Para que as árduas conquistas do movimento feminista não sejam perdidas e as mulheres possam continuar a ocupar legitimamente cada vez mais espaços importantes em todos os setores da sociedade, é necessário que o feminismo reconheça e abrace a mulheridade de mulheres trans e travestis.

 

Por Gabrielle Werner, professora da Escola de Engenharia de Lorena (EEL) da USP

  Publicado: 15/03/2024

 

Com origem na luta pela igualdade de direitos civis e, em particular, a favor do voto feminino, o Dia Internacional das Mulheres, celebrado no início dessa semana, tem servido como uma importante data para problematizar questões relacionadas à desigualdade de gênero, aos direitos reprodutivos e à violência contra as mulheres. Contudo, terminadas as manifestações, paira inconvenientemente no ar a questão: quem é a mulher que tanto esses movimentos defendem?

Como muito bem disse a ministra Cida Gonçalves em seu pronunciamento sobre o 8 de Março, nós queremos muito mais do que flores. Mas, e quando até mesmo a simbólica flor nos é negada? Esse é, infelizmente, o caso de inúmeras mulheres trans e travestis, que, ao adentrarem algum estabelecimento comercial nessa data, percebem que são as únicas a não receberem essas demonstrações de reconhecimento à sua mulheridade. Portanto, mais de um século após Sojourner Truth denunciar os marcadores de raça e classe que atravessavam os feminismos brancos e eurocentrados, com a célebre fala “E eu não sou uma mulher?”, podemos ainda empregá-la, só que dessa vez incluindo também o cissexismo em nossa denúncia.

Lidar com as questões evocadas pela transgeneridade, como já bem ponderou Susan Stryker, faz com que algumas das hipóteses que foram incorporadas aos princípios do feminismo precisem ser repensadas. Entretanto, ao invés de alargarem as suas definições de mulheridade para abarcarem as mulheres trans e travestis, as ditas feministas radicais transexcludentes (TERFs) ou, como preferem ser chamadas, críticas de gênero, reivindicam a ressencialização da categoria mulher com a sua subsequente redução a características puramente anatômicas. Portanto, para elas, em contradição ao que afirma Simone de Beauvoir, não se torna mulher, nasce-se.

Esses discursos nefastos encontraram respaldo nos setores conservadores dando origem a uma vasta aliança antitrans, que envolve desde setores da extrema direita (bolsonarismo, trumpismo, etc.) a grupos fundamentalistas religiosos e conta até com o apoio de uma parcela da comunidade LGB(T)QIAP+ a favor da exclusão da letra T do acrônimo. Dessa confluência infeliz surge uma intensa campanha de pânico moral, que vem sendo plenamente veiculada pela grande mídia e financiada por nomes como o de J. K. Rowling e E. Musk. Com o intuito de rechaçar a famigerada ideologia de gênero, empregam indiscriminadamente uma série de tropos transfóbicos, como o de que as identidades trans forneceriam uma brecha legal para que homens acessem espaços exclusivamente femininos e cometam crimes sexuais contra mulheres (cis) indefesas.

Curiosamente, apesar de todo esse alarde, não há registros de mulheres trans ou travestis importunando sexualmente nenhuma mulher cis em banheiros. Muito pelo contrário, as notícias que nos chegam são sempre de mulheres trans ou travestis que foram violentamente expulsas desses espaços por mulheres cis. Trata-se de uma das manifestações mais corriqueiras das inúmeras violências e violações dos direitos humanos que nós, mulheres trans e travestis, sofremos todos os dias. Em um país como o Brasil que, pelo décimo quinto ano consecutivo, consagra-se vergonhosamente como o país que mais assassina pessoas trans no mundo, deveríamos estar discutindo políticas públicas no sentido de proteger e garantir direitos à comunidade trans. Não obstante, nossas casas legislativas seguem tentando institucionalizar a transfobia. Só no Congresso Nacional, foram propostos, entre 2019 e 2023, pelo menos 77 projetos de lei antitrans.

Não ache, porém, que esse movimento terminará com a erradicação das pessoas trans da vida pública. Somos apenas a ponta do iceberg. Todo esse combate ferrenho à ideologia de gênero e essa defesa irrestrita da dita família tradicional denunciam ansiedades demográficas e medos sobre a diminuição da natalidade. A ressencialização da categoria mulher é apenas o primeiro passo para renaturalização da ordem sexual cisheteronormativa, que, dentre muitas coisas, justifica a segregação de homens e mulheres nas esferas pública e privada, respectivamente, e sustenta o patriarcado. O passo seguinte já foi dado, com os ataques ao acesso ao aborto legal. Então, para que as árduas conquistas do movimento feminista não sejam perdidas e as mulheres possam continuar a ocupar legitimamente cada vez mais espaços importantes em todos os setores da sociedade, é necessário que o feminismo reconheça e abrace a mulheridade de mulheres trans e travestis.

Não há feminismo sem trans!

 

fonte: https://jornal.usp.br/articulistas/gabrielle-weber/e-quem-pode-ser-mulher-nao-ha-feminismo-sem-trans/

 


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