Janaína Penalva
Diretora-executiva da Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero

Desde 2004, quando a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS ingressou com a ação por descumprimento de preceito fundamental (ADPF) n. 54, requerendo a autorização para que as mulheres grávidas pudessem antecipar o parto no caso de fetos anencéfalos, aguardamos uma decisão da mais alta Corte do País. Nesse mesmo ano, por poucos meses, medida liminar concedida pelo Ministro Marco Aurélio de Mello autorizou que as mulheres do Brasil grávidas de fetos anencéfalos pudessem antecipar o inevitável, interrompendo seu sofrimento - sua gravidez - no momento em que desejassem. Pouco tempo depois, o plenário do STF derrubou a liminar do Ministro Marco Aurélio e as mulheres perderam o direito de tomar a decisão sobre o destino de sua gravidez no caso de fetos anencéfalos.

Estamos em 2011, completando 7 anos de espera pela resposta à mais importante pergunta feita pelas mulheres ao Supremo Tribunal Federal. Até a dúvida sobre a possibilidade de um feto anencéfalo sobreviver já foi desfeita, afinal, as mulheres foram obrigadas a concluir suas gestações e não há nenhum recém-nascido com anencefalia que esteja vivo. A mídia especula sobre o caso e publica reiteradamente a noticia de que a ADPF 54 será decidida ainda no segundo semestre de 2011. O Tribunal, no entanto, nada sinalizou sobre esse julgamento. Mas, afinal, o que falta aos Ministros do STF para decidirem esse caso?

Vigora no direito o princípio que proíbe os juízes de recusarem-se a decidir uma ação judicial. Por mais absurdo que seja o pedido ou o procedimento escolhido, os magistrados devem dar uma resposta, julgando conforme o que o direito exigir no caso. Esse é um princípio de grande valor porque corporifica a força dos direitos e fortalece o Poder Judiciário. Ocorre que, recusar-se a julgar, é também decidir. O Supremo Tribunal Federal hesita há 7 anos a posicionar-se sobre o assunto, mesmo não havendo dúvidas sobre fatos que pudessem levar à produção de provas, depoimentos de testemunhas, perícias ou qualquer outro procedimento de busca da verdade. A ADPF 54 não depende, portanto, de provas para ser julgada. Até o inovador procedimento de realização de audiências públicas para a oitiva de especialistas já foi realizado pela Corte. Por isso só duas hipóteses podem explicar essa demora: ou os Ministros não têm convicção sobre qual o direito das mulheres nesse caso ou o STF não julga porque já decidiu.

O grande debate público e acadêmico que se seguiu à interposição da ADPF 54 sinaliza que essa é uma decisão aguardada por mulheres e homens no Brasil. Isso nos faz acreditar na primeira hipótese levantada, ou seja, que o atraso no julgamento se deve a um processo demorado de formação da convicção por parte dos ministros. A esperança é de que o STF julgue, em breve, se as mulheres têm direito a interromper sua gestação nos casos de fetos com anencefalia. Um julgamento público, ainda que contrário aos interesses das mulheres, é bem diferente de silenciar. Porque com o julgamento vamos, afinal, conhecer as razões e o posicionamento do STF em relação aos direitos das mulheres. Mesmo uma decisão judicial injusta tem valor, ela serve para reorganizar o debate e esclarecer o conflito, mobilizando as forças democráticas pela reforma da decisão e pela luta por justiça.

Direitos não amadurecem

Quando se debate sobre o direito ao aborto, não raro se afirma que a sociedade brasileira não está madura para discutir o assunto. É comum, inclusive nos discursos das autoridades públicas, sustentar que não estamos prontos para rever a criminalização do aborto. Não há porque nos deter por muito tempo na análise dessa ideia pouco democrática de que os brasileiros e brasileiras não são capazes de definir quais regras vão reger suas vidas. Por ora, basta entender que esperar o amadurecimento da sociedade sobre o aborto não é um argumento disponível aos ministros do Supremo Tribunal Federal. O Congresso Nacional pode esperar a sociedade deliberar, o debate popular se fortalecer, maiorias se formarem, mas o Poder Judiciário não tem tempo. Direitos não amadurecem. Os direitos estão garantidos na Constituição, dependem apenas de um processo interpretativo e de densificação de princípios, não dependem do amadurecimento de ninguém. Há, entretanto, casos em que essa garantia não se efetiva e é preciso uma intervenção judicial para que os indivíduos não tenham seus direitos violados.

Caso o STF decida favoravelmente em prol da saúde das mulheres, não será mais necessário que as mulheres busquem autorização judicial ou que optem pela realização do procedimento na ilegalidade. Mulheres morrem ao fazer aborto clandestino e ilegal. Recente pesquisa da Anis com 1.184 médicos ginecologistas e obstetras mostrou que, nos últimos 20 anos, 85% das pacientes atendidas com o diagnóstico de anencefalia no feto preferiu interromper a gestação. Isso mostra que esta é uma experiência comum no cotidiano dos consultórios e que o impacto da decisão do STF será importante para a garantia da proteção à saúde e à vida das mulheres. Diferentemente do que pensam nossas autoridades públicas, posições éticas conflitantes não são atributos dos imaturos. A decisão sobre o direito ao aborto ou à antecipação terapêutica do parto não depende do amadurecimento da sociedade, nem do fim do dissenso, depende apenas do respeito à Constituição e do compromisso do Supremo Tribunal Federal.


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