No Dia dos Povos Indígenas, artistas cearenses refletem sobre desafios e possibilidades de formação e acesso à cultura

 

Escrito por Ana Beatriz Caldas Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. 
 
 
Indja, Byya Kanindé e Merremii Karão Jaguaribaras
Legenda: Indja, Byya Kanindé e Merremii Karão Jaguaribaras
Foto: Divulgação
 

Uma artista visual que descobriu sua ancestralidade indígena por meio da pintura e do desenho. Uma fotógrafa que retrata o cotidiano de seu povo e impulsiona outros jovens talentos a chegarem longe. Uma socióloga e artesã que aprendeu a fazer e valorizar a alquimia e a pintura corporal em casa, mas decidiu expandir os horizontes e levá-las para outros lugares. 

Os caminhos traçados pelos artistas indígenas no Ceará são diversos, assim como as etnias que compõem o Estado. Mas, em comum, todos têm o mesmo objetivo: enaltecer e compartilhar a potência criativa originária, ocupando espaços que vão das próprias aldeias a exposições em cidades de todo o País.

Neste Dia dos Povos Indígenas, celebrado em 19 de abril, o Verso traz três histórias que retratam como se dão algumas dessas trajetórias: da retomada ancestral por meio de uma pesquisa de si e do coletivo, passando por uma conexão que aproxima diferentes territórios, linguagens e costumes e a demarcação de uma arte indígena contemporânea.

IDENTIDADE E ANCESTRALIDADE 

Indja é artista visual e performer
Legenda: Indja é artista visual e performer
Foto: Divulgação

Desde pequena, a artista visual Gabriel Silva, 27, a Indja, encontrou nas artes um meio para se fortalecer e se expressar em meio aos desafios. Na infância e adolescência em Juazeiro do Norte, fez teatro, se apaixonou pelo desenho de moda e começou a elaborar as primeiras pinturas em casa, com o incentivo de uma tia. O que ela ainda não sabia, na época, é que esse interesse a levaria a descobertas profundas sobre a origem de sua família.

Foi no início da vida adulta, durante o curso de Artes Visuais da Universidade Regional do Cariri (Urca) que, pela primeira vez, um amigo lhe perguntou se ela já tinha pensado em desenhar ou pintar alguém que tivesse sua cor de pele e seus traços físicos. Até então, de forma inconsciente, as obras que produzia eram sempre de pessoas brancas – como os membros da família de sua mãe, com quem cresceu.

Quando pequena, Indja recebia apelidos pejorativos pelos traços físicos. Adulta, ela ressignificou a dor e adotou um deles como nome artístico
Legenda: Quando pequena, Indja recebia apelidos pejorativos pelos traços físicos. Adulta, ela ressignificou a dor e adotou um deles como nome artístico
Foto: Arquivo pessoal
 
 

“Minha mãe, minha tia, meu avô e as fotografias que eu tinha eram as minhas referências na época, porque eu não tinha tanta proximidade com a família do meu pai”, explica. Do outro lado da família, se sabia que havia uma ancestralidade indígena, mas os detalhes eram poucos; muito da história havia sido apagada pelo tempo.

A partir da provocação, Indja decidiu começar a se autorrepresentar nas imagens, dando início a um trabalho que, pouco depois, se dedicaria a retratar pessoas afro-brasileiras e afro-indígenas. “Comecei a pesquisar sobre grupos étnicos africanos e, nas minhas pesquisas, começaram a surgir etnias indígenas. Assim, comecei a descobrir que essa era a minha pesquisa de vida”, lembra.

Enquanto pesquisava na academia, Indja também se voltou para os próprios familiares em busca de respostas. Ao conversar com o pai, soube que seu bisavô era da etnia Paiacus e que havia residido em uma aldeia em Morada Nova. Na década de 60, durante uma era de forte urbanização no Ceará, seu avô mudou para Fortaleza e, posteriormente, a família foi para o Cariri.

 “A medida em que a minha arte aparecia, eu comecei a fazer a minha retomada indígena e a minha espiritualidade se fortaleceu. Há uma grande dificuldade hoje de se reconhecer indígena hoje, porque os processos e a sociedade impedem que a gente chegue nisso”, destaca.

Os trabalhos de Indja focam na representatividade de pessoas afro-indígenas e afro-brasileiras
Legenda: Os trabalhos de Indja focam na representatividade de pessoas afro-indígenas e afro-brasileiras
Foto: Arquivo pessoal
 
 

Atualmente, Indja trabalha com artes visuais, instalações e performance, e se prepara para transformar a pesquisa que desenvolveu na Urca – “Desinvibilização do ser: relatos da busca ancestral através das artes visuais” – em um projeto de mestrado. O estudo mapeou a história das etnias indígenas no Ceará, bem como mapas dos territórios de povos originários, e de sua própria família, que também têm raízes na etnia Kariri.

 
Essa retomada foi um momento muito emocionante para o meu pai, porque ele sempre soube dessa ancestralidade, mas não era uma coisa acesa. Ele também sempre foi ‘comparado’ a um indígena, assim como meus quatro tios. Todos eles ficaram em um momento de felicidade. mesmo – tanto de se interessar pela própria história quanto de buscar essa retomada.
Indja
 

Em suas obras, a artista explica, há uma busca pela representatividade de corpos indígenas, mas também protesto contra as violências pelas quais esses corpos e culturas passam desde a colonização; as diferentes linguagens artísticas são suporte para expressar beleza e ancestralidade, mas também denúncia.

Ainda em processo de retomada, Indja acredita que processos artísticos podem ajudar outras famílias que tiveram suas histórias apagadas. “A arte nos possibilita conhecer outros campos e outras áreas de conhecimento: a história, a geografia, a medicina, a física. Através da arte, eu estudei antropologia, história da arte, a história indígena do Ceará e do Brasil. Foi através dela que eu tive acesso a um aparato para conhecer a minha ancestralidade”, pontua.

CONEXÃO ENTRE ETNIAS INDÍGENAS CEARENSES

Autorretrato é uma das técnicas utilizadas
Legenda: Autorretrato é uma das técnicas utilizadas
Foto: Reprodução/Byya Kanindé
 
 

Um curso realizado na aldeia onde morava, em Aratuba, foi o responsável por fazer Byya Kanindé, 21, se apaixonar pela fotografia. Na época, ainda criança, ela nunca tinha visto uma câmera, nem imaginava que aquilo pudesse virar profissão; foi o incentivo de registrar o cotidiano e os costumes de seu povo que despertou sua curiosidade.

“Vi que era uma forma de registrar e demarcar o nome do território indígena e do meu povo e fui pegando experiência sozinha mesmo, testando”, afirma. Por quase uma década, fotografou de forma autodidata, como um hobby. 

Em 2021, no entanto, algo mudou. Junto a outros dois jovens indígenas e dois indigenistas cearenses, Byya decidiu que era hora de levar os talentos artísticos dos povos originários a um outro patamar. Foi assim que surgiu o Coletivo Tamain, plataforma que visa reunir e capacitar a juventude indígena para ocupar editais e espaços artísticos.

“Nosso intuito é reunir artistas indígenas para trocar conhecimento e um ajudar o outro a adentrar os espaços culturais, como os laboratórios da Porto Iracema e exposições coletivas, por exemplo”, conta. 

Por meio do esforço coletivo, a própria Byya conseguiu acessar o Laboratório de Artes Visuais da Porto Iracema, onde pesquisou saberes relacionados a plantas medicinais.

“Através do coletivo e junto da Porto eu consegui ir criando espaço e voz diante da fotografia, mostrando os saberes do meu povo, o que a fotografia pode trazer e também a importância de uma política pública para a gente poder falar do nosso dia a dia, da nossa realidade, dos problemas climáticas, dos problemas que passamos no território, do nosso dia a dia, saberes, alimentação. Essa é uma forma de resistência e demarcação nesses espaços”, reforça.

A fotógrafa desenvolveu estudos sobre plantas medicinais
Legenda: A fotógrafa desenvolveu estudos sobre plantas medicinais
Foto: Reprodução/Byya Kanindé
 
 

Atualmente, Byya Kanindé trabalha e pesquisa técnicas de fotografia com colagem e sobreposição, além de coordenar o Coletivo Tamain, que periodicamente realiza grupos de estudos virtuais e consultorias para jovens indígenas que buscam se profissionalizar e viver da arte que produzem. “Muitas pessoas falam com a gente através da nossa página. Virou uma ponte”, explica.

O grupo já organizou uma exposição coletiva em parceria com o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) e, atualmente, está com inscrições abertas para o Intercâmbio Retomada Tamain, programa realizado através de recursos da Fundação Nacional das Artes (Funarte) que beneficiará 15 jovens com uma vivência formativa de três dias na Aldeia Japuara, em Caucaia. 

“Nossa ideia é trazer jovens que estão nas aldeias e que, muitas vezes, não tem voz na aldeia e nem nos espaços culturais. Queremos trazê-los para dentro desse mundo e falar da importância da arte que ele realiza, porque muitas vezes eles pensam que não é nada”, ressalta Byya. 

“É uma oportunidade para que eles sintam as outras linguagens da arte e aprofundem esse conhecimento, trazendo também um retorno pra aldeia indigena, pois eles irão repassar esses saberes”, conclui.

 
[As políticas públicas] chegam, mas só chegam para alguns. Muitas vezes, é muito difícil acessar o edital, pelo fato de ele ser difícil de se inscrever e a gente não ter um conhecimento aprofundado sobre isso. Há também a questão da distância, de sair do território, e os cursos para nós são muito poucos. Eu penso assim: por que não abrir um curso só para pessoas indígenas e ele vir para a aldeia, para territórios e comunidades tradicionais? Não é só a gente ir, mas eles virem até nosso território.
Byya Kanindé
fotógrafa e coordenadora do Grupo Tamain

A LUTA PELA ARTE INDÍGENA CONTEMPORÂNEA

Merremii é socióloga, artesã e artista visual
Legenda: Merremii é socióloga, artesã e artista visual
Foto: Arquivo pessoal
 

Nascida em uma família de escultores, desenhistas, pintores e artesãos, a socióloga e artista visual Merremii Karão Jaguaribaras, 31, teve contato com a arte desde cedo. Na Aldeia Feijão, em Canindé, onde reside até hoje, aprendeu a produzir bebidas e tintas naturais, conhecimento passado pelo avô, que vem de “uma linhagem alquimista”, conta.

Mas foi só na idade adulta que começou a acessar outros ambientes artísticos, conhecer e produzir artes visuais. “A gente chama nossa arte de ‘taowa’, e essa veio do meu berço, desde que me entendo como ser vivo. Até então, o meu próprio corpo era minha tela, mas comecei a ver a possibilidade de passar o que pintava para a tela”, explica.

Por volta de 2019, começou a levar sua arte a equipamentos culturais na Capital, como a Escola Porto Iracema das Artes – onde foi aluna do Laboratório de Artes Visuais em 2021 –, o Museu de Arte Contemporânea e, anos depois, a Pinacoteca do Ceará e espaços artísticos em outras cidades, como Recife e Brasília.

Obras
Legenda: Obras "Metamorfose" (2022) e "Radiosa" (2023), expostas na OMA Galeria (SP) e no Banco do Nordeste, respectivamente
Foto: Reprodução/Merremii Karão Jaguaribaras
 
 

Hoje, a artista realiza palestras, oficinas e também é mestranda em Humanidades na Unilab, onde produz pesquisa sobre arte indígena na contemporaneidade e ressalta a inventividade e atualidade da produção dos povos originários. “Há um contraponto que diz que nossa arte não é contemporânea, mas isso é um clichê. Então, a gente bate nessa tecla”, comenta.

Ocupar outros espaços artísticos fora da aldeia, para Merremii, é estratégia para quebrar estereótipos sobre costumes e produções indígenas. A artista conta que, muitas vezes, ao sair com pinturas corporais, foi maltratada e ignorada. Por isso, decidiu usar a produção artística como ferramenta de conscientização e luta.

“Por estar pintada, você é confundida com uma vândala. Estou utilizando a arte, principalmente as pinturas corporais, para quebrar esse estereótipo e mostrar a nossa diversidade. Porque não usamos a arte apenas como estética, mas como espiritualidade”, ressalta.

Para Merremii, a possibilidade de estar em equipamentos culturais convencionais em cidades como Fortaleza é parte de uma valorização da linguagem artística indígena e importante contraponto ao olhar colonizado. “Decidi que vou levar a temática indigena onde for, por conta da invisibilidade que ainda temos. Porque, como o sistema colonizador afetou as nossas vivências, também afetou os espaços artísticos”, pontua.

Porém, o caminho para acessar esses espaços, apesar de um pouco mais fácil, ainda é tortuoso, destaca Merremii. “É preciso que invistam na simplificação dos editais e que os equipamentos se atualizem, para que a gente possa acessar esses ambientes”, completa.

 

fonte: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/verso/arte-indigena-no-ceara-une-forca-ancestral-com-a-pluralidade-cultural-e-luta-por-mais-espaco-1.3502784

 


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