Sueli Carneiro
Doutora em Educação pela USP e diretora do Geledés - Instituto Mulher Negra

Acaba de ser divulgada a avaliação de desempenho do primeiro grupo de estudantes que ingressou na Universidade Federal da Bahia (UFBA) pelo Programa de Ações Afirmativas. As conclusões desse trabalho são que "em 11 cursos dos 18 de maior concorrência da UFBA, ou seja, 61%, os cotistas obtiveram coeficiente de rendimento igual ou melhor aos dos não-cotistas. Nos cursos de Comunicação Social (Jornalismo e Produção Cultural), por exemplo, 100% dos cotistas obtiveram coeficiente de rendimento entre 5,1 e 10,0 nos dois semestres de 2005, contra 88,9% dos não-cotistas. No curso mais concorrido, o de Medicina, 93,3% dos cotistas obtiveram coeficiente de rendimento entre 5,1 e 10,0, contra 84,6% dos não-cotistas."

São dados que jogam por terra os argumentos de que as políticas de cotas rebaixariam a qualidade da universidade pública ou as divagações em torno da meritocracia, evidenciando que não fosse o vestibular um instrumento de elitização do acesso à universidade, poderíamos ter uma universidade plural enriquecida com os olhares e vivências dos diferentes grupos étnicos e raciais da sociedade brasileira com os previsíveis resultados positivos em sua produção acadêmica.

Porém é precisamente esse país que os números apresentados pela UFBA nos faz vislumbrar que os contrários às políticas de inclusão racial não querem deixar emergir. Preferem manter um país com os índices de desigualdades que nos envergonha a todos a terem uma sociedade multicolorida em todas as suas instâncias de saber e de poder.

Li recentemente uma frase atribuída a Antônio Cândido segundo a qual "a loucura de hoje é a razão do futuro." Historicamente a loucura das elites nacionais consistiu em forjar um país de hegemonia branca pela exclusão racial de negros e indígenas. Disso resultou como futuro esse presente: um país campeão de desigualdades sociais de forte componente racial.

A polarização da sociedade em torno dos projetos de lei de cotas para negros e indígenas e do Estatuto da Igualdade Racial expressam os dilemas que, segundo Otávio Ianni de forma recorrente se debruça a intelligensia nacional para a qual modernização sempre foi sinônimo de ocidentalização do país processo no qual negros e índios deveriam ser descartados. Os intelectuais que assinam o Manifesto contra esses projetos de lei estão nos dizendo que os núcleos renitentes dessas elites não aceitarão passivamente a alteração das regras desse jogo e declararam guerra. O seu Manifesto foi o primeiro míssel a ser disparado. Outros virão.

O mito da democracia racial permitiu por longo tempo aquilo que o pensador negro Hélio Santos denomina de anestesia moral da sociedade brasileira em relação à exclusão social dos negros. Mas essa realidade está sendo alterada. Não fosse assim e não haveria mais de 30 universidades do país, neste momento, com políticas de cotas raciais. Nessa mudança de paradigma cresce em muitos (as), a consciência de que a questão racial não diz mais respeito apenas aos negros sendo um tema essencial para a projeção do tipo de país que teremos no futuro e a qualidade da democracia que nele haverá. Não mais uma abstração liberal, mas uma democracia com igualdade substantiva construída pelo reconhecimento dos danos causados sobre parcelas de populações nacionais do que decorre a urgência de política de reconhecimento e de justiça redistributiva para reverter as desigualdades produzidas em nosso processo histórico. É o surgimento dessa nova consciência que permite afirmar que há na sociedade brasileira amparo para a efetivação de uma verdadeira democracia racial pelo amplo espectro de setores sociais em apoio às políticas de cotas e do Estatuto da Igualdade Racial que assim, firmemente, se manifestaram diante do Congresso Nacional.


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