Uma parte relevante da possibilidade de efetivação dos nossos direitos, como direitos universais, depende de que o Estado cumpra o seu papel no desenvolvimento de políticas públicas que respondam a estes direitos. Estamos falando do direito de todas e de cada uma das pessoas, e não daqueles a que uma parte da população tem acesso e outra não, seja porque é pobre, ou porque é mulher, ou negra, ou por qualquer outro motivo. Porque, por princípio, o direito é de todos e todas, senão, é privilégio.

Se a saúde está consagrada constitucionalmente como direito de tod@s e dever do Estado, assim como a educação, a proteção contra todas as formas de violência, a garantia de um salário mínimo que atenda às necessidades vitais básicas d@ trabalhador/a e sua família (moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social) entre tantos outros direitos, é necessário que as políticas, assim como os recursos públicos, estejam orientados a responder a estes direitos.

Para assegurar a tod@s o efetivo exercício dos seus direitos, na sociedade brasileira, que amarga os mais altos graus de desigualdade do planeta - herança viva do passado colonial, escravocrata e patriarcal - é preciso que o Estado reúna recursos e promova a sua redistribuição, enfrentando as desigualdades de gênero, raça e classe. É fundamental orientar as políticas públicas como um todo - econômicas e sociais - para eliminar as bases das desigualdades e os mecanismos que produzem a pobreza, a exclusão e a subordinação, bem como para promover a cidadania como sujeito e beneficiária do desenvolvimento humano.

As políticas específicas ou setoriais, até agora, têm se mostrado ineficientes na busca da igualdade, porque não incorporam o caráter estrutural das relações de gênero, raça e classe na produção das desigualdades. Os diferenciais sócio-econômicos que separam mulheres de homens têm avançado a passos lentos, e no que se refere à separação entre população branca e negra os resultados são infinitamente mais tímidos. Quando se enfoca o problema na sua multidimensionalidade, o quadro é ainda mais drástico, revelando o abismo que aparta a situação vivida pelas mulheres negras da dos homens brancos.

Neste sentido, o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), apresentado pelo Governo Federal no final de 2004, embora tenha o mérito de, pela primeira vez, integrar as várias ações governamentais para a igualdade de gênero, ainda é insuficiente. A diretriz do Plano que orienta à transversalização das questões de gênero em todas as políticas públicas, ainda carece de ferramentas essenciais para desenvolver, monitorar e avaliar as ações governamentais na perspectiva de superação das desigualdades. Hoje, a ação do governo é desenvolvida, em sua quase totalidade, sem conhecer ou problematizar os impactos que elas produzem sobre as iniqüidades de gênero. E o mesmo se pode dizer sobre a questão racial. Dos 369 programas e ações governamentais, somente 23 são específicos para as mulheres ou têm um enfoque de gênero, ou seja, menos de 7%.

Ademais, embora o PNPM esteja alicerçado em pressupostos e diretrizes democráticas, firmadas na Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, as metas e ações concretas que se erguem sob esta base são estreitas. Isto se deve, também, ao papel reduzido que o Estado decidiu assumir na promoção da igualdade e do bem-estar, além de terem que enfrentar as resistências de estruturas fortemente setorializadas de desenvolvimento das políticas públicas.

O ajuste fiscal e a manutenção das altas taxas de juros são prioridades econômicas que estão definidas em si mesmas, livre dos princípios democráticos de igualdade, solidariedade, respeito à diversidade e justiça social.

As críticas feministas ao divórcio que se produz entre a política econômica e a política social - a primeira estando a serviço das dinâmicas de mercado e a segunda, com o que sobra, respondendo às necessidades sociais - têm orientado a formulação de novas propostas capazes de promover a eqüidade. A partir de tais críticas, estão sendo elaborados parâmetros e variáveis de gênero e étnico-raciais que revelam as proporções inversas que orientam, de um lado a arrecadação e mobilização de recursos para a receita pública, e de outro, a conversão destes recursos na garantia de bem-estar.

Essas análises vêm denunciando como as políticas macroeconômicas têm lançado mão das relações hierárquicas de gênero e raça para potencializar resultados em termos de gasto, receita e endividamento público, no marco do ajuste fiscal. Afinal, se os recursos tomados das políticas de bem-estar social, para realizar o ajuste, precarizam os serviços de saúde e tornam reduzida a oferta de vagas na educação infantil (apenas para citar dois exemplos), essas mesmas responsabilidades são transferidas, na forma de sobrecarga, do Estado para a esfera doméstica, recaindo, sobretudo, nos ombros das mulheres, e notadamente das mulheres negras que, por estarem nos estratos mais pobres da população, não têm como adquirir, no mercado, os serviços de creche privada ou de planos de saúde.

As críticas do feminismo também vêm dando visibilidade à contribuição das mulheres para o bem comum, forçando o reconhecimento e valorização do trabalho não remunerado das mulheres, no âmbito doméstico e da comunidade. Os instrumentos criados a partir de tais análises servem à denúncia, tanto quanto à adoção de medidas para enfrentar as assimetrias. Se as relações assimétricas de gênero, assim como as de raça, têm sido elementos fundamentais à exploração do trabalho e à concentração da riqueza, a equidade de gênero e étnico-racial têm de ser um elemento central da agenda de transformação social. E isto demanda transformações culturais profundas, tanto na vida privada, quanto na esfera pública.

Entendendo a dinâmica do Orçamento Público, incidindo sobre os processos de arrecadação e distribuição dos recursos públicos, desde uma perspectiva feminista de transformação social, aspira-se responder à emergência de garantir já o financiamento de políticas públicas para as mulheres sem, entretanto, perder de vista a estratégia e o objetivo de construir uma outra economia, outra sociedade, outra política, onde a dignidade e os direitos humanos prevaleçam.


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