Dr. Eugênio Pitta Tavares
Médico do Serviço de Aborto Legal do Hospital Agamenon Magalhães

O nosso trabalho junto a mulheres com gestações de alto risco desde 1980 em Recife, nos fez vivenciar situações limites e adotar condutas que não eram citadas nos bancos da escola médica. Em muitas situações críticas as decisões não são difíceis: em gravidez a termo com feto em sofrimento, ou se a gestante tem uma doença hipertensiva de difícil controle e o feto está maduro. A conduta médica de interromper estas gestações não merece muitas discussões e protelar pode até levar a críticas. Entretanto, quando tivemos sob nossos cuidados mulheres portadoras de doenças que poderiam levá-las à morte pela gestação, percebemos a dificuldade que representa a decisão de parar este processo que a princípio deveria ser fisiológico, natural e positivo. Tivemos que fazer consultas ao nosso Conselho Regional de Medicina para sabermos como deveríamos proceder. A legislação pertinente não é ensinada na faculdade. Mas o que acho importante é que mesmo nesta época, não deixamos de resolver estas situações. A equipe médica da Obstetrícia do Hospital Agamenon Magalhães em Recife, sempre tomou decisões, mesmo antes da Secretaria de Saúde do nosso estado regulamentar, através de portaria, o atendimento da mulher nos casos de abortamento previsto em lei. Talvez até por isso é que tenhamos sido escolhidos como unidade de referência.

A implantação do programa de abortamento legal em unidades da Secretaria de Saúde do estado de Pernambuco foi fruto do trabalho da equipe da Divisão de Saúde da Mulher e Adolescente, liderada naquela altura por Drª. Elcilene Leocádio, hoje médica da área técnica da Saúde da Mulher do Ministério da Saúde. E antes da ação administrativa, um debate foi promovido nos serviços que se propuseram a tocar o programa. Este momento foi de suma importância, pois além do questionamento técnico, médico, pudemos nos familiarizar com o que era previsto na lei. Havia a preocupação sobre uma "grande demanda", a exposição dos profissionais envolvidos e a possibilidade de fraudes. Mas estas questões aos poucos foram sendo respondidas, à medida que fomos nos informando de dados de serviços de outros estados e com a elaboração de um protocoloda nossa própria clínica. A procura não tinha sido tão "grande" nas maternidades que ofereciam este programa. E as mulheres buscavam, na verdade, soluções legais para seus problemas.

O primeiro avanço foi transformar em rotina do serviço o atendimento à mulher com gravidez decorrente de estupro. Os casos de interrupção da gravidez com risco de vida da mulher já eram habituais na Clínica por conta de sermos referenciados por serviços de Cancerologia, Neurologia, Hematologia e termos uma Clínica Cardiológica no nosso hospital. E também porque o aspecto técnico facilita as decisões. Não foi difícil descobrir, entretanto, que o nosso contato diário com a mulher gestante de alto risco, a parturiente, a puérpara e os problemas médicos, sociais e pessoais havia nos dado no decorrer dos anos, visão e respaldo para enfrentarmos com naturalidade esta proposta de trabalho.

Agora estamos diante de mais um avanço real. Não em termos de serviços mas da legislação, desde que se concretize este anteprojeto do Código Penal que torna permitido o abortamento nos casos em que "o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias que o tornem inviável".

Com a evolução da ultra-sonografia e a sua definitiva incorporação à assistência pré-natal estão sendo cada vez mais frequentemente identificadas malformações fetais. Este recurso permite um manejo adequado da gravidez, possibilitando ao médico planejar o momento adequado para o parto ou referenciar a gestante para um serviço especializado. Já é uma realidade a realização de procedimentos cirúrgicos visando melhorar a condição de vida intra-uterina enquanto a gravidez não chega a seu termo.

Entretanto esta tecnologia fez surgir também o diagnóstico do feto portador de uma malformação letal e com isto uma grande ansiedade em torno da evolução de uma gravidez. E mais ainda, o desejo de muitas mulheres que esta situação não fosse adiante, proposta que esbarrava no impedimento legal. Ora, é claro que o nosso Código Penal, de tão antigo, não podia prever que a ciência avançaria tanto e os pedidos de interrupção destas gestações requereriam ações judiciais.

O que verificamos foram inúmeras gestante sofrendo com a demora natural de um processo jurídico, chegando até mesmo, em alguns casos, ao termo da gravidez.

A Clínica de Obstetrícia do Hospital Agamenon Magalhães já vinha realizando interrupção de gravidez com feto portador de Anencefalia, malformação incompatível com a vida, sempre com o alvará judicial. E com o programa de interrupção legal da gestação em andamento, a procura de nossos serviços vem sendo cada vez maior.

Por este motivo vislumbramos o anteprojeto do novo Código Penal como avanço real ao permitir que a opção da gestante, do casal, tenha solução mais rápida, sem constrangimentos, com menores riscos e se torne acessível a todos.


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