Quase lá: Incontestável missão histórica

Virgínia Feix
Advogada, especialista em sociologia jurídica e direitos humanos, mestre em direito, assessora técnica da Themis- Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, coordenadora da Comissão Jurídica das Jornadas

Depois de participar do processo de ampliação dos marcos políticos e jurídicos sobre os direitos reprodutivos em nível internacional, produzidos nas Conferências de Cairo e Beijing, o movimento feminista brasileiro conquistou, na I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, o compromisso do governo brasileiro em defender e propor a revisão da legislação punitiva do aborto vigente em nosso País.

Tal compromisso, que se refletiu na instalação de uma Comissão Tripartite (Poderes Executivo e Legislativo e Sociedade Civil), em abril passado, tem por objetivo produzir os meios para garantir esta transformação tão necessária e cara às lutas feministas de todos os tempos.

Diante desta conjuntura, as Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, que vêm atuando com grande êxito para a incorporação e visibilidade da defesa do direito ao aborto na agenda nacional, viram-se diante de mais uma incontestável missão: a apresentação à sociedade brasileira de uma proposta política que traduzisse sua posição sobre a descriminalização e a legalização do aborto.

A proposta "Garantia do aborto por decisão da mulher até a 12ª semana de gestação; excepcionalmente até 20 semanas em casos de violência sexual; ou em qualquer tempo em casos de risco de vida, grave risco à saúde da mulher ou de má formações fetais incompatíveis com a vida, a ser realizado por profissional legalmente habilitado, nos estabelecimentos de saúde das redes pública e privada" foi encaminhada a uma Comissão Jurídica composta por juristas feministas e aliados(as) do movimento, para construção de fundamentação jurídico-filosófica e de um instrumento legislativo que a traduzisse.

A Comissão Jurídica trabalhou na perspectiva de três abordagens: argumentos de Direito Constitucional; de Direito Penal e Política Criminal e, por fim, de Direito Internacional.

Em termos da Constitucionalidade, o direito ao aborto funda-se no princípio da laicidade do Estado e no marco dos direitos reprodutivos que envolvem direitos civis e políticos (direito à vida não só biológica, mas também digna; igualdade; liberdade; privacidade e autonomia) e econômicos e sociais das mulheres (saúde integral).

Os argumentos de Direito Penal e Política Criminal dirigem-se à eficácia da criminalização desta conduta, que embora tipificada no Código Penal é, por um lado, largamente praticada pelas mulheres, e, por outro, muito raramente investigada ou punida pelo Estado. Questiona-se aqui critérios de adequação social da norma penal em termos de proteção ao bem jurídico socialmente tutelado: o embrião ou o feto. Demonstra-se que a tutela deste bem jurídico, através do Direito Penal, não cumpre seu principal objetivo, mas, de forma inequívoca, promove lesão a outros bens jurídicos também constitucionalmente e penalmente protegidos: a vida e a saúde das mulheres.

Na linha do Direito Internacional, os argumentos revelam e impõem a observação dos compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro, com a decorrente adequação aos padrões legislativos determinados pelas Plataformas de Ação de Cairo e Beijing e pela própria CEDAW.

Definida a linha argumentativa de sustentação da proposta, passou-se a elaborar o anteprojeto de lei e sua justificativa.

Em termos práticos, apresentaram-se inúmeras questões que não estavam contempladas na generalidade da proposta e que obrigaram as Jornadas a fazer escolhas que refletem a estratégia político-jurídica adotada. Esta estratégia baseou-se na necessidade de articular três dimensões: coerência ideológica feminista; viabilidade jurídica e viabilidade política.

Em relação à primeira dimensão, as escolhas não poderiam confrontar princípios e bandeiras historicamente defendidas pelo movimento de mulheres em relação à liberdade e autonomia sexual e reprodutiva.

Na dimensão da viabilidade jurídica colocava-se a questão da constitucionalidade do anteprojeto, ou seja, a possibilidade de sua sustentação dentro dos marcos constitucionais vigentes, já que o princípio democrático garante a alteração da lei penal pelo Congresso Nacional.

Em relação à viabilidade política, as escolhas refletiram o interesse de que, sem ferir as duas primeiras dimensões, o anteprojeto possa conquistar as necessárias alianças para sua aprovação legislativa.

Uma das escolhas mais complexas e de difícil aprovação no teste das "três dimensões" é a que se encontra implícita na decisão de limitar o direito ao aborto a prazos e circunstâncias relacionados à situação gestacional. Trata-se do reconhecimento de que este direito da mulher não é absoluto, embora preponderante, quando se afirma ser constitucionalmente viável dar mais valor à uma vida plena em dignidade e direitos, em relação a uma vida humana em potencial.

Diante disso, buscou-se construir o anteprojeto das Jornadas na perspectiva da democracia deliberativa, ou seja, a partir da idéia de que as decisões a serem tomadas devem resultar de um profundo debate de argumentos racionalmente apresentados. Neste processo é possível garantir a diversidade de posicionamentos e, dialogicamente, fortalecer e aperfeiçoá-los pela reflexão sobre a diferença entre argumentos que se dá com o reconhecimento e respeito ao outro como interlocutor, condição necessária para construção de consensos. Através de poucos encontros presenciais e a potencialização de encontros virtuais articulados via internet (Listas Lume e Vitória Régia) desenvolvemos um processo riquíssimo, que possibilitou e promoveu, simultaneamente, a desacomodação e a consolidação de posicionamentos.

O resultado deste processo possibilita às Jornadas a apresentação de uma proposta consistente e enxuta à sociedade brasileira, alicerçada no consenso necessário para que possamos enfrentar os próximos passos desta luta pela legalização e descriminalização do aborto com segurança, unidade e garra.


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