada uma de nós tem tudo a ver com isto. O projeto que está em discussão dificultará em grande medida o cumprimento dos compromissos assumidos pelo atual governo, de enfrentamento das desigualdades sociais, de gênero e raça.

É na LDO que a meta de Superávit Primário ganha força de lei. No projeto para 2006, a meta está mantida em 4,25% do Produto Interno Bruto. O que significa dizer que o governo já decidiu que vai tirar da economia privada (na forma de impostos ou tributos, que são a receita do governo) mais do que vai injetar nela (na forma dos gastos do governo). Traduzindo em miúdos, isto quer dizer que a carga tributária vai continuar alta e que o governo vai diminuir os gastos naquilo que é nosso direito de cidadania e dever do Poder Público assegurar.

Essa política de geração de Superávit Primário faz parte de um modelo econômico que vem prevalecendo desde o governo Collor, cujas conseqüências têm sido nefastas para grande parte da população. O rendimento real médio da população assalariada vem caindo sem parar. No período de 1995 a 2004 a queda foi de 21%, enquanto a taxa média mensal de desemprego elevou-se de 13,16% para 18,82%, segundo pesquisa Seade/Dieese/PED. A remuneração total das trabalhadoras, como proporção do PIB, segundo o IBGE, também sofreu queda de 7% nessa década.

Mais preocupante ainda é que nos últimos anos esta meta de Superávit tem servido como piso. Em 2004, por exemplo, o Superávit Primário realizado foi de 4,61%. Depois de algumas negociações com organismos financeiros internacionais, o máximo a que o governo brasileiro chegou foi à salvaguarda de alguns investimentos públicos, que foram excluídos do critério de cálculo do Superávit. É o chamado Projeto Piloto, que em 2006 deverá ser de R$ 3 bilhões.

O custo social desta política econômica já é um velho conhecido. Mas é importante que se saiba que a contenção dos gastos é ainda maior sobre as políticas que não estão protegidas por vinculações constitucionais ou obrigações legais, como é o caso das áreas de saúde e educação.

Aliás, o questionamento desta "proteção" a algumas áreas e ações sociais tem sido colocado, mais uma vez, na ordem do dia pelo governo, seja através de discursos de dirigentes da área econômica, seja através da inserção no PLDO/2006 em seu art. 97.

Uma das práticas que possibilitam o alcance destes resultados é o contingenciamento de dotações, e neste aspecto o PLDO/2006 reduziu as ações não sujeitas ao contingenciamento e não apresentou critérios transparentes para os eventuais cortes e para a recomposição do montante, inicialmente previsto, das despesas, quando houver o restabelecimento da receita prevista.

O dispositivo alardeado pelo governo, que viria demonstrar a intenção de não aumentar os impostos, não encontra respaldo no projeto encaminhado. O PLDO/2006 estabelece teto de 16% do PIB para a estimativa de receitas decorrentes da arrecadação dos tributos federais no Projeto e na Lei Orçamentária e não para a arrecadação das receitas propriamente ditas. Não há nenhum dispositivo que obrigue a redução da carga tributária toda vez que o limite for ultrapassado e também não se apresenta o destino da arrecadação excedente a este limite. O principal receio é o uso destes recursos na ampliação do Superávit Primário.

As políticas sociais de caráter não obrigatório, que em grande parte estão definidas como despesas correntes primárias, devem sofrer um forte impacto com o estabelecimento do limite de 17% do PIB para as despesas correntes primárias. Estão incluídas aí despesas obrigatórias como os gastos com previdência, pessoal, assistência, que estão entre as que mais cresceram, e outras como o custeio da máquina administrativa. Mas, também, estão incluídas em grande medida as despesas relativas aos programas nas áreas de direitos humanos, alguns programas na geração de emprego e renda, enfrentamento das desigualdades de raça e gênero e de proteção da criança e do adolescente, entre outros.

O percentual previsto está abaixo do estimado na Lei Orçamentária para 2005, que é de 17,5% do PIB, e no Decreto, 17,1% do PIB (foram contingenciados R$ 6,8 bilhões), cuja expectativa é de crescimento no decorrer da realização. De 2001 a 2005, este percentual só foi menor que 17% em 2003, atingindo 16,83%1.

Isso significa que para cumprir este teto, as políticas sociais de caráter não obrigatório deverão sofrer cortes ainda mais rigorosos.

Coincidentemente estas mesmas políticas estão ausentes do anexo de prioridades e metas da PLDO 2006. O anexo apresentou mudança em sua formatação, vinculando prioridades/metas síntese aos desafios definidos no PPA 2004/2007. Foram priorizados 16 dos 33 desafios previstos. Mas, perdeu em transparência ao não vincular os desafios aos programas, principal elo entre o PPA e a Lei Orçamentária.Da análise dos desafios priorizados, ressente-se a ausência de alguns como:

"8. Promover a redução das desigualdades raciais, com ênfase na valorização cultural das etnias;

9. Promover a redução das desigualdades de gênero, com ênfase na valorização das diferentes identidades;

25. Fortalecer a cidadania com a garantia dos direitos humanos, respeitando a diversidade das relações humanas."

Ao decidir não priorizar o enfrentamento das desigualdades de gênero e raciais no Brasil, o governo abre mão de enfrentar injustiças históricas e problemas estruturantes da pobreza em nosso País. De modo que, mesmo tendo criado, pela primeira vez, duas secretarias especiais, no primeiro escalão, para transversalizar a perspectiva de gênero e étnico-racial em todas as políticas públicas, a diretriz do atual governo para o ajuste fiscal afronta qualquer esforço para superar as desigualdades.

A complexidade do problema das desigualdades no Brasil e a necessidade de enfrentá-lo em suas várias dimensões ficam evidentes quando se analisam os dados desagregados sobre salários por raça e gênero. Em 1993, @s branc@s ganhavam em média 3,6 salários mínimos, e @s negr@s, 1,7 salário - uma diferença de 111,7%. Dez anos depois, em 2003, os resultados haviam mudado pouco: @s branc@s ganhavam em média 3,9 salários mínimos e os negr@s, 1,93. A diferença da média salarial de branc@s e negr@s passava, então, para 102%, a despeito de todos os esforços empreendidos pel@s afrodescendentes na área da educação: neste período, @s negr@s elevaram de 4,5 para 6 anos a sua média de anos de estudo, sem obter, entretanto, benefícios proporcionais a tais investimentos (IBGE, PNAD 1994 e PNAD 2004).

A análise interseccional das dimensões de gênero e raça sobre os mesmos dados revela que, na média, as trabalhadoras recebem a metade dos salários dos homens; que a renda das mulheres brancas é duas vezes a da mulher negra; e que os trabalhadores brancos ganham 3,8 vezes o salário das trabalhadoras negras (IBGE, PNAD 2004).

Ao se analisar as prioridades/metas vinculadas aos desafios selecionados a frustração não é menor. As prioridades/metas apresentadas são de modo geral muito limitadas como resposta aos desafios apresentados e por vezes assumem um caráter muito genérico. O desafio "Reduzir a vulnerabilidade das crianças e de adolescentes em relação a todas as formas de violência, aprimorando os mecanismos de efetivação dos seus direitos sociais e culturais" apresenta apenas duas prioridades/metas, que não abarcam o desafio proposto: "Atender 323.400 estudantes do Ensino Fundamental e Médio em Práticas Desportivas" e "Atender 1,0 milhão de Crianças e Adolescentes Retiradas do Trabalho Infantil". Ou seja, não são prioridade: o combate ao abuso e a exploração de crianças e adolescentes e a proteção social à infância, adolescência e juventude.

A política de lenta recuperação do salário mínimo definida para este ano é outro ponto de destaque do PLDO 2006. Fica mantido o aumento real do salário-mínimo em percentual equivalente ao crescimento real do PIB per capita em 2005, muito aquém da promessa de campanha do atual governo, que estabelecia como meta dobrar o valor real do salário-mínimo.

Assim, o que se percebe neste projeto é o aprofundamento do modelo econômico vigente que impede o pagamento da histórica e imensa dívida social, e que teve como conseqüências a concentração da riqueza, a reprodução das injustiças e o agravamento das desigualdades. Só a mudança da política econômica possibilitará o verdadeiro enfrentamento das injustiças e desigualdades sociais.

(1) CONGRESSO NACIONAL. Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, Consultoria de Orçamento, Fiscalização e Controle do Senado Federal.NOTA TÉCNICA CONJUNTA Nº 05/2005 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE OS LIMITES DE RECEITA E DESPESA PREVISTOS NO PROJETO DE LDO PARA 2006 Núcleo de Assuntos Econômico-Fiscais e Grupo de Política Fiscal.


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