Quase 60 anos de vida, com mais de 40 de luta social: assim é Domingas de Paula Martins Caldas. Nessa entrevista, conhecemos a história da paraense, educadora popular, que desafia diariamente a lógica machista e capitalista da política partidária. Nos sonhos para o futuro, ela deseja: mais solidariedade entre as mulheres!

Por Mel Bleil Gallo

Fêmea: Em 2012, completamos 80 anos da conquista do voto feminino. Como você avalia esse período?

Domingas: Nós demos um avanço muito grande no que diz respeito às mulheres estarem encarando esse processo, que não é muito fácil. O voto feminino foi conquistado numa luta contra tudo e contra todos. Mas precisamos avançar mais ainda. Esse ano, tivemos um bom número de vereadoras eleitas, mas no estado do Pará, de 143 municípios, só dois elegeram prefeitas. É uma batalha pra mostrar que o voto feminino é tão importante quanto os demais. Nós construímos essa sociedade, parimos, trabalhamos no mercado formal e no informal, estamos em todos os espaços. Mas precisamos de valorização.

Fêmea: Como você entrou na política?

Domingas: Eu sou a última de uma família de 12 irmãos e, desde cedo, enveredei por esse caminho da luta social. Depois, pela violência doméstica, canalizei mais pra luta das mulheres. Da política social, eu participo desde os 17 anos. Lutava pela água, pela luz, pela saúde, pela moradia e especialmente pela educação. Eu morava no Jurunas, em Belém, e a educação pública era muito precária. Além disso, sofri muito a questão da violência doméstica. Depois de um tempo resolvi casar, achei que fosse melhorar, mas foi pior. Passei a sofrer a consequência da violência doméstica e sexual de um marido ciumento, que queria mandar nas mulheres. Mas eu não era de abaixar a cabeça. Quando morava no interior, era minha mãe que mandava em casa e eu não aceitei aquilo. Fêmea: E na política partidária, quando você entrou?

Domingas: Eu entrei no Partido dos Trabalhadores (PT) faz uns 15 anos. Foi quando cheguei à conclusão de que, se a gente não se envolver também na política partidária, a gente fica de fora das grandes decisões sobre a nossa vida. É lá que os políticos decidem os rumos de tudo. Então comecei a participar das plenárias, das reuniões e até que fui pra coordenação do partido. Hoje eu sou a presidenta do meu distrito e sou secretária de mulheres do PT no Pará.

Fêmea: Como é estar no partido?

Domingas: Acho que precisamos estar na política partidária para viver a gestão e tentar fazer o melhor para todos. Pega o exemplo da Dilma: sem essas coalizões, seria muito melhor. Se a gente olha de frente, nós temos o poder? Não temos. Há um problema de transparência e de ter que usar subterfúgios contra sua ética. Por isso não me candidato mais. Não tem como se candidatar, sem fazer esse jogo. Quem compra voto se elege. Quem faz uma campanha bonita, com adesão popular, não! Por que? Porque nossa sociedade começou a fazer da política um comércio. E aí, quem não consegue trabalhar assim, sofre. Mas a gente tem que lutar pra acabar com isso.

Eu já fui gestora no município e mesmo sem dinheiro fazia uma boa gestão. Basta ter vontade política e entender que a coisa pública não é tua, que você apenas conduz o que o povo define. É difícil saber lidar com todo mundo, com pluralidade, sem excluir ninguém. Tem que saber fazer isso.

Fêmea: Como funciona esse comércio da política?

Domingas: A compra do voto sempre teve. Antes era com aterro, asfalto, dentadura. Como a gente acabou com a política nesse sentido, agora inventaram uma nova forma que continua a mesma coisa, com outra roupagem. Hoje, o povo dá dinheiro em troca do voto e as pessoas votam. A política se tornou tão banal.

Nas eleições, o partido acaba se prostituindo. Hoje o que garante uma eleição é ter dinheiro, não apenas o capital social, a honestidade, a transparência. Isso não é o que pesa. Eu sou uma pessoa de família muito pobre, obviamente não tenho dinheiro, luto muito pra sobreviver. Além disso, apesar do discurso progressista de alguns partidos, o poder dos homens e das tendências partidárias sobre as mulheres é muito forte.

E se por um lado a educação tá avançando, a televisão, em vez de educar, ensina as pessoas a obedecerem ao sistema. É obvio que com a luta é que a gente consegue algumas mudanças democráticas. Mas tudo avança muito devagar, porque quem tem o poder da eleição, tem o poder da televisão, da polícia, do tráfico, tem o poder de tudo.

Fêmea: O que fez você se candidatar?

Domingas: Eu me candidatei duas vezes, em 2004 e em 2012. Desde 1994 o pessoal começou a me incentivar, mas eu não me sentia segura. Só em 2004 é que decidi participar. Mas foi muito difícil: conseguimos um bom número de votos, mas realmente nos partidos as coisas são feitas para homens. Daí, nessas eleições eu não estava disposta, mas fiz o curso de formação do Cfemea e da AMB e depois comecei a trabalhar com assessoria parlamentar. Com o incentivo do debate sobre o empoderamento das mulheres e da necessidade de estarmos na política, consegui terminar minha faculdade de Pedagogia em 2008 e, em 2012, fui candidata novamente.

Foi uma campanha muito bonita, muito legal, mas o resultado foi desastroso. Eu sempre apresentava a minha candidatura como uma candidatura de uma mulher feminista. Mas não via as feministas aderindo e construindo um projeto feminista.

Fêmea: Quais os principais desafios para uma mulher na política?

Domingas: Nós precisamos estudar mais, nos aprofundar e definir o que é feminismo para nós. Uma coisa é discutir isso no movimento social. Outra coisa é quando você traz isso para esse outro âmbito da política, o partido, onde a disputa entre as mulheres é ainda maior. Às vezes ela se torna desleal e desrespeitosa, por falta de solidariedade feminina.

A valorização e o reconhecimento da mulher ainda estão muito longe, apesar de termos uma presidenta. O patriarcado ainda está muito arraigado. Eu acho que muitos homens fazem o discurso em defesa das mulheres mais para se protegerem e não serem detonados pelas lideranças políticas depois. Para garantir a paridade, por exemplo, nós tivemos que tirar vários homens e deu o maior problema. Vieram cobrar das mulheres e eu disse “olha, isso não tem que ser cobrado da gente, a responsabilidade é dos homens também. Tem que abrir espaço, que sempre foi negado. A paridade deveria ser natural, mas tu sabes que isso ainda é muito difícil. Tem lugar que não tem mulher, porque a mulher não se dispõe, porque ela acha que não tem competência, que só os homens é que têm que estar na política”.

Fêmea: Qual a importância da mulher na política?

Domingas: Se nós contribuímos com tudo, nós precisamos estar lá para dizer de que forma nós queremos que a sociedade seja, os rumos que as coisas têm que seguir, para a gente poder caber lá dentro. Porque às vezes as coisas são de um jeito que a gente não cabe. Sabe quando tem uma roupa que você veste e sente que não ficou legal? Às vezes é assim que a gente se sente na sociedade. Imagina uma sociedade onde a gente é maioria, mas somos totalmente desvalorizadas? Tem alguma coisa errada. Nos anos que tenho nessa vida doida, eu só consegui perceber essa discriminação, quando comecei a participar das formações da AMB. Foi quando eu vi que se a gente se juntasse, a gente poderia transformar isso. Percebi que se a gente vê que tá errado tem que ir pra dentro, pra tentar mudar.

Fêmea: Existe uma solidariedade feminina na política, para além dos grupos políticos?

Domingas: Não existe. Essa linguagem da solidariedade feminina fica muito no discurso, mas na prática é totalmente diferente. E eu não digo isso rancorosamente, digo politicamente. As pessoas acabam não assumindo esse papel, essa luta por direitos iguais, no dia a dia. No final, acaba que tu não contas nem com o apoio das mulheres.

Fêmea: Que pautas uma candidata mulher deve levantar?

Domingas: Tem que ter o compromisso de romper com as barreiras dos patriarcados. Eu acho que, além de todas as questões mais gerais, a mulher tem que lutar por mais mulheres nos espaços de poder, com um empoderamento real. Aqui no Pará a maioria das mulheres é chefe de família e só com muita luta a gente conseguiu prioridade no programa “Minha casa, minha vida”. Precisamos das plenárias e dos movimentos, com a articulação das mulheres, para poder passar. Fêmea: O que você aconselha a mulheres que estão entrando agora na política. Domingas: Nós temos que entrar na política e fazer bem feito. Nós temos que mostrar que nós somos capazes de fazer a coisa certa, corretamente. Demonstrar que nós queremos uma sociedade igual, com transparência, democracia. Onde quer que seja, como secretária, vereadora, movimento social. Nós precisamos nos valorizar e dar espaço para outras mulheres. Senão, não tem sentido! Se não for pra ver isso, pra que estamos lutando? Nós precisamos ser mais humanas, entre nós mesmas. O mundo já é muito cruel com a gente, se nós formos também, fica cruel demais. Temos que nos respeitar, nos amar como mulheres. Ser solidária de fato. Assim a gente consegue avançar.


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