Filósofa moldou o conceito que desnaturalizou a dominação sobre o corpo feminino – e analisou suas paradoxais “delícias e prazeres”. É preciso compreender a complexa colonização interior, diz, para criar as condições para a transformação

“Um homem não teria a ideia de escrever um livro sobre a situação singular que ocupam os machos na humanidade. Entretanto, cada vez que uma mulher quer escrever sobre sua situação, ela é obrigada a declarar ‘sou uma mulher’”.
Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo

Por Bruna Della Torre, no Blog da Boitempo

Uma das coisas mais aviltantes no currículo das humanidades no Brasil hoje é a ausência de Simone de Beauvoir como um clássico das suas principais disciplinas. Intelectuais mulheres costumam ser enquadradas na particularidade da literatura feminina ou de gênero (ou de raça, como acontece com Angela Davis e tantas outras autoras), subdisciplinas ou especialidades que buscam conter, em sua circunscrição institucional, curricular e cada vez mais mercantil, a potência que esses pensamentos possuem não só de atravessar áreas do conhecimento, mas de revirá-las do avesso e expor as orientações políticas de nossa formação. Nessa chave, podemos afirmar que tudo aquilo que designa um lugar particular para o feminismo, seja uma disciplina, um cargo, um centro de estudos, ou uma teoria – embora esses elementos sejam mais necessários no Brasil nos tempos recentes e também resultado de muita luta das mulheres –, atesta, ao mesmo tempo, que nossas universidades e currículos universitários não são ainda eles próprios feministas, uma vez que o feminismo, além de ser um dos campos de estudos mais originais da atualidade, é acima de tudo uma perspectiva teórica e política que exige que a totalidade do processo social seja reexaminada e reorganizada à luz de suas descobertas. Mais do que um “identitarismo”, ele é uma perspectiva que revela a particularidade inscrita no cânone.

O livro On ne naît pas soumise, on le devient [Não se nasce submissa, torna-se], publicado em 2018, de Manon Garcia, atualmente professora da Freie Universität em Berlim, oferece uma contribuição fundamental. Como se sabe, Beauvoir revolucionou o pensamento social por ter sido uma das primeiras intelectuais a destacar como o que hoje chamamos de gênero não é um dado natural, mas uma construção social e subjetiva poderosa, em torno da qual a nossa sociedade (e o próprio capitalismo) se organiza. A ideia de que “não se nasce mulher, torna-se”, palavra de ordem da obra da autora e hoje quase um chavão, é um fato que cada geração descobre e redescobre à sua própria maneira – um encontro que continua mudando inúmeros destinos. E, que, ainda hoje, escandaliza a extrema direita. No entanto, ao invés de referir a obra de Simone de Beauvoir, especialmente O Segundo Sexo, unicamente ao debate fundamental de gênero, Garcia expõe o diálogo de Simone de Beauvoir com a filosofia política em sentido mais particular, deslocando a obra da autora para um lugar do qual é repetidamente excluída.

Manon Garcia aborda a filosofia de Beauvoir a partir do conceito de “submissão”. Imersa nos debates políticos da Europa nos últimos anos, nos quais o fascismo assume também a forma da islamofobia – que projeta sempre no outro, nas mulheres muçulmanas, por exemplo, a submissão –, Garcia faz uma série de provocações à sociedade ocidental que se pensa como livre:

De Penélope tecendo seu manto ao esperar Ulisses à Anastásia deleitando-se com as ordens de Christian Grey, de A vida sexual de Catherine M. à série Desperate Housewives, de L’Occupation de Annie Ernaux às atrizes que reivindicam o “direito de serem importunadas” pelos homens, as mulheres, a literatura, o cinema e as séries televisivas; a atualidade põe em cena e estetiza uma submissão feminina escolhida, por vezes até mesmo reivindicada, fonte de satisfação e de prazeres […] Não há submissão no fato de passar fome para caber numa calça 36?”

Segundo Garcia, além de Étienne La Boétie e de Sigmund Freud, apenas Beauvoir levou a sério esse tema enquanto um problema político – um dos maiores tabus da sociedade moderna e de sua filosofia, que se autodefinem a partir dos conceitos de “autonomia” e de “liberdade”. Ou seja, mais espinhoso que o problema da “dominação” (haja vista a má reputação de que gozam as vertentes do marxismo que ressaltam demasiadamente esse aspecto) seria o problema da “submissão”, aquilo que La Boétie chamou de “servidão voluntária”, um debate que parte do marxismo também evita a qualquer custo. De acordo com Garcia, Beauvoir penetrou esse lado obscuro da modernidade, com o qual certamente nos incomodamos, mas que nem por isso deixa de ser central para a compreensão do modo como vivemos e pensamos sobre nós mesmas.

Vale ressaltar que, para Garcia (e Beauvoir), só há submissão quando a violência não domina completamente. Passando por pensadoras como Gayatri Spivak e Judith Butler, a autora ressalta como a filosofia de Beauvoir não pode ser simplesmente transposta para mulheres não-heterossexuais, racializadas, colonizadas e subalternizadas. Então, não se trata de generalizar o argumento, mas investigar a submissão em sua dupla dimensão: estrutural, ligada à dominação masculina, e individual, na medida em que as mulheres – algumas delas – possuem uma margem de manobra legal e social para que seja possível referir-se às suas ações como consentidas. Ou seja, trata-se de estudar a submissão nos espaços em que reina ainda algum tipo de privilégio. De acordo com Garcia, Beauvoir analisa o fenômeno sem julgamento moral, mas concentra-se, ao invés disso, na submissão enquanto experiência, em como ela se manifesta e em como ela é vivida pelas mulheres. Nesse sentido, seria possível afirmar que a submissão é um comportamento prescrito e uma experiência cotidiana comum e bastante disseminada.

Garcia destaca que Beauvoir segue Marx ao pensar a dominação não apenas a partir da perspectiva de quem domina, mas de quem é dominado, uma vez que um dos primeiros traços da dominação é fazer com que o ponto de vista das pessoas oprimidas apareça como minoritário ou irrelevante – o que também reposiciona Beauvoir como uma teórica marxista da ideologia. Além disso, Beauvoir ampliaria os conceitos de alienação e reificação ao debater como a submissão estaria ligada ao processo de objetificação das mulheres – para além do âmbito do trabalho. Uma objetificação que teria, inclusive, uma dimensão corporal.

O Segundo Sexo, sublinha Garcia, mostra, adiantando vários temas que apareceriam nas obras de Gayle Rubin e Butler, como “as mulheres são consideradas como objetos de troca no casamento e no parentesco […] como as mulheres são transformadas em objetos de desejo nos mitos e na literatura”. “No capítulo que consagra aos mitos”, destaca a autora, “Beauvoir mostra que a objetificação constante das mulheres nos mitos é uma objetificação constante de seus corpos; o corpo feminino é considerado tanto uma presa, como uma fonte de repulsa e uma propriedade. Em todos os casos, é ao fazer do corpo das mulheres um objeto que os homens constituem uma imagem de si mesmos como sujeitos, como heróis, como guerreiros”. Essa alienação tem a ver com uma vida dupla, diz Garcia, experimentada pelas mulheres como se elas vivessem, simultaneamente, em primeira pessoa, como sujeitos e em terceira, como objetos que se constituem diante do olhar masculino, cujo peso como índice de autovalidação ainda é massacrante para grande parte das mulheres no século XXI. A dialética entre sujeito e objeto, presente em Hegel e Marx, ganharia aqui uma nova configuração. É essa vida dupla que faria com que o amor heterossexual exigisse sempre uma espécie de “demissão do eu” por parte das mulheres. Garcia aprofunda essa tese de Beauvoir, num artigo traduzido por Ana Flávia Bádue e que pode ser encontrado aqui. Nesse sentido, Beauvoir abriria igualmente espaço para pensar o corpo, assim como a própria condição de “mulher”, como “situação”, como corpo vivido no qual a submissão inscreve-se como cicatriz, e não dado biológico.

A submissão é um conceito problemático, pois além de expor o outro lado do conceito de liberdade, desfaz a antinomia entre estrutura e agência, dominação e resistência que orienta, em linhas gerais, nossa maneira de pensar a vida social e por isso é varrido para debaixo do tapete nas ciências sociais contemporâneas. Conforme mostra Garcia, Beauvoir reconhece todos os elementos materiais nos quais se assenta a dominação masculina, mas ressalta também que a submissão envolve delícias e prazeres. Isso envolve, no pensamento de Beauvoir, superar a ideia de que as mulheres são uma vítima passiva da opressão e ressaltar que há sim vantagens em determinados aspectos nessa “situação”.  A filósofa fala em “delícias da submissão”, a partir das quais é possível apontar uma virada dialética na qual a submissão apresenta-se como a única forma, a principal ou a maneira mais fácil de conseguir algum poder numa sociedade de dominação masculina. Mas essa agência, diz Garcia, é uma agência que aprofunda a condição de submissão. Nas palavras de Garcia, “o condicionamento social está sempre presente – e, nesse sentido, o pensamento de Beauvoir é resolutamente antiessencialista –, mas ele se sedimenta no pensamento das mulheres como uma espécie de colonização interior”. De um lado, portanto, as mulheres possuem razões estruturais para se submeter e sua “situação” pode ser referida menos a uma escolha que a um consentimento. De outro, a liberdade – e aí encontramos uma mistura de veracidade com voluntarismo tanto em Beauvoir quanto em Garcia – “não é um dado, mas qualquer coisa que se deve conquistar”. Ainda nas palavras de Garcia, “ser livre é se projetar no mundo. Por consequência, a liberdade traz riscos, ela exige que se tenha coragem e confiança em si necessárias para assumir um projeto e para se atirar num mundo indeterminado no qual o sucesso desse projeto não está garantido”.

O livro de Garcia demonstra como Beauvoir historiciza a submissão das mulheres e, ao fazê-lo, desnaturaliza-a e aponta para a possibilidade de refletir sobre o gênero e para a diferença sexual como produto – e não como fonte – da dominação social, de modo que a dominação e a submissão seriam as formas pelas quais essa diferença de gênero se constrói e se repõe. A ideia é expor e debater a submissão como uma maneira de reconhecê-la, refletir sobre as dores e os prazeres (elemento que preferimos não reconhecer) que ela oferece e, assim, criar as condições para uma transformação social. É importante ressaltar que, embora esse tipo de abordagem de Beauvoir remeta às noções de “situação”, “liberdade” e “decisão” sartreanos, segundo Garcia, sua reflexão não recai no mesmo tipo de existencialismo de seu companheiro, uma vez que ser livre, em sua acepção, é conhecer a realidade e seus limites e, assim, poder agir sobre eles. Ainda assim, falta no livro de Garcia uma discussão mais ampla a respeito de um projeto radical e coletivo de transformação social e da relação da obra de Beauvoir e de seu feminismo com o socialismo.

Se a posição de Simone de Beauvoir na filosofia política é mais uma razão para que ela – junto de outras autoras – entre nos currículos universitários, há, entretanto, um elemento suplementar que reinsere sua obra e a de Garcia no cerne dos debates contemporâneos. Esses estudos sobre a submissão feminina são essenciais para a reflexão sobre a extrema direita hoje. Que exista um movimento de homens “redpillados” que desejam repor as relações de dominação erodidas ao mesmo tempo pelo neoliberalismo e pelas lutas feministas é, apesar de misógino e deletério, compreensível no escopo do desejo de manutenção da dominação masculina. Mas que cada vez mais mulheres engajem-se nos movimentos de extrema direita cujas pautas envolvem as principais instituições de dominação das mulheres, como a igreja, a família, a monogamia, a heterossexualidade etc., é tema necessário de investigação para as ciências humanas e o marxismo contemporâneos. Grupos como “Moms for Liberty” nos Estados Unidos e o grande número de mulheres apoiadoras de Bolsonaro (assim como a possibilidade de alguém como Damares Alves ou Michelle Bolsonaro o sucederem na liderança da extrema direita nos próximos anos) impõem uma série de desafios para a interpretação da política contemporânea. Se sabemos, por um lado, que o patriarcado é uma estrutura que não é imediatamente redutível aos homens em geral e, portanto, tampouco exclui as mulheres de sua reprodução, por outro lado, o devir feminino da extrema direita – antecipado por Marine Le Pen e recentemente efetivado por Giorgia Meloni – demonstram que a “submissão”, ainda que como pastiche da liberdade (lema de todos esses grupos), é não só um tema relevante, mas uma das maiores ameaças políticas que enfrentaremos nos próximos anos.

Referência bibliográfica

GARCIA, Manon. On ne naît pas soumise, on le devient. Paris: Flammarion, 2018, 272p.


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