No dia 25 de agosto, na sessão presidida pelo deputado Alceu Colares (PDT-RS), a Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados aprovou a manutenção da Norma Técnica do Ministério da Saúde que dispõe sobre Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes.

Num plenário cheio, dividido entre representantes da Igreja e do Movimento de Mulheres, os deputados acataram o parecer da deputada Jandira Feghali (PC do B-RJ), contrário ao Projeto de Decreto Legislativo 737/98, do deputado Severino Cavalcanti (PPB-PE), que pedia a suspensão da Norma. O debate no plenário durou quatro horas, e, ao final, 24 parlamentares acataram o parecer da relatora, contra 16 parlamentares que apoiaram o PDC 737.

A medida em questão, editada em novembro do ano passado, visa orientar e padronizar o atendimento prestado pelos hospitais públicos e conveniados ao SUS às vítimas de violência sexual. A deputada Laura Carneiro (PFL-RJ), segunda vice-presidente da Comissão de Seguridade Social, fez uma defesa veemente da norma técnica na comissão. Afirmou que não tinha dúvidas quanto à aprovação, por parte dos parlamentares do relatório da deputada Jandira Feghali. Segundo ela, os deputados entenderam que a norma técnica é abrangente e trata de questões relacionadas às DST/AIDS e sobre o aborto. A norma não considera nenhum ponto além do que já está previsto no Código Penal (risco de vida da mãe e estupro) e só vem, também, regularizar o Serviço de Atendimento ao Aborto Legal, que já existe em vários hospitais da rede pública. "O plenário entendeu que tínhamos que acabar com a hipocrisia da sociedade que defende tudo para o rico e nada para o pobre. Sabemos que as mulheres de poder aquisitivo têm condições de fazer o aborto em clínicas particulares e as mulheres pobres, na maioria das vezes, recorrem a clínicas clandestinas para serem atendidas", desabafou. A deputada disse, também, que ficou surpresa com o desconhecimento e a falta de percepção de alguns deputados sobre o trauma que representa para uma mulher ser estuprada.

A interrupção da gravidez decorrente de estupro é um direito das mulheres brasileiras há 59 anos, garantido pelo Código Penal de 1940. Apesar disso, a edição da Norma, que apenas o regulamenta, causou polêmica, principalmente entre os parlamentares ligados aos setores mais conservadores da Igreja.

A principal crítica dos opositores à Norma é de que ela seria o primeiro passo para a legalização do aborto, visto que condiciona a autorização da cirurgia à apresentação de um boletim de ocorrência policial, o que, segundo eles, é um documento frágil. Eles defendem que seja também exigido um exame médico que ateste a violência sofrida e apontam a possibilidade de se conseguir facilmente um boletim prestando informações falsas, o que daria margem à realização de abortos em mulheres que não foram de fato violentadas.

"Esse argumento mostra desconhecimento da realidade, mas, também, um enorme desrespeito às mulheres. Elas não mentem", enfatiza Jacira Melo, coordenadora da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos. De qualquer forma, a Norma Técnica respeita o Código Penal já que este não prevê a exigência nem de boletim de ocorrência nem de exame médico para que o aborto seja realizado.

"Incentivamos as vítimas a fazer o B.O., até mesmo para que a polícia tente achar o culpado", diz José Antônio Jordão, diretor do Serviço Escola de Ginecologia, Obstetrícia e Neonatologia do Hospital Ipiranga, um dos quatro estabelecimentos que oferece atendimento a vítimas de violência sexual em São Paulo. O médico afirma que nem sempre o exame médico pode garantir que houve violência. "De forma geral, a primeira coisa que a vítima faz após sofrer a violência é tomar banho. Com isso, muitas evidências se perdem", observa.

No entanto, Jordão não acredita que os hospitais que prestam o serviço já tenham realizado aborto em mulheres que não foram realmente violentadas. E o que sustenta essa opinião é o fato de todas as vítimas serem atendidas por uma equipe multidisciplinar, composta por médicos, psicólogos, assistentes sociais e enfermeiras. Os profissionais checam as informações dadas pela vítima com a idade gestacional, em caso de gravidez, e os resultados dos outros exames clínicos.

A Norma prevê que o atendimento clínico deve compreender exame físico e ginecológico completos, além da solicitação de exames laboratoriais de tipagem sangüínea, sorologia para sífilis, hepatite tipo B e anti-HIV, coleta de amostras para diagnóstico de infecções genitais e coleta de material para identificação do agressor. As estatísticas mostram que 16% das mulheres vítimas de violência sexual contraem algum tipo de doença sexualmente transmissível, até 2% delas engravidam e uma em cada 1000 é infectada pelo HIV.

Atualmente, 16 hospitais brasileiros oferecem serviços públicos de atendimento a vítimas de estupro em 8 cidades (veja quadro em anexo). São elas: Belém, Brasília, Campinas, João Pessoa, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. O serviço pioneiro foi o do Hospital Municipal Dr. Arthur Saboya (Hospital Jabaquara), em São Paulo, iniciado em 1989, por iniciativa da Secretaria Municipal de Saúde.

Apesar de alguns hospitais oferecerem o serviço de prevenção e tratamento dos agravos resultantes de estupro há quase uma década, ainda é reduzido o número de vítimas que procuram o serviço. Para isso contribuem a pouca divulgação dos programas e a desinformação de grande parte das próprias delegacias policiais, que não avisam às mulheres sobre a possibilidade de terem o atendimento, por desconhecimento do mesmo ou por falta de orientação para tal.

Além disso, também há o fato de grande parte dos estupros ocorrerem no espaço doméstico, sendo praticados por parentes ou pessoas próximas das vítimas, o que torna o crime mais difícil de ser denunciado. O Ministério da Saúde acredita que menos de 10% dos casos chegam às delegacias.

"Nós fazemos pouquíssimos atendimentos. Tenho certeza absoluta de que o número de estupros é muito maior, e estamos preparados para atendê-lo", afirma Jordão. Segundo ele, o Hospital Ipiranga atendeu cerca de 50 pacientes desde que o serviço foi implantado, em novembro do ano passado.

E o número de abortos realizados é muito inferior ao de atendimentos, visto que a contracepção de emergência resolve a maioria dos casos. Em dez meses de funcionamento, o serviço do Hospital Ipiranga, por exemplo, não realizou nenhum abortamento. Isso derruba também a tese de que a Norma Técnica provocaria um aumento no número de abortos realizados.

Jordão acredita que a iniciativa do Ministério da Saúde pouco interfere no atendimento já prestado pelos hospitais. No entanto, ele afirma que a polêmica criada em torno da medida é boa para colocar o assunto novamente em discussão.

Além disso, acredita-se, também, que a Norma deverá incentivar a criação de novos serviços de atendimento a vítimas de violência sexual no País. "Já era hora do Ministério ter uma normatização para o atendimento à mulher vítima de violência sexual. E, hoje, isso vem como um incentivo à implantação de novos serviços", afirma Jacira Melo.

"A medida respalda e incentiva autoridades que até hoje não tiveram coragem para implantar programas desse tipo a fazê-lo", concorda o deputado Eduardo Jorge (PT/SP), médico sanitarista e autor de vários projetos de lei sobre aborto. "Mas eu continuo achando importante a votação de um projeto de lei específico sobre o assunto, porque uma lei dá muito mais segurança às autoridades sanitárias", diz. A Norma Técnica pode ser revogada unilateralmente por vontade do Executivo.

"Acredito que o lobby do Severino Cavalcanti vai na contramão da sociedade. Há 59 anos, ela foi capaz de compreender a importância de um tratamento mais humano desses casos. E, hoje, a sociedade cada vez mais aceita uma legislação mais tolerante e flexível com relação ao aborto. Todas as pesquisas de opinião indicam isso", conclui Jacira Melo.

Projeto ainda será apreciado em Plenário

Pelo regimento interno da Câmara, todo Projeto de Decreto Legislativo deve ser apreciado também pelo Plenário da Casa. Essa foi a interpretação da Mesa Diretora da Câmara no despacho que deu ao PDC 737. Em função disso, a derrota do projeto na CSSF ainda não é definitiva. O projeto deverá ser votado agora na Comissão de Constituição e Justiça, e, independentemente do resultado, seguirá para o Plenário, que dará a palavra final. Não há previsão de quando isso poderá acontecer.

Belém-PA
Ano de início 1997
Iniciativa de implantação Portaria da secretaria Estadual de Saúde
Hospital que presta o serviço Fundação Santa Casa de Misericórdia
Nome do serviço Programa de aborto previsto em lei
Brasília-DF
Ano de início 1996
Iniciativa de implantação Conselho de Saúde do DF, resolução 001/96
Hospital que presta o serviço Hospital Materno-Infantil de Brasília
Nome do serviço SOS Mulher - Aborto Previsto em Lei
Campinas-SP
Ano de início década de 80
Iniciativa de implantação Direção do Centro
Hospital que presta o serviço Centro de Assistência Integral à Saúde da Mulher (Unicamp)
Nome do serviço
João Pessoa-PB
Ano de início 1998
Iniciativa de implantação Secretaria Estadual de Saúde
Hospital que presta o serviço Maternidade Frei Damião (Complexo Cruz das Armas)
Nome do serviço Programa de Assistência às Mulheres Vítimas de Violência Sexual
Porto Alegre-RS
Ano de início 1998
Iniciativa de implantação Secretaria Municipal de Saúde (decreto-lei municipal)
Hospitais que prestam o serviço Hospital Materno-Infantil Presidente Vargas
Grupo Hospitalar Conceição
Hospital das Clínicas de Porto Alegre
Santa Casa da Misericórdia de Porto Alegre
Hospital Fêmina
Nome do serviço Programa de Assistências às Mulheres Vítimas de Violência Sexual
Recife-PE
Ano de início 1997
Iniciativa de implantação Secretaria de Saúde do Estado (portaria 070)
Hospitais que prestam o serviço Maternidade do Hospital Agamenon Magalhães
Centro Integrado de Saúde Amauri de Medeiros
Nome do serviço Serviço de Assistência à Mulher Vítima de Violência Sexual - CISAM/UPE
Rio de Janeiro-RJ
Ano de início 1988
Iniciativa de implantação Projeto de lei municipal sancionado em 1998
Hospital que presta o serviço Instituto Municipal da Mulher Fernando Magalhães
Nome do serviço
São Paulo-SP
Ano de início 1989
Iniciativa de implantação Secretaria Municipal de Saúde (portaria)
Hospital que presta o serviço Centro Integrado de Saúde Amauri de Medeiros
Nome do serviço Programa de Aborto Legal
Ano de início 1994
Iniciativa de implantação Direção do hospital
Hospital que presta o serviço Hospital Pérola Byington
Nome do serviço Serviço de Atendimento à Violência Sexual
Ano de início 1998
Iniciativa de implantação Direção do hospital
Hospital que presta o serviço Hospital São Paulo
Nome do serviço Programa de Atendimento à Mulher Vítima de Violência Sexual
Ano de início 1998
Iniciativa de implantação Direção do hospital
Hospital que presta o serviço Hospital Ipiranga
Nome do serviço

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