A Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) divulgou no dia 2 de setembro a seguinte carta frente à crise política brasileira. Assinam conjuntamente a carta redes, articulações e fóruns de 26 Estados brasileiros1.

Carta à sociedade brasileira

Nós, feministas da Articulação de Mulheres Brasileiras, diante da atual crise pela qual passa o Brasil, vimos a público reafirmar nosso compromisso político com a defesa de uma sociedade democrática, justa e igualitária.

Por acreditarmos na democracia e em suas instituições, seguiremos firmes na defesa de um Estado soberano, laico e promotor de transformações sociais através de políticas que contribuam para a superação das desigualdades e que fortaleçam o bem-estar de todas as cidadãs e cidadãos. Unimo-nos, portanto, a outros movimentos sociais que têm se manifestado em defesa destes princípios.

Reconhecemos que a vitalidade do movimento que levou ao impedimento do ex-presidente Collor não foi suficiente para barrar a onda neoliberal, nem frear a corrupção em nosso país. Muitos foram os casos, nestes últimos anos, que não deixam dúvidas sobre a insuficiência do sistema político para enfrentar a corrupção.

Comprometidas com a transparência e com a ética nas relações políticas, consideramos a corrupção a forma aguda e perversa de usurpação do poder e dos bens públicos e a repudiamos em todas as suas formas. Exigimos, assim, uma profunda investigação das denúncias apresentadas e a punição de todas as pessoas envolvidas, sejam elas corruptoras ou corruptas. Repelimos qualquer tentativa de abafar ou acordar limites em relação às investigações e punições, a exemplo das propostas feitas pelo atual presidente da Câmara.

Afirmamos que a corrupção se combate com a participação popular e nos aliamos às/aos que reivindicam a efetivação de mecanismos de democracia participativa e direta - as consultas, os referendos e os plebiscitos - para questões amplas, que não sejam de foro íntimo.

Neste momento histórico, nós nos somamos às/aos que defendem profundas mudanças no sistema político brasileiro. Não acreditamos em soluções superficiais, tampouco casuísticas ou imediatistas.

A reforma política é necessária e não pode se restringir a uma reforma eleitoral, que responda apenas ao calor da crise. Defendemos que a reforma aconteça a partir de um processo amplo e democrático, com capacidade de promover mudanças significativas e estruturais nas relações de poder, alterando a vida e a prática política, a política partidária e a eleitoral. Neste processo, é preciso garantir a participação dos movimentos que sempre foram excluídos das decisões políticas, como o movimento de mulheres, o movimento negro e de mulheres negras, o movimento LGBTT, organizações de jovens e povos indígenas.

A crítica à hierarquização das lutas, dos sujeitos e das estruturas políticas é uma firme bandeira e um princípio caro ao feminismo, crítica esta que agora se revigora, frente a um contexto no qual práticas comuns nos processos políticos-partidários mais uma vez se evidenciam.

Reiteramos também nossas denúncias contra um modelo de sociedade estruturado pelo patriarcado, pelo racismo, pela exploração do trabalho e pela mercantilização da vida, e reafirmamos a necessidade da sua transformação.

O sistema político brasileiro ainda não fez rupturas com suas bases patrimonialistas e o atual governo, ao garantir os interesses do mercado e do capital financeiro - em detrimento das políticas redistributivas, universalistas e de ação afirmativa - seguiu um caminho semelhante ao trilhado por seus antecessores. Este governo deu seqüência às políticas de ajuste estrutural, estabelecendo patamares recordes de superávit primário, e caminhou na reprodução do projeto neoliberal, ao contrário do que historicamente defenderam os movimentos sociais, que viram suas expectativas frustradas.

À revelia dos compromissos com estes movimentos, o atual governo tem se pautado, desde o início, por um projeto político marcado pela reprodução de práticas comuns aos grupos conservadores tão bem representados na esfera pública. As alternativas encontradas a esta crise repetem decisões que historicamente prejudicaram a população, em particular a nós mulheres. Como exemplo denunciamos a carta do presidente Lula à Conferência Nacional de Bispos do Brasil, pelo seu teor antidemocrático quando nega a diversidade religiosa existente neste país, quando fere os princípios do Estado laico e compromete o governo com um projeto cristão, e não de defesa de direitos e da cidadania de todos/as os/as brasileiros/as.

A crise nos desafia com premência histórica a repensar e avançar na nossa capacidade de crítica e de ação como movimentos sociais, atuando pelo aprofundamento do debate sobre um projeto político de transformação social, que caminhe para a efetivação dos direitos das mulheres, do direito à igualdade e justiça para toda a população.

(1) AC, AL, AM, AP, BA, CE, DF, ES, GO, MA, MG, MS, MT, PA, PB, PE, PI, PR, RJ, RN, RR, RS, SC, SE, SP, TO.


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